Taxa Reduzida de IVA na Reabilitação Urbana – Acórdão STA – Esperança Until the fat lady sings
O princípio da neutralidade, enquanto pedra basilar do IVA, não se coaduna, a nosso ver, com a imposição de requisitos formais que obstaculizam a desoneração fiscal de determinadas operações.
Até março deste ano, imperava a convicção, nas empresas do setor imobiliário, de que a aplicação da taxa reduzida de IVA de 6% nas empreitadas realizadas no âmbito da reabilitação urbana exigia, tão somente, que os imóveis em causa se localizassem nas denominadas áreas de reabilitação urbana (ARU).
Esta convicção passou, contudo, sobretudo a partir de 2020, a ser contrariada pela Autoridade Tributária (AT), que impôs, como requisito adicional para aplicação da taxa reduzida, o reconhecimento a priori, por parte das câmaras municipais competentes, da empreitada como “operação de reabilitação urbana” (ORU). Esta tese encontrava-se suportada nos procedimentos previstos no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), os quais a AT considerava serem aplicáveis para efeitos de preenchimento do referido conceito de ORU.
Não podemos, nesta querela, deixar de sufragar a posição das empresas do setor imobiliário, tendo em consideração que a norma fiscal em causa não utiliza, em nenhum momento, o conceito de ORU na sua redação, nem tão pouco remete para qualquer procedimento de certificação prévia por parte dos municípios, para efeitos de validação de tal operação.
O debate evoluiu, assim, naturalmente, para a arena do contencioso, tendo, em concreto, a jurisprudência arbitral do Centro de Arbitragem Administrativa revelado uma ampla volatilidade, ora se pronunciado a favor do contribuinte, ora validando os argumentos da AT.
Em 23 de março de 2025, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) procedeu à uniformização da referida jurisprudência arbitral, afirmando, em linha com o pensamento da AT, que a prévia aprovação da ORU constitui requisito para efeitos de aplicação da taxa reduzida de IVA.
Contudo, tal como sucede em alguns blockbusters americanos, importa selar este desfecho com a famigerada lápide “to be continued…”. De facto, não se encontrará a questão ainda definitivamente encerrada, cabendo, a nosso ver, agora o palco ao Tribunal Constitucional, no sentido de aferir da conformidade do entendimento do STA com princípios firmados na Lei Fundamental e/ou, também, ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), uma vez que está em causa a interpretação de uma norma que procede da Diretiva do IVA.
Desde logo, ao nível constitucional, poderá o entendimento do STA colidir com o princípio da legalidade tributária, na vertente em que exige clareza na definição dos elementos constitutivos da obrigação tributária, impedindo, consequentemente, interpretações extensivas ou por analogia? Atenta a fundamentação subjacente às conclusões do STA, constatamos que este Tribunal não se cingiu à letra da norma aqui em causa. Ao invés, o STA deambula por conceitos (ORU) e diplomas legais (RJRU) não expressamente previstos nessa norma e convoca procedimentos para os quais aquela não remete de forma explícita.
Ademais, questiona-se se este princípio constitucional não obsta a que se imponha, por via jurisprudencial, um requisito que não consta expressamente da norma em causa, mas, antes, de uma contextualização legislativa oblíqua e alheia à estrita hermenêutica fiscal. Sem prejuízo de a interpretação das normas fiscais se abrir a conceitos previstos noutros ramos de direito, devendo tais conceitos ser interpretados no mesmo sentido daquele que nesses ramos têm, parece-nos assaz controversa, à luz do referido princípio, a aplicação integral do RJRU, designadamente dos procedimentos de aprovação aí previstos.
Por seu turno, o raciocínio em que se alicerça o STA, na medida em que escapa à clarividência de um bonus pater familias, poderá, igualmente, postergar o princípio da segurança jurídica, enquanto corolário do princípio da justiça. No caso que nos ocupa, não se referindo a lei fiscal a ORU, não impondo qualquer certificação prévia, nem remetendo para os procedimentos de aprovação constantes do RJRU, poderá concluir-se que a posição da AT e do STA abalou as legítimas expectativas do contribuinte e, logo, a almejada segurança jurídica. De igual modo, questiona-se a conformidade deste mesmo princípio com a alteração de posicionamento da AT a partir de 2020, tendo em conta que as empresas em causa investiram, planearam e executaram operações de reabilitação urbana convictas da sujeição das mesmas à taxa de IVA reduzida.
Também o princípio da proporcionalidade poderá estar ferido, na medida em que se impõe ao contribuinte a adoção de procedimentos desproporcionais às finalidades da redução de taxa em causa e aos princípios que enformam o sistema comum do IVA, aos quais a AT e os tribunais devem obediência. Em concreto, o princípio da neutralidade, enquanto pedra basilar do IVA, não se coaduna, a nosso ver, com a imposição de requisitos formais que obstaculizam a desoneração fiscal de determinadas operações, tal como foi pretendido, neste caso, pelo legislador nacional, a coberto da Diretiva do IVA.
Por fim, e a este respeito, não poderá, igualmente, deixar de se equacionar a hipótese de o TJUE ser chamado a pronunciar-se sobre esta matéria, através de pedidos de reenvio prejudicial formulados pelos tribunais nacionais a solicitação dos contribuintes, no âmbito de processos de impugnação dos atos de liquidação adicional de IVA. Com efeito, a norma aqui em causa reflete, com algumas nuances, o texto constante Diretiva do IVA, pelo que, sendo este texto claro e objetivo no que diz respeito à possibilidade de aplicação de taxa reduzida nas “renovações e reparações de habitações particulares”, a imposição de barreiras formais por parte da AT e do STA poderá colidir com o propósito de tal redução. Pese embora a Diretiva conceda alguma margem aos Estados para definirem os termos concretos das normas nacionais, o TJUE tem afirmado que tal definição não pode frustrar o efeito útil da norma ou impor condições desproporcionais ou excessivamente formalistas que afetem a essência da norma ou o referido princípio da neutralidade.
Refira-se que, quer a via constitucional, quer a via do TJUE, implicam, de antemão, a impugnação, arbitral ou judicial, dos atos de liquidação adicional de IVA que venham a ser emitidos na sequência de processos inspetivos.
O Acórdão do STA estará, assim, longe de ter colocado uma última pedra sobre a questão, sendo previsível que as empresas afetadas lancem mão destes argumentos e vias processuais, na derradeira esperança de ver revertido o sentido que lhes é por ora desfavorável.
Tudo, por isso, em aberto, until the constitutional or the european court sing.
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