Caixa: PS promete interromper deputados que usem emails de Domingues
A confusão invadiu o inquérito à Caixa depois de permitida a consulta dos documentos requeridos potestativamente pelo CDS. Esquerda e direita dividem-se. Saiba como. E quais as consequências.
E se um deputado da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos (CGD) usar a informação que consta nos emails trocados entre António Domingues e o Ministério das Finanças, numa das próximas audições? João Paulo Correia, o coordenador dos socialistas para esta comissão, garante que o interrompe.
A reunião desta quinta-feira onde os deputados decidiram como será consultada a troca de correspondência entre o ex-presidente da Caixa e o Ministério das Finanças pareceu simples. Mas essa foi apenas uma primeira impressão. Os deputados saíram da reunião convencidos de que tinham tomado decisões com consequências diferentes.
O ECO falou com os socialistas, comunistas e deputados da direita e os responsáveis demonstram que têm interpretações diferentes sobre o que aconteceu e as consequências que resultam da reunião. Até ao momento, ainda não foi possível obter o ponto de vista do Bloco de Esquerda.
Vamos por partes. Primeiro, vale a pena recordar os pontos fundamentais do que aconteceu na tarde de quinta-feira. A seguir, o ECO explica-lhe a interpretação e respetiva argumentação do PS, PCP, PSD e CDS sobre o que ficou decidido na reunião. Além disso, revela-se a opinião do atual presidente da comissão parlamentar de inquérito, Emídio Guerreiro.
O que aconteceu na reunião?
Foi logo no início que esta questão foi discutida. O presidente da comissão parlamentar de inquérito (CPI) começa por dizer que existe um requerimento potestativo do CDS que incide sobre a documentação alvo de polémica, que ficou pendente a pedido do PCP. Logo nesse momento o deputado centrista João Almeida deixa um aviso: “A posição do CDS é que este requerimento não deve ser sujeito a votação”.
O mesmo inesperado acontece assim que o deputado comunista Paulo Sá começa a falar. Em causa está o facto de este requerimento ser igual ao anterior, mas potestativo: “sendo potestativo, não é colocado a votação e é assumido a sua consequência”. O deputado do PCP afirma que a documentação deve ser disponibilizada, mas como é “matéria sensível” relativa ao “plano de negócios” não deve ser tornada pública. Assim, deve ser visualizada pelos deputados numa “sala à parte, sem poder ser fotografada, fotocopiada ou reproduzida”.
Os documentos devem fazer parte do espólio desta comissão, devem ser consultados e compulsados pelo deputado relator e as suas informações e o que neles constar devem constar das conclusões do relatório.
A direita fica espantada e responde pela voz de Hugo Soares: “Queria saudar efusivamente a evolução do pensamento do PCP, um grande sinal de respeito pelos deputados desta comissão”, afirmou. O deputado socialista João Paulo Correia pede a palavra: “O requerimento já foi aprovado na comissão de inquérito, e não me recordo de ter recebido grande oposição, a não ser do PS, que manifestou discordância em relação ao requerimento”. Foi, aliás, pouco o que o deputado do PS disse durante a reunião, o que deixou em aberto a sua posição, concretizada mais tarde.
Depois, foi Moisés Ferreira, deputado do BE, a admitir que os “requerimentos foram tratados com deferimento tácito e foi por isso que os documentos chegaram até aqui”, alinhando com o PCP. João Almeida aproveita para dizer que “não pode haver deputados de primeira e de segunda numa comissão de inquérito” e, logo a seguir, Hugo Soares saúda novamente a alteração de postura da esquerda, desta vez do deputado Moisés Ferreira. Contudo, o deputado do PSD faz questão de deixar claro: “Os documentos devem fazer parte do espólio desta comissão, devem ser consultados e compulsados pelo deputado relator e as suas informações e o que neles constar devem constar das conclusões do relatório”. Esta afirmação passou sem contraponto e foi a que suscitou toda a confusão posterior.
A reunião vista pelo PS
Logo após a reunião, é o coordenador do PS na comissão de inquérito que contraria a interpretação de que os documentos passaram a fazer parte do espólio. “Uma coisa é o requerimento, outra coisa é a admissibilidade da documento no âmbito do objeto da comissão”, explicou João Paulo Correia ao ECO, no dia seguinte. Para o deputado socialista a votação realizada em fevereiro continua a impedir que os documentos sejam admitidos e, por isso, afirma sem dúvidas que “os deputados não podem fazer uso da documentação”.
Uma coisa é o requerimento, outra coisa é a admissibilidade da documento no âmbito do objeto da comissão.
“Não temos a menor dúvida de que tudo se mantém. A única coisa que se alterou é que os documentos tinham sido consultados por oito deputados e agora serão por 17″, conclui ao ECO. Mas não é essa a interpretação do PSD e CDS, nem mesmo do PCP que admite que a tal votação “não respeita a igualdade” porque só estavam os coordenadores dos partidos e não todos os deputados da CPI. O PCP diz mesmo que sendo um requerimento potestativo “não dá para não aceitar”.
Contudo, João Paulo Correia não concorda. E se houver necessidade de esclarecer essa interpretação? “Vamos outra vez a votos“, indica o deputado socialista. Até porque se algum deputado fizer uso da informação que consta dos documentos durante uma audição, por exemplo, João Paulo Correia garante que “o PS vai dizer que não o pode fazer”.
A reunião vista pelo PCP
A visão do PCP é próxima dos socialistas, mas tem nuances. Os comunistas continuam a rejeitar que estes documentos estejam no âmbito do objeto da atual comissão. E, por isso, numa eventual votação futura sobre esta questão específica poderão manter-se contra a sua admissibilidade. Mas o deputado Miguel Tiago reconhece que este “novo requerimento é potestativo” e que, por isso, “não dá para não aceitar”.
Assim, o PCP retomou a sua proposta inicial. Logo na reunião em que se colocou a questão de saber se aqueles documentos, com informação sensível e sigilosa, deveriam ser distribuídos aos deputados, Miguel Tiago chegou a sugerir “fazer uma consulta à porta fechada“. Foi isto mesmo que acabou por ser acordado na reunião desta quinta-feira. O deputado explica que esta solução mereceu forte contestação e que por isso “não pareceu possível na altura”. Na reunião de coordenadores, o PCP acabou por votar a favor da não distribuição dos documentos: “Decidimos sob pressão, de ter de escolher entre distribuí-los informaticamente a todos os deputados, ou fechá-los. Decidimos fechá-los”, refere.
Também por respeitarmos esse direito potestativo é que consideramos que os deputados devem poder ver os documentos.
Os comunistas não se vão opor logo à partida caso o conteúdo seja usado politicamente na comissão de inquérito. Miguel Tiago explica a posição ao ECO: “Se um deputado fizer uma pergunta sobre o plano de recapitalização, é muito claro que o presidente deve desautorizar a pergunta. Se for sobre o resto, deve ser feito o apuramento pergunta a pergunta”. Ou seja, o PCP traça uma linha vermelha entre o que é informação sobre a recapitalização e o que poderá ser informação sobre outros assuntos, nomeadamente o que o ECO revelou sobre a correspondência trocada entre Domingues e Centeno.
O deputado comunista vai mais longe: apesar de ter “sérias dúvidas” sobre se a informação relativa ao período em que Domingues não era administrador cabe no objeto da comissão, Miguel Tiago revela que o que levou o PCP a “colocar esta documentação fora do âmbito da comissão são as partes sobre os planos de reestruturação da Caixa — que é a maior parte”. Existem vários “anexos” nos emails que falam do plano de recapitalização que “não podem ser revelados”, defende, uma vez que têm “dados sobre a estratégia comercial do banco”.
Além disso, Miguel Tiago recorda ao ECO que “a deliberação [de fevereiro] de que a documentação está fora do âmbito não respeita a igualdade porque só estavam coordenadores. Mas agora, que a consulta foi permitida a todos os deputados da comissão, qualquer deputado pode contestar essa deliberação”. “Também por respeitarmos esse direito potestativo é que consideramos que os deputados devem poder ver os documentos“, explica.
A reunião vista pela direita
A direta não tem dúvidas: os documentos pedidos pelo requerimento potestativo do CDS têm de ser obrigatoriamente admitidos e consultados por todos os deputados. “A avaliação sobre se os documentos cabem ou não no objeto da comissão de inquérito é do autor do requerimento potestativo”, afirma João Almeida, deputado do CDS, ao ECO. A mesma opinião é partilhada pelo deputado do PSD, Hugo Soares: “O PSD, e a comissão de inquérito, têm a obrigação de conhecer os documentos”.
Uma avaliação jurídica não tem cabimento.
Em causa está o ponto 4 do artigo número 13 do regime jurídico dos inquéritos parlamentares: “Nas comissões parlamentares de inquérito requeridas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º [potestativas], as diligências instrutórias referidas no número anterior que sejam consideradas indispensáveis à boa realização do inquérito pelos deputados que as proponham são de realização obrigatória, não estando a sua efetivação sujeita a deliberação da comissão”.
“Uma avaliação política sobre a informação pode sempre existir, mas só pode ser feita depois de consultada a documentação“, acrescenta João Almeida. No entanto, “uma avaliação jurídica não tem cabimento”. Ou seja, rejeita a ideia do PS de que se possa fazer uma votação sobre a admissão dos documentos na comissão, o que — em último caso — poderia inviabilizar qualquer comissão de inquérito potestativa, onde não existe uma maioria do lado de quem a requer.
A reunião vista pelo presidente da comissão
“Tenho alguma dificuldade em debater essa questão porque esse não foi o tema tratado” na reunião, começa por dizer, ao ECO, Emídio Guerreiro. O segundo presidente da comissão parlamentar de inquérito (CPI), após a demissão de Matos Correia, diz que o tema tratado “foi a metodologia do acesso” e, por isso, refere que o debate que tem visto nas últimas horas “não tem nada a ver com o debate que se fez na comissão”. A esquerda pode impedir a admissão dos documentos? “Isso já não é um assunto hoje em dia”. “Faz parte do espólio da comissão, como é óbvio”, garante.
[A documentação] faz parte do espólio da comissão, como é óbvio.
Ou seja, para o deputado do PSD e atual presidente da CPI, “esse assunto colocou-se quando nem era presidente da comissão”, não agora. Como o requerimento do CDS foi potestativo, para Emídio Guerreiro é muito claro que estes foram admitidos: “Se os documentos não tivessem sido admitidos, tinham sido devolvidos“, contrapõe ao ECO, referindo que “os documentos são aceites, nem é preciso discutir“. O que esteve em causa, acrescentou, foi um pedido do PCP “para fazer uma análise formal ao requerimento potestativo do CDS”.
Assim, o que se discutiu foi a forma de acesso aos mesmos e isso ficou acordado. No entanto, a sua utilização tem de ser feita com cuidado. “Estes documentos fazem parte do portefólio da comissão, mas não podem constar do relatório público”, afirma Emídio Guerreiro, acrescentando que, contudo, “o conteúdo de todos os documentos serve exatamente para o debate“. “Não é passível de publicitação, mas é passível de ser analisado e de ser enquadrado no âmbito dos objetivos da comissão e de cada grupo parlamentar”, explica ao ECO.
Confrontado pelo ECO com estas afirmações, João Paulo Correia respondeu: “Se o presidente da comissão tem essa interpretação, e sabendo que não é consensual, deveria diligenciar uma reunião sobre essa matéria”.
Relatório final pode passar ao lado dos documentos
No relatório final, que vai ser redigido pelo deputado socialista Carlos Pereira, estes documentos — caso se confirme a interpretação do PSD, CDS e PCP de que são admitidos — têm de ser referidos. Tal como explica o regulamento desta comissão de inquérito, “o relatório final refere obrigatoriamente as diligências efetuadas pela Comissão”. Contudo, o seu conteúdo não pode ser revelado, dado que é matéria sensível e sob sigilo.
Podem, ainda assim, ser tiradas conclusões que, não referindo o conteúdo, têm como base informações que daí advêm — mas para isso é preciso que sejam aprovadas por maioria.
Os deputados podem fazer o uso político que quiserem. O que não podem é obrigar a que o relatório traga uma coisa concreta porque ele tem de ser aprovado pela maioria.
Ou seja, a esquerda pode unir-se para que o “uso político” dos documentos não esteja incluído no relatório final, uma vez que o PS, PCP e BE argumentam que não faz parte do objeto do inquérito. É isso que indica ao ECO o deputado comunista Miguel Tiago: “Nada nem ninguém pode impedir um deputado do CDS, ou a mim, de apresentar propostas de alteração ao relatório usando aquela informação. Os deputados podem fazer o uso político que quiserem. O que não podem é obrigar a que o relatório traga uma coisa concreta porque ele tem de ser aprovado pela maioria“.
Essas propostas de alteração ao relatório por parte da direita devem mesmo acontecer. “O PSD, e a comissão de inquérito, têm a obrigação de conhecer os documentos e integrá-los no relatório”, assegura Hugo Soares. Já João Almeida refere que “esta informação não pode não constar do relatório“. “Se é obtida pela comissão parlamentar de inquérito nos termos da lei, a lei não prevê nenhuma limitação”, argumenta, afirmando que “só não constaria no relatório se fosse irrelevante”.
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