Reflexões marxistas
Os políticos do presente não têm a experiência nem o conhecimento histórico de governar em cenário de escassez e de preços altos.
A factura do gás natural chega a Portugal. A inflacção já pertence à paisagem quotidiana. Os salários vegetam na mediocridade. Mas o electro-pop-folk domina a reflexão política nacional sem lugar para as incidências do Mundo.
Vem a propósito as palavras do Presidente Mácron quando refere que o Mundo está a aproximar-se do “fim da era da abundância”. Não é a escassez que se vê nas ruas da cidade, mas sim a pobreza na era da abundância. O que Mácron está a referir implicitamente representa uma crítica ao sistema económico capitalista. E uma crítica no sentido em que o sistema económico não produz de acordo com as necessidades, mas produz em função de um superavit constante e permanente. O que permite o princípio do prazer na abundância é a perspectiva infinita de um excedente inesgotável. Nas incidências do Mundo contemporâneo a garantia de um excedente inesgotável é uma miragem de outro tempo, o que provoca a imprevisibilidade no domínio económico e a crise na esfera política. Se hoje existe uma garantia na política e na economia esta remete-nos para o Princípio da Incerteza.
Os políticos do presente não têm a experiência nem o conhecimento histórico de governar em cenário de escassez e de preços altos. Subitamente são as medidas de blackout nas cidades da Europa, o fecho das piscinas públicas aquecidas, o espectro do Inverno com uma paisagem branca sem o conforto do aquecimento, sem a certeza do gás natural abundante e barato. As indústrias reflectem os custos de produção na cadeia de consumo e a espiral da recessão instala-se como reflexo do medo. É como se as cidades às escuras servissem para proteger a economia e os mercados de uma guerra que circula no interior dos pipelines da Rússia e que abastecem a Europa. As noites escuras na Alemanha podem ser o prenúncio do fim da dominação alemã no Império Europeu.
Neste cenário Pós-Fim-da-História, os mecanismos políticos e económicos são surpreendidos por uma espécie de fractura existencial em que os movimentos tendem para os extremos e em que a paralisia liberal fica no abismo da terra de ninguém. De certo modo, a queda do Muro de Berlim passa de novo na memória como um instante no tempo e na História, revelando naturalmente as tensões e as reconciliações que nunca foram feitas, nem pensadas, nem desejadas.
Nos regimes liberais ocidentais, uma deriva para os extremos à Esquerda e à Direita, em que a política é movida e orientada pela identificação e destruição do “inimigo”. O motor da política não é o progresso, mas o conflito entre propostas rivais mutuamente exclusivas. Daí o tribalismo, o populismo, o nacionalismo, os ventos de violência que sopram nos discursos políticos. O desaparecimento do excedente inesgotável tem consequências económicas mas sobretudo e acima de tudo consequências políticas imprevisíveis.
No mesmo cenário Pós-Fim-da História, observa-se a erupção da secular divisão entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental. A Europa Oriental nunca pretendeu ser uma imitação liberal do Ocidente, imitação que é interpretada como sintoma de inferioridade e menoridade política e civilizacional. Nesta lógica, a Europa para além da linha imaginária do Muro seria uma espécie de Colónia Ocidental, um novo Colonialismo em solo da Europa com recortes liberais e práticas dogmáticas importadas. Nestas paragens, a liberdade não é sinónimo de liberdade de escolha e o progresso político não é sinónimo de uma economia suportada pela felicidade de um excedente inesgotável. A liberdade significa respeito, independência, superioridade, domínio e dominação de um imaginário histórico, político, económico, geográfico. Daí o sentido de humilhação e o ressentimento que invade as estepes da Europa e o coração do Império da Rússia.
Vivemos na época das quatro guerras – a guerra climática, a guerra da pandemia, a guerra da globalização, a guerra da Ucrânia. As quatros guerras parecem ser independentes, mas na realidade são quatro faces de um mesmo conflito que tem de ser enfrentado simultaneamente. É quando a realidade ultrapassa a ficção, quando a Esquerda se confunde com a Direita no labirinto das palavras intraduzíveis e quando o optimismo e o bom senso são a antecâmara da catástrofe. Depois do Princípio da Persuasão é o regresso ao Princípio da Acção. A acção política por todos os meios incluindo a violência organizada e a guerra total.
A Rússia é actualmente o protótipo político da alternativa ao Ocidente. Numa fusão entre o Imperialismo Czarista e o Internacionalismo Marxista, Moscovo é o centro de um movimento neo-fascista impulsionado pela ambição teológica das esferas de influência e pelo ideal político de um espaço vital. Entenda-se neo-fascismo como uma tentativa de modernização política sem os obstáculos, entraves e limitações de uma dimensão liberal que protege o indivíduo e que garante as liberdades. A maior e verdadeira liberdade está na pertença ao grande empreendimento político do Império, a constelação metálica do Poder Puro.
A radiação de Zaporijia reflecte-se na lâmina metálica que perfurou o corpo de Salman Rushdie. Os escritores são figuras sagradas na cultura russa. E o futuro é um Mundo estranho onde tudo se repete de maneira diferente.
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