Depois do crescimento de Tel Aviv, Israel deslocaliza esforços e aposta na dinamização de uma das cidades mais antigas do mundo como exemplo das tecnologias mais disruptivas.
Sexta-feira à noite, baixa de Jerusalém. A chuva de fim de tarde não afastou as dezenas de jovens que se passeiam pela zona de uma das cidades mais antigas do mundo. Até hoje, véspera de Shabat, o dia de descanso semanal no judaísmo. A cidade aproveita a manhã para fazer as últimas compras para o fim de semana e, mais importante, para a reunião semanal.
Dois dias antes, Yehiel Amoyal anda ocupado no Bizmax. O espaço de cowork, fundado em 2015, foi uma resposta à fraca integração dos haredi, judeus ortodoxos que tendem a viver à margem da sociedade de Jerusalém, na força de trabalho. “Não nos basta ser um sítio para trabalhar, trata-se de sermos uma comunidade, um ecossistema”, explica o fundador do Bizmax. É com workshops, cursos e formações que o projeto tem atraído os mais de 80 empreendedores e iniciativas. Mas há mais: para o Heradi sector, foram atribuídas já cerca de 32.000 bolsas no valor de 175 milhões de shekels, a moeda local. O impacto é gigante, asseguram os promotores. “Cerca de 74% das mulheres trabalham mas é difícil para as pessoas perceberem porque têm de ir para o Exército. Fazem os estudos tradicionais e, normalmente como querem ser uma comunidade fechada à sociedade, não querem fazer o serviço militar nem trabalhar”, explica Yehiel.
O espaço, onde só trabalham homens — aos heradi não é permitido conviver e tocar em mulheres que não sejam da família — está totalmente preenchido. As salas pequenas albergam empreendedores que dedicam parte do seu dia a produzir riqueza e valor para o país, coisa que há bem pouco tempo não acontecia.
Em paralelo ao Bizmax, no mesmo piso do edifício, funciona o Kivun, centro de emprego que, desde 2012, empregou mais de 20.000 homens e mulheres pertencentes a este grupo. “A maioria deles estuda fora e trabalha no resto do dia. O que procuramos, e eles procuram, é construir confiança. As pessoas querem andar com outras parecidas com elas, com os mesmos hábitos. O nosso objetivo é sucesso no negócio, esse é o foco”, explica.
O que o Bizmax faz, garante o fundador, é gerar o terceiro nível de impacto. “Diversidade é uma boa palavra mas, no fim do dia, convencer as pessoas é difícil. O nosso papel não é convencer as pessoas a vir. Estamos a dar à comunidade as ferramentas para poderem vencer dentro da força de trabalho. O nosso grande sucesso não é o que fazemos mas conseguir manter o mundo empreendedor sem sair do way of life“.
O nosso objetivo é sucesso no negócio, esse é o foco.
Jerusalém é um mundo à parte. Cidade construída num planalto das montanhas da Judeia, entre o mar Mediterrâneo e o mar Morto, é uma das mais antigas do mundo. Ao longo dos séculos, foi atacada e totalmente destruída — e reconstruída — 23 vezes. Nas ruas — e isso é visível na Old City, a parte velha da cidade — misturam-se pessoas dos quatro grandes quartiers urbanos. Judeus, cristãos, arménios e muçulmanos marcam o compasso vivido dentro e fora das muralhas da cidade. E, não é por acaso que o nome significa “Cidade da Paz”.
“Sou de Jerusalém, as pessoas têm uma relação emocional com a cidade. O jogo muda”, diz Shai Melcer, CEO da recém-inaugurada BioHouse, um espaço que pretende agregar startups e servir, tanto de “casa” como de “escola” para negócios na área da saúde. “Sistematizamos a maneira como as startups estão em contacto com os centros médicos. Toda a gente quer fazer parte da rede porque isto tem valor. E à medida que avançamos, percebemos como podemos melhorar mantendo a visão global (…) Acredito que os grandes projetos e visionários precisam e estar em determinada localização para terem esta visão.”, assegura”. Não foram os primeiros.
A maior aceleradora do mundo chegou a Israel em 2015 para se instalar em Jerusalém. Porquê? Shai-Shalom Hadad, diretor de Operações do MassChallenge, explica. “Aqui tudo é pequeno. Com dois ou três contactos chegamos à pessoa que queremos”, garante Shai. “A desvantagem é que as pessoas ficam cansadas das que pessoas que veem todos os dias”, brinca.
Além de Jerusalém, a aceleradora tem programas em Lausanne, na Suíça, na Cidade do México e, desde 2017, no estado norte-americano do Texas. “A maneira como ligamos os empreendedores é a nossa rede. Aceleramos 136 startups por ano, em Boston e, em Israel, estamos entre as 50 e as 60, anualmente.”
Com um modelo diferente — a aceleradora não requer equity às startups aceleradas –, o MassChallenge aceita startups de todo o mundo e é equity free. As candidaturas ao próximo programa em Israel já estão abertas desde 16 de dezembro: o programa dura sete semanas e, na última call, recebeu 640 candidaturas de 41 países.
“Ninguém estava a pensar a longo prazo, as pessoas tinham medo. Por isso decidimos criar uma aceleradora non profit, porque normalmente o que acontece nestes processos é que as aceleradoras ficam com equity [uma parte da empresa]. Não fazemos isso assim. Acreditamos que chegar aos empreendedores e aos recursos vamos conseguir que eles tenham sucesso sem comprometer os seus desafios financeiramente”, esclarece.
O que Jerusalém também tem, garante Shai, é a sensação de impacto. “Aqui temos o Impact Challenge. (…) As startups têm de provar que têm impacto na comunidade”, detalha. O que fez com que, se no primeiro ano, o programa contou com sete ou oito startups locais, em 2018 40% eram de fora do país. “Tivemos dez equipas da Índia”, explica.
“Jerusalém cresceu imenso nos últimos anos e isso tem a ver com os desafios locais. Muitas pessoas focam-se noutros assuntos”. Como argumentos que explicam o crescimento, Shai aponta vários: o apoio do Governo e da autarquia é um deles, assim como acordos com grandes empresas e o movimento de gente nova para empreender, por si só. “Isso tem impacto em toda a atmosfera da cidade”, explica. Cria aquilo a que chama a “Jerusalem vibe“. “Toda a gente quer ajudar toda a gente”, justifica.
"Dinheiro e financiamento é ótimo mas podemos medir o nosso impacto através da vida das pessoas.”
Mas, como sobrevive uma aceleradora mundial sem recurso a equity das startups que acelera e forma? Shai explica: os recursos do MassChallenge vêm de três fontes essenciais: apoio do Governo, patrocínios de grandes empresas e filantropia. São eles que, não só permitem que o programa de aceleração se realize como garantem o prémio final: uma viagem da Boston e exposição ao mercado norte-americano. Nos Estados Unidos, os participantes ainda têm a oportunidade de competir com outras startups por um prémio de 500 mil dólares.
“Três anos depois do início vemos, em Jerusalém, um impacto interessante. As empresas aceleradas por nós criaram 3.000 postos de trabalho na cidade e mais de 140 milhões de dólares de financiamento conseguido pelas aceleradas que, em 70% dos casos continuam a operar. No entanto, Chai desmistifica estes números. “Dinheiro e financiamento é ótimo mas podemos medir o nosso impacto através da vida das pessoas“, acrescenta.
As universidades e o ecossistema
Além do serviço militar que, segundo os especialistas, é uma das mais-valias de Israel face a outras nações do mundo em matéria de empreendedorismo, o Governo tem impulsionado a relação entre startups, universidades e outras instituições, de maneira a facilitar a troca de conhecimento. “Gostamos que professores e empreendedores venham aqui e nos desafiem”, explica Michael Laiani, investigador da Universidade de Jerusalém.
“Às vezes desenvolvemos coisas para as quais não sabemos a utilização mas cujo uso vai aparecendo com os diferentes parceiros“, esclarece o responsável pelo departamento de 3D da universidade. Michael explica que é nesta sinergia que está a razão do sucesso do departamento: em dois anos, já foram registadas duas patentes e cinco estão em negociação. Como? Muito passa pela vontade das empresas, que manifestam vontade de comercializar produtos desenvolvidos na universidade. “Assinam o contrato e pagam royalties“, explicam. Praticamente ao lado, fica o escritório da Lightricks, startup israelita de criação de conteúdo através de uma app desenvolvida para o efeito.
Com negócio dividido por três áreas essenciais — marca pessoal, pequenos negócios e criatividade aspiracional –, a Facetune (a app desenvolvida) sofreu um crescimento exponencial depois de ter sido usada pelas Kardashian, as irmãs influencers. “As pessoas usam os nossos produtos para criar arte”, explica Zeev Farbman, CEO e cofundador da empresa. Com 150 trabalhadores em Israel — no escritório de Jerusalém –, a empresa abriu espaços também em Nova Iorque e Londres e quer chegar aos 500 colaboradores nos próximos dois anos. Atualmente, conta com 100 milhões de utilizadores.
No Alyn Hospital, o único hospital de reabilitação infantil em Israel e Médio Oriente, Danna Hochstein Mann trabalha de perto com empreendedores. Responsável pelo departamento de inovação, trabalhou em fundos de capital de risco e investimento mas assume que sempre se encontrou mais do lado dos empreendedores. “Temos o laboratório há mais de 30 anos mas, como não podíamos comprar determinadas coisas pelos preços altos, decidimos construir nós mesmos à medida de cada cliente”, conta.
O processo é o seguinte: o doente entra no hospital e lança desafios à equipa que desenvolver soluções à medida do problema. A isso, o hospital chamou “Pele”. O outro lado do “processo” chama-se Alynnovation, e contempla tecnologia escalável e uma vertente mais… comercial. Danna assegura que, dificilmente, o primeiro sobreviveria sem o segundo.
“Somos o único ambiente que coloca a parte médica neste ecossistema empreendedor”, garante. “Os empreendedores precisam de espaço, ferramentas, acesso a especialistas e, sem dúvida, acesso a uma target audience“. E é tudo isso que o Alyn oferece. A oportunidade é clara: “Pode não ser life saving mas é life changing. É transformador, empodera”, diz a responsável.
“Há inovação em todo o lado”, explica Ran Natanzon, diretor de Inovação no Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, assinalando as interações entre a indústria, universidades, corporate, Governo, ecossistema empreendedor e capitais de risco. “Há centros de empreendedorismo em todas as universidades e as câmaras municipais criaram também os seus próprios organismos de promoção e aceleração de ideias para as cidades. (…) O empreendedorismo faz parte da cultura e não acho que o Governo prejudique o processo. Tem até uma boa atitude face ao empreendedorismo, que deve passar por ser um atenuador dos falhanços do mercado. O primeiro fundo de capital de risco foi criado pelo Governo em 1991″, esclarece o responsável. É que, a estratégia é clara. “Se queremos que o PIB cresça não podemos deixar nenhuma parte de fora”, diz.
“Há já 10 mil pessoas no ecossistema de Jerusalém. E se a cidade não era conhecida, até agora, pela tecnologia, muitas empresas internacionais estão a vir agora para criar aqui os seus departamentos R&D”, diz Heidi Zaidel, porta-voz da Our Crowd, plataforma de crowdsourcing de Jerusalém.
Criada para “dar oportunidade às pessoas para investirem em startups”, a plataforma aceita investimentos que arrancam nos 10 mil dólares e personaliza aquilo a que chama a “democratização do capital de risco”.
“Queremos abrir o acesso ao capital de risco no mundo inteiro porque, se não investirmos nestas empresas enquanto são privadas, estaremos a investir tarde demais”, diz Zaidel. Com 14 fundos para investir em digital health, a plataforma conta com 160 startups de 112 países passíveis de investimento. E quer continuar a crescer. É que, para a Our Crowd, “toda a gente precisa de um bocadinho de startup”.
“Criamos valor, dinheiro e bom retorno para os nossos investidores. E sobretudo, estamos a criar ecossistema e a trazer valor pensando em todos os players”, acrescenta Pnina Ben-Ami, da JVP – Jerusalem Venture Partners. Fundada em 1995, a capital de risco foi criada por um arquiteto de Jerusalém que trabalhava com a autarquia a pensar como a cidade poderia ganhar relevância na tech scene nacional.
Só em high tech, Israel tem, de acordo com dados do Ministério, cerca de 6.000 startups. O foco das startups vai para áreas como a internet virada ao consumidor, segurança, gaming, mobile tech e apps e adTech. No ecossistema, só em 2017, houve exits [startups vendidas ou que abriram capital] no valor de 23 mil milhões de dólares. Mas Israel não é só empresas dentro do território: em 2015, era o segundo país (depois dos Estados Unidos) com mais empresas no Nasdaq, índice da bolsa nova-iorquina (75), logo a seguir à China (91).
Duas décadas depois e com 130 empresas investidas, a JVP tem contribuído para o cenário e está no Top 10 das capitais de risco mundiais. “A ideia é mudar a vida das pessoas sem terem de sair de Jerusalém. Mudando a realidade da cidade e construindo, criamos mais ecossistema”, assegura a responsável de marketing da capital de risco israelita, assinalando que ainda que Jerusalém tenha crescido muito nos últimos anos, outro tanto continua por fazer.
“Queremos fazer algo por Jerusalém, sabendo que Tel Aviv continua a ser mais relevante. Trazer dinheiro e oportunidades para a cidade. Um ecossistema é como uma orquestra: quando consegues ligar todos estes fatores, é uma música maravilhosa”.
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Jerusalém, a nova nação-startup de Israel
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