Retrato da Viajante quando suja
Sempre me deixaram de boca aberta aquelas fotografias a preto e branco, dos brancos, vestidos de branco, em plena África.
Como é que alguém a viajar ou a viver neste continente a escaldar, em pleno século XIX, conseguia estar com um ar tão lavado e engomado?
Como é que o Doctor Livingstone, o Stanley e uma catrefada de exploradores e missionários, conseguiam sequer pentear o cabelo, depois de duas semanas aqui no Malawi? Eu respondo, não conseguiam!
Estavam imundos, cheios de rastas, crostas de feridas, babas de insetos, sarro, suor e sonhos desfeitos. E o único dia, da vida, que se empinocavam, era para fazer o retrato. Colarinhos tesos, uns borrifos de Eau de Naftalina, uma pose épica e FLASH!
E como é que eu sei isto? Porque é assim que, passados 200 anos, se está em África (ou em qualquer país tropical, onde a água seja um luxo. Ah esperem, é verdade, a água é sempre um luxo).
O Malawi, país milionário em maravilhas, é dos mais pobres do mundo (em termos de desenvolvimento). É o sítio perfeito para trazer os filhos adolescentes mimados que não sabem a sorte e a eletricidade que têm (ah, esperem, esses somos todos nós).
Cheiro mal. Bom, cheiro ao animal que sou. Cabelo apanhado, saiu de cena depois de ter percebido que só na próxima vila (que fica a uma hora de distância, lá nas montanhas) é que se vende champô. A pele? Está bem hidratada com repelente, obrigada. Este bronze? É pó! Bicharada? É uma fezada, fizeram de mim Parque Nacional. Comida? Há. Mas é cozinhada a lenha. Cafezinho maravilhoso de Mzuzu, só uma horita. Omelete? Duas! Peço logo as refeições todas de manhã. Wifi? É piada. Curiosamente, é baratíssimo ter internet no telemóvel (se ao menos o meu estivesse desbloqueado).
Assim estou eu, há duas semanas, a tomar banho de balde com a água do lago. O único problema é que tudo se lava neste lago. E não são só os pecados. Lavam-se as cuecas e os pratos, as crianças e os gatos, os peixes que comemos e o lixo que fazemos. Tudo no lago. É com esta água que me lavo. Bom,… é com esta água que me tempero! E já é uma sorte.
Não, não estou a viver no mato. Estou num Lodge encantado a pagar 20 dólares! E não. Não é uma experiência ecológica. Aliás, sem eletricidade, lá se vai a lógica. Reparem, não me estou a queixar. Estou a mostrar-vos o meu verdadeiro retrato. E o de todos os que viajam muitos meses por África.
E um belo dia, chegou o Ilala para me salvar. O que é um Ilala? Perguntam vocês, tão ensaboados. Passo a explicar.
O Malawi tem um lago. Um gigantesco lago calendário, com cerca de 365 milhas de comprimento. E a única maneira de não se levar um ano a atravessá-lo é apanhar “O” barco. E o barco chama-se Ilala. O nome já superou a função. Tornou-se missão. E o Ilala já está ali ao lado da Arca do Noé, da Jangada do Kontiki, do Beegle do Darwin, do Nina-Pinta-e-Santa-Maria, do Bismarck e do Paquete Funchal.
O Ilala não é propriamente um cruzeiro, é uma cruzada. Mas se formos rápidos e endinheirados o suficiente, conseguimos alugar uma das oito cabines a bordo. E então, este velho barco de ferro transforma-se em Barco do Amor. Foram dois dias de sonho, entre todos os luxos. Além de haver duche, havia água quente! Um bar de madeira que servia cerveja (fresquinha!), uma cabine restaurante que servia Chambo (peixe delícia que só existe neste lago) em apenas meia hora. Quando um membro da tripulação me bateu à porta e ofereceu um sabonete, eu vi um diamante!
Se há experiência para se ter no Malawi é atravessar o lago no Ilala. É sentar ao sol e beber uma Kuchi Kuche (diz-se Cutxicutxi) com os simpáticos locais. É ver os barcos de madeira a chegar e a partir para as margens, carregadinhos de pessoas, alguidares, bebés, móveis e peixe seco. É saber que, quando chegarmos ao nosso destino, também nós vamos ter de deixar o bem-bom e saltar para um daqueles barquitos. Agarrarmo-nos bem à malta suada e voltar à estrada empoeirada.
Porque afinal, quem é que quer viver numa linda fotografia a preto e branco, quando se pode sentir a sujidade de um aventura a valer, em todas as cores do espetro do real?
FLASH!
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Crónicas africanas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO vai publicar as melhores histórias da viagem, que pode ir acompanhando também aqui e aqui.
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