Bolflex entra na produção de calçado e recicla janelas de automóveis e carris da Suécia. Com sapatos em quebra, empresas de componentes diversificam. Palmilhas moldam no hóquei e o couro no vestuário.
É em Felgueiras que mora o maior produtor ibérico de solas de borracha injetada, que emprega atualmente 175 pessoas e que fatura perto de 13 milhões de euros. Quase 23 anos depois de ter sido fundada por António Ferreira, a Bolflex prepara-se para entrar agora no setor do calçado com o lançamento de botas injetadas, recicladas e 100% recicláveis, feitas com materiais provenientes da sua própria unidade de transformação de resíduos industriais.
Em declarações ao ECO na Lineapelle, a principal feira internacional da indústria de componentes, em Milão, onde está esta semana a apresentar pela primeira vez este novo produto, o empresário nortenho calcula um investimento a rondar 700 mil euros neste novo projeto das botas, que incluiu a compra de máquinas, o processo de desenvolvimento ou a contratação de uma equipa especializada para este novo segmento de negócio.
“Estamos agora a lançar este projeto das botas. Temos em andamento a possibilidade de ter a nossa própria marca, mas a ideia é mostrar ao mercado o que é possível fazer e atrair as grandes marcas [de calçado] para fazerem estes produtos connosco”, explica António Ferreira, entusiasmado com os primeiros contactos feitos neste evento em Itália. Aponta para um preço à saída da fábrica a rondar os 30 a 40 euros.
Depois de ter registado em 2022 o melhor ano de sempre, com uma faturação superior a 16 milhões de euros, a comercialização das solas foi arrastada pela performance negativa da indústria portuguesa do calçado, que no ano passado perdeu dez milhões de pares na exportação. A maioria dos clientes está em Felgueiras e São João da Madeira, e exporta diretamente 12% da produção para países como Alemanha, França, Espanha, Itália, Turquia, Índia e Moldávia.
O líder da empresa especializada em componentes para calçado destaca a relevância de “tentar diversificar para outros segmentos”, como é este caso da produção do sapato inteiro. Há cinco anos começou por ensaiar fazer malas, mas esse projeto está mais atrasado – “já devia ter avançado mais, mas é um produto caro”. Outra novidade que trouxe à capital da moda italiana são as solas fabricadas através de impressão 3D, que têm como vantagem “não levar mão-de-obra”.
Em 2024, prevê retomar o crescimento com um volume de negócios de 15 milhões de euros, contando para isso com o contributo deste novo segmento das botas injetadas e também da unidade de reciclagem (Rubberlink) na qual investiu há uma década mais de três milhões de euros, tendo patenteado o processo e o produto de desvulcanização da borracha. António Ferreira diz que “está a começar a ser um negócio relevante”. Este ano conta tratar 1.500 a 2.000 toneladas, mas a fábrica situada igualmente em Felgueiras tem capacidade para 400 toneladas mensais.
“Após muito tempo de testes, temos vindo a demonstrar à indústria que é um crime não reaproveitar os desperdícios de borracha. Damo-nos até ao luxo de convidar os nossos concorrentes da área das solas para lhes mostrar o que é possível fazer. Isto é mais do que inovador. A matéria-prima que hoje custa 5 ou 6 euros o quilo estava a ser enterrada, o que é impensável”, descreve o empresário.
Estamos a ser muito procurados por grandes grupos para fazer a reciclagem da borracha. Até tenho receio que não tenhamos capacidade.
No tratamento de resíduos industriais, que no ano passado valeu receitas de 1,3 milhões e até 2025 deve disparar para quatro milhões, a lista de clientes foi, entretanto, alargada a diversos setores. É o caso do automóvel ou da construção, em que deteta “grandes movimentos porque estão aflitos e não sabem o que fazer a tanto desperdício”. À fábrica portuguesa já chegaram, por exemplo, desperdícios da produção de janelas para carros, de pisos de parques infantis ou dos carris dos comboios da Suécia.
“Estamos a ser muito procurados por grandes grupos. Até tenho receio que não tenhamos capacidade. Fomos descobrindo e provando que os polímeros que eram deitados ao aterro podem ser reciclados a 100%, sem se notar no produto final que é reciclado”, completa o sócio-gerente do grupo Bolflex, que já tem os filhos a trabalhar consigo.
Moldes “palmilham” no hóquei, couro no vestuário
O caso desta fabricante de solas de Felgueiras está longe de ser um caso único de diversificação para fora do calçado. A Poleva, sediada no mesmo concelho do distrito do Porto e que faz três a quatro milhões de pares de palmilhas de conforto por ano, é outra produtora de componentes que está a procurar clientes noutros setores. E a redução das vendas no ano passado, pressionada precisamente pelo afrouxamento das encomendas por parte dos clientes do calçado, voltou a dar mais certezas a José Dias.
O administrador desta empresa fundada há mais de 30 anos por dois tios, que acabaria por comprar há uma dúzia de anos, está a participar pela primeira vez na Lineapelle para tentar chegar a novos clientes e reforçar o peso da exportação direta, que ronda atualmente os 20% para vários países europeus e para os EUA. Mas aproveitando a vantagem de fazer os seus próprios moldes, já começou a moldar outro tipo de peças. Por exemplo, peças de proteção para vários desportos, como caneleiras de futebol ou equipamentos de guarda-redes de hóquei em patins.
De Felgueiras para Vila Nova de Gaia, o negócio de peles que o avô começou como comerciante de couro e que Manuel Dias industrializou para transformá-lo em produtos de moda, também está a começar a reduzir a exposição ao setor do calçado. Pesa 80% nas vendas, que no último ano encolheram perto de 20% e fecharam nos quatro milhões de euros. O restante é faturado a clientes na marroquinaria, no vestuário e no mobiliário.
O presidente da Dias Ruivo antecipa que vai passar a fazer menos unidades (mas mais caras) para o calçado e que o vestuário vai ganhar relevância. “Esses clientes estão a apostar em produtos com um aspeto retro e envelhecido. Estamos a trabalhar com empresas de topo, grupos internacionais que fabricam vestuário em Portugal. E os clientes estão a dizer-nos que temos de produzir menos e com mais durabilidade”, frisa o empresário
Onde há boa carne, há boa pele. Os outros comem a carne e nós ficamos com a proteína. Era incapaz de matar um animal para lhe tirar a pele.
Cerca de 80% da produção é exportada para mercados como Alemanha, Espanha ou França. A matéria-prima é comprada sobretudo em Espanha e Portugal, em origens como Vale de Cambra ou Montalegre. “Onde há boa carne, há boa pele. Os outros comem a carne e nós ficamos com a proteína. Era incapaz de matar um animal para lhe tirar a pele”, descreve Manuel Dias.
É uma das 70 entidades envolvidas no Bioshoes4All, projeto de bioeconomia sustentável no setor do calçado englobado no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Liderado pela associação do setor (APICCAPS) e avaliado em 80 milhões de euros, tem na lista de inovações as peles biodegráveis desta empresa de Avintes, as solas com 80% de produtos reciclados da Atlanta ou o investimento da Vapesol na criação e no reaproveitamento dos desperdícios das solas ultraleves de EVA (material de espuma leve e flexível).
Em 2023, enquanto as exportações de calçado encolheram 8,2%, nos componentes aumentaram 12,3%, para 73 milhões de euros, com cerca de 270 empresas que empregam mais de 5.000 pessoas em Portugal. Valores e competências que estão a levar a associação do setor a reforçar a aposta numa lógica de fileira e a encarar estes dois segmentos como “estratégicos” na afirmação da indústria nacional de calçado, preparando-se para lançar uma campanha com o slogan “Portuguese Shoes Cluster”.
(O jornalista viajou para Itália a convite da APICCAPS – Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos)
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Grupo de Felgueiras “dá à sola” nos sapatos e na reciclagem de borracha
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