Comissão propõe 5 caminhos, eurodeputados querem um sexto
Passaram 60 anos desde a cimeira de Roma que deitou a primeira pedra para a UE, mas agora ela tem de escolher um novo caminho. Eurodeputados portugueses avaliam as respostas possíveis.
Vinte e sete líderes europeus estão este sábado na colina Capitolina em Roma, onde começou o projeto europeu há 60 anos. Se a perspetiva é de relançar a Europa numa altura de crise — com a saída iminente do Reino Unido a ser apenas um dos sintomas mais flagrantes — torna-se claro que não vai sair deste encontro uma declaração revolucionária a traçar um caminho concreto. “Se conseguirmos sequer que os Estados-membros reafirmem a sua fé na Europa, já vai ser um feito”, disse ao Financial Times o ministro para os Assuntos Europeus italiano, Sandro Gozi.
As pistas traçadas pelo Livro Branco da Comissão Europeia, divulgado este mês, já deixam antever a perspetiva das autoridades europeias acerca dos trajetos possíveis para a continuação da União. No entanto, os eurodeputados portugueses no Parlamento Europeu que falaram ao ECO veem falhas nos vários cenários propostos, e quase todos pretendem uma sexta opção, diferente para cada um. As visões da Europa são múltiplas — afinal, são 500 milhões de pessoas em 27 nações, mais uma que já decidiu sair. A nova cimeira de Roma poderá ser uma oportunidade para recentrar estas visões naquilo que têm em comum.
“Os cidadãos têm de saber porque é que a União Europeia, ainda hoje como há 60 anos, continua a ser necessária”, explica ao ECO Andreia Soares e Castro, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). “Fundamentalmente porque é a melhor garantia do Estado de direito”. Para a investigadora, a declaração deste sábado tem de se focar nos pontos em comum. “Claro que existem divergências, não podemos esquecer-nos que a União Europeia integra Estados muito diferentes. Todos têm de comprometer-se de que a UE é a melhor resposta a dar perante todos os desafios, a via da ação coletiva nalgumas áreas, que não todas”.
Também Carlos Zorrinho, eurodeputado português eleito pelo Partido Socialista e pertencente agora ao grupo parlamentar da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), antecipa uma declaração que “deixe todas as portas abertas”. A perspetiva de eleições importantes na UE para breve — em França e na Alemanha — é um dos fatores que o eurodeputado afirma deverem pesar no conteúdo da declaração. “Embora fosse desejável que amanhã ficasse clara a escolha de um cenário, isso não vai acontecer”, refere. Mas quais as opções?
Os cinco cenários do Livro Branco
Apresentado este março pela Comissão Europeia liderada por Jean-Claude Juncker, o Livro Branco para o futuro da Europa é um documento apreensivo que assinala os desafios que a União Europeia enfrenta e delineia cinco caminhos possíveis, que vão desde um enfraquecimento da UE até ao seu fortalecimento quase até ao nível do federalismo.
- Carrying on: Continuar na mesma
O primeiro cenário proposto sugere que a União Europeia permaneça como está, sem que haja uma grande mudança de rumo, havendo apenas “mudanças incrementais”. - Nothing but the single market: Apenas o mercado único
O segundo cenário é de uma concentração no mercado único, reconhecendo que este cenário cria uma “capacidade limitada para agir em conjunto”, e ainda que poderia deixar o euro numa posição de maior vulnerabilidade. - Those who want more do more: Os que querem mais fazem mais
Este cenário é essencialmente o de uma Europa a várias velocidades, em que os países que estiverem interessados em avançar para uma união de maior proximidade podem fazê-lo sem prejuízo para os restantes, que podem deixar-se ficar para trás. - Doing less more efficiently: Fazer menos com mais eficiência
O quarto cenário prevê uma maior concentração em certas áreas onde a União Europeia pode agir melhor em conjunto. O Livro Branco refere como exemplos a defesa — com uma guarda costeira e fronteiriça financiada pela UE, mas refere a limitação de que os países teriam de identificar as áreas de destaque. - Doing much more together: Fazer muito mais, juntos
O quinto cenário previsto no Livro Branco constitui essencialmente um trajeto para uma situação federalista: uma união que vá “mais longe do que nunca em todos os domínios”.
Para Andreia Soares e Castro do ISCSP, continuar da mesma forma parece insustentável porque os problemas da União Europeia requerem uma mudança, e recuar para manter apenas o mercado único também não aparenta ser uma solução viável. E se o federalismo é impossível na conjuntura atual, “apenas dois cenários poderão ser equacionáveis”, na perspetiva da investigadora. “O cenário da União Europeia a duas velocidades, que não é uma ideia nova”, e o cenário quatro, “de fazer menos com mais eficácia”. Na verdade, argumenta, os dois não são incompatíveis. E defende que até já existe fundamentação jurídica para uma Europa em que certos países escolhem avançar mais do que os outros: “No tratado de Amesterdão foi introduzido o regime de cooperações reforçadas, que permite que um mínimo de nove Estados possam avançar ou aprofundar determinada política se assim o quiserem”, sem terem necessariamente a unanimidade de todos os Estados-membros.
O falador ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble já rejeitou totalmente o cenário de federalismo, e de facto o cenário que parece ter mais apoio é o de uma Europa a várias velocidades. “Ainda recentemente vimos os quatro grandes, Alemanha, França, Itália e Espanha, a defenderem esta ideia”, afirma Andreia Soares e Castro.
Mas nem todos veem esta solução com bons olhos, a começar pela Polónia, que já ameaçou rejeitar a declaração de Roma “se ela não incluir os assuntos que são prioridades para a Polónia”, segundo disse a primeira-ministra Beata Szydlo, citada pela Reuters. Os países da Europa de Leste opõem-se com particular veemência a esta ideia, por temerem tornar-se membros de segunda classe da UE se não escolherem ficar na “linha da frente”, como lhe chamou António Costa.
Guntram Wolff, diretor do think tank Bruegel, destaca outro risco de uma Europa a várias velocidades num artigo no jornal grego Kathimerini. “Adiantar a integração entre alguns países nalgumas dimensões levanta questões que têm de ser resolvidas no que toca à coesão da UE. Por exemplo, uma política que avançasse com a integração bancária na Zona Euro poderia reduzir a integridade do mercado único na área bancária e criar um fosso entre os países dentro e fora da Zona Euro“. O desafio? Evitar uma situação “em que as políticas de integração provoquem uma resposta hostil entre aqueles que não estão incluídos nela”.
Eurodeputados têm outras prioridades
O Parlamento Europeu está dividido em oito grandes grupos, mas os 21 eurodeputados portugueses dividem-se por apenas quatro. Paulo Rangel, eleito pelo PSD, pertence ao grupo do Partido Popular Europeu (PPE), e foi o relator do documento que delineia a perspetiva de futuro deste grupo. “Digamos que o que o documento aponta é claramente algo que está fora” dos cenários do Livro Branco, afirma o eurodeputado ao ECO.
A posição do PPE “reflete um equilíbrio entre aqueles que gostariam de avançar para uma integração mais profunda, entre os quais me encontro, e alguns outros”, como é o caso de vários países da Europa de Leste, “que estão um pouco mais reticentes e, no fundo, defendem um avanço mais lento”, sublinha. É, afinal, o grupo com mais deputados no Parlamento Europeu e tem de integrar uma grande variedade de perspetivas. Assim, o documento baseia-se em três pilares “não negociáveis”: a defesa do Estado de direito democrático, a defesa das quatro liberdades (liberdade de circulação de bens, capitais, serviços e pessoas) e a defesa de uma economia social de mercado.
Nuno Melo, eleito pelo CDS mas também pertencente ao PPE, antecipa também que o futuro está no compromisso. “Uma das razões que levou a muitos dos problemas que a Europa vive tem estado no pouco respeito por aquilo que é o princípio da subsidiariedade“, afirma ao ECO, um princípio básico da UE que define que a União só deve intervir nas áreas onde os países individualmente não possam fazer melhor.
O eurodeputado apoia-se numa entrevista recente do líder histórico europeu Helmut Kohl, onde este contrariou o habitual lugar-comum afirmando que, neste momento, mais Europa é menos Europa. “O projeto europeu deve ser conduzido para aquilo que garantidamente funcionou sempre”, resume Nuno Melo: primeiro o projeto de paz, depois o mercado livre, depois a livre circulação de bens, pessoas e capitais. “Eu não sou federalista, assumidamente, mas sou um europeísta convicto”.
Marisa Matias, por sua vez, tem uma posição radicalmente oposta. Para a deputada eleita pelo Bloco de Esquerda e integrada no grupo Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde (GUE/NGL), o Livro Branco representa uma continuação do “caminho que a UE já está a fazer e que nos tens trazido resultados péssimos”. E sublinha este ponto: “Não me revejo de maneira nenhuma no Livro Branco nem nos cenários que nele estão apresentados”.
O que faz com que a deputada se oponha tão veemente a todos os cinco cenários propostos? “Estamos numa fase em que foram abandonados, de forma total ou parcial, os objetivos de convergência entre diferentes Estados-membros e a solidariedade entre os países. Existe mais uma lógica de castigo do que propriamente de solidariedade”, afirma. “E não é por acaso que nós assistimos a um reforço na desconfiança dos cidadãos, ao aumento das forças da extrema-direita”. Para Marisa Matias, nenhum dos cenários do Livro Branco enfrenta esta realidade.
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Ângelo Alves não é eurodeputado, mas é membro do Comité Central do Partido Comunista Português (PCP), que tem três deputados no grupo GUE/NGL, e explicou ao ECO a perspetiva do PCP: “A União Europeia não é reformável”. Porquê? Os deputados do PCP opõem-se ao que consideram ser as próprias fundações da União Europeia: o neoliberalismo, o federalismo e o militarismo. “Se me perguntar se uma reforma da União Europeia que elimine essa base e esses pilares pode alterar a situação, digo que sim”, afirma ao ECO. “Mas este processo de integração só faz sentido para aqueles que o defendem se tiver exatamente estes três pilares, e o Livro Branco da Comissão Europeia é claríssimo nesta matéria”.
Carlos Zorrinho, do PS, integrado no S&D, tem outra perspetiva, e não vê com maus olhos uma Europa a várias velocidades. Embora cuidadoso na escolha dos termos, o eurodeputado disse defender uma certa definição deste modelo, mas não outra. “Há uma boa definição, de que eu gosto: ninguém pode impedir os outros de avançar”, afirmou ao ECO. Mas, pelo contrário, também um grupo de países não pode deixar para trás outro que queira acompanhar.
Mas tanto dentro do S&D como dentro do próprio PS europeu há divergências: a eurodeputada Maria João Rodrigues, por exemplo, defendeu numa entrevista ao Euractiv que a Europa a duas velocidades “é inaceitável” e “viola o princípio de igualdade entre Estados-membros”. E, para Maria João Rodrigues, o quinto cenário quase federalista não merece atenção. “Preferia definir um cenário convincente como ‘fazer melhor em conjunto nos temas mais relevantes'”, disse a deputada.
Apesar de tudo, a divergência faz parte da Europa desde a sua fundação. Um dos pais da UE, Jean Monnet, previa mesmo: “A Europa será forjada nas crises, e será a soma das soluções adotadas para essas crises”. Num momento de crise, poderá ser nesta cimeira de Roma que se começam a abrir caminhos para uma solução — mas nem todos acreditam nisso.
Notícia corrigida às 19:40: Corrige imprecisões acerca dos grupos parlamentares em que se integram os eurodeputados portugueses.
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