Parlamento e parceiros sociais: esta luta é nova?
João Proença e Francisco Van Zeller garantem que nunca antes tinham visto um acordo de concertação social ser chumbado no Parlamento. Mas a tensão entre deputados e parceiros sociais não é nova.
Num Estado de Direito, quem legisla é o Parlamento. Mas até onde pode ir o poder da concertação social? A tensão entre os parceiros sociais e a Assembleia da República não é nova. Mas é normal haver uma guerra aberta?
A 22 de dezembro, as quatro confederações patronais e uma das centrais sindicais apertaram a mão ao ministro Vieira da Silva: estava fechado o conjunto de medidas que permitia subir o salário mínimo para 557 euros, com o aval dos parceiros sociais. Três semanas depois, os partidos prometeram anular, em São Bento, a medida-chave que tinha sido encontrada na rua João Bastos, em Belém, para compensar o aumento da remuneração mínima.
"Há sempre uma tensão entre os parlamentos e o diálogo social. O que é velho é a tensão; o que é novo é a medida chumbada.”
“Há sempre uma tensão entre os parlamentos e o diálogo social”, reconhece João Proença, ex-secretário-geral da UGT, que leva na bagagem 18 anos na linha da frente da concertação social. “O que é velho é a tensão; o que é novo é a medida chumbada”, diz, garantindo que não se recorda de nenhum outro episódio assim.
Juridicamente, a questão coloca poucas dúvidas. A Constituição atribui à Assembleia da República a competência legislativa. E dá-lhe até, recorda o constitucionalista Jorge Pereira da Silva ao ECO, o poder de fazer regressar ao Parlamento uma competência que tinha sido atribuída ao Governo.
É o caso agora: o Executivo decidiu, por decreto-lei e depois de ouvir a concertação social, uma alteração à Taxa Social Única paga pelo empregador. Está em causa um desconto temporário, de 1,25 pontos percentuais, nas contribuições pagas pelo contratos cujo valor seja o salário mínimo. O Presidente da República promulgou a decisão do Executivo. Mas os deputados do PCP e do BE usaram um direito previsto na Constituição para chamar o assunto ao Parlamento.
A apreciação parlamentar está prevista para esta quarta-feira. Se a medida for revogada no plenário, a decisão nem tem de ser validada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa: é publicada em Diário da Assembleia da República e segue direta para a Casa da Moeda, para ser publicada em Diário da República.
O que vale um acordo em concertação social?
“A concertação social está prevista na Constituição como mecanismo de audição de interessados na lei laboral”, diz Jorge Pereira da Silva. “Estamos no domínio dos princípios políticos, é um órgão de consulta, mas o que lá é decidido não está constitucionalmente obrigado a ser implementado”, frisa. “Vale como esforço de aproximação das partes”, acrescenta.
"A concertação social é importante para a paz social, para a estabilização da economia e dos setores sociais.”
“A concertação social é importante para a paz social, para a estabilização da economia e dos setores sociais”, defende Bagão Félix, em declarações ao ECO. “É um reforço de legitimidade”, soma Viriato Soromenho Marques, professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Há os mecanismos fundamentais para a governação. E depois há os mecanismos de legitimação, que são complementos. Permitem a adesão das pessoas e nenhum Governo se pode dar ao luxo de prescindir deste tipo de mecanismos“, sublinha.
“Mas a concertação só subsiste com apoio político”, nota Bagão Félix, frisando que pela sua natureza, não representa todos. Há confederações patronais que não estão incluídas e há também sindicatos que ali não têm voz. Por isso, é preciso que o Parlamento — que representa a voz dos eleitores — não se oponha ao que lá é decidido. “Não pode ser só concertação social, ou só parlamentarismo”, avisa, apelando para um ponto de equilíbrio.
"O Governo precisa do apoio do PCP e do BE. E isso muda a relação de forças da sociedade civil. O Governo fica mais dependente de uma organização sindical.”
Ora, num Governo minoritário, em que os entendimentos conseguidos com os partidos de oposição à esquerda do PS — BE, PCP e PEV — são válidos apenas para algumas matérias pré-definidas e não para tudo (como tinha sido a prática das coligações parlamentares) a importância da concertação política aumenta. “O Governo precisa do apoio do PCP e do BE”, frisa Soromenho Marques, “e isso muda a relação de forças da sociedade civil”, diz.
"[A concertação social] está estruturada e continua a funcionar com uma lógica do arco da governação, que acabou.”
“Se há coisa nova na situação política é o facto de António Costa ter declarado o fim do arco da governação”, acrescenta Carvalho da Silva, ex-secretário-geral da CGTP. Agora, todos contam. Porém, para o sociólogo, a concertação social ainda “está estruturada e continua a funcionar com uma lógica do arco da governação, que acabou”.
Viriato Soromenho Marques vai mais longe e levanta o véu sobre um agente político que ganhou agora mais peso: a CGTP. O politólogo lembra que os chamados “acordos tripartidos” têm deixado de fora sempre a Intersindical, que tem relações históricas ao PCP. Ora, na atual configuração da Assembleia da República e de apoio ao Executivo, “o Governo fica mais dependente de uma organização sindical”, conclui.
É grave esvaziar este acordo?
Para Francisco Van Zeller, que esteve à frente da CIP entre 2002 e o início de 2010, as consequências são graves. Tal como João Proença, não se lembra de um acordo entre parceiros sociais que tenha sido chumbado no Parlamento. Van Zeller defende que até agora a concertação social era “ultra-respeitada” e que a partir deste momento as negociações estão comprometidas: “Não sei como se vai partir para novos acordos de concertação social com medo da Assembleia da República.”
João Proença recorda o Acordo Económico e Social firmado em 1990. Cavaco Silva, na altura primeiro-ministro, José Manuel Torres Couto, o então secretário-geral da UGT, Ferraz da Costa, pela CIP e Manuel Gamito, pela CCP, chegaram a acordo com o então ministro do Emprego, José Silva Peneda, num conjunto alargado de matérias laborais.
“As medidas foram todas discutidas ao milímetro na Assembleia da República”, garante João Proença. “Os deputados também disseram que os parceiros sociais não podiam discutir as leis e pôr os deputados a aprová-las”, recorda Proença. Mas nesse episódio os decretos-lei do Executivo não chegaram a ser chumbados, garante. Também Van Zeller garante que é normal os parceiros sociais irem mantendo o diálogo com os partidos, para evitar choques frontais.
Já Silva Peneda, antigo presidente do Conselho Económico e Social, reconhece que o ambiente criado agora “não é favorável”, mas recusa que a confiança esteja minada. “Não foi de má-fé”, sublinha. “A lição fica para o futuro”, diz, mas acha que não caberá aos parceiros averiguar se o Governo tem apoio parlamentar para cumprir medidas que venham a ser acordadas. “O Governo é que tem de tomar a iniciativa”, defende. Carvalho da Silva também acha que a confiança não está posta em causa.
Quem perde e quem ganha?
A concertação social perde. Mas esvaziar o acordo de concertação social obtido no final do ano passado também faz mossa na imagem do Governo? “Não faz”, defende Bagão Félix, “não conta”, garante. “O que faz mossa é haver uma falsa maioria, demonstra que a maioria não é sólida, é circunstancial”, defende.
"Já passámos a fase das medidas fáceis. Agora terá de haver mais negociação, mais reuniões discretas, fora dos holofotes.”
Perante o impasse criado, foi Francisco Assis, eurodeputado do PS, que veio sugerir eleições antecipadas. Mas Viriato Soromenho Marques discorda que a polémica tenha capacidade para agitar o cenário político a este nível. “Não tem potencial para isso”, defende. “Vai é obrigar a um esforço de entendimento”, antecipa. “Já passámos a fase das medidas fáceis. Agora terá de haver mais negociação, mais reuniões discretas, fora dos holofotes”, diz.
Para o politólogo, com este episódio o PCP e o BE conseguem vincar a sua posição à esquerda do PS. Já os socialistas surgem mais centrados. Esta redefinição do espaço político ocupado por cada força é importante para os partidos segurarem o seu eleitorado mais tradicional, argumenta. “Para o PS, este episódio não é mau, porque o partido precisa de estar no centro”, nota. Já o PSD “fica muito mal”, defende, porque aparece completamente encostado à direita, mas a alinhar com a posição de partidos da esquerda. “Até o CDS teve a capacidade de se abster”, remata o professor da Faculdade de Letras.
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