Do estado de emergência ao Estado da Nação em oito pontos

Após muitos meses a viver em estado de emergência, Portugal caminha para o futuro pós-pandemia, mas com desafios. O Estado da Nação é debatido hoje. O ECO destaca oito pontos sobre a situação do país.

Os casos aumentam, mas a vacinação bate recordes. O desconfinamento parou, mas a retoma económica continua. Teme-se a falência das empresas, mas o desemprego atingiu mínimos do início da pandemia. É neste limbo em que Portugal se encontra no momento que a Assembleia da República vai debater o Estado da Nação, a principal discussão parlamentar do ano que põe um ponto final na sessão legislativa. O Governo minoritário do PS terá de responder perante as críticas de todos, seja a oposição seja os partidos que viabilizaram o Orçamento, numa altura em que se perspetiva a “libertação total da sociedade” no fim do verão, segundo o primeiro-ministro.

Em antecipação ao debate, António Costa Pinto diz ao ECO não ter dúvidas de que a direita vai criticar a “persistência do PS no poder, as dimensões do clientelismo, a corrupção e a ineficácia e erros do desempenho dos ministros”, enquanto a esquerda vai apontar mais para a “dimensão social da recuperação económica”. Já o primeiro-ministro fará do discurso um reflexo da sua agenda em que salienta a “saída da pandemia e da crise económica com a oportunidade para Portugal dos fundos europeus”, antecipa o politólogo.

Para José Adelino Maltez, este “será um debate de casos” e no qual, mais uma vez, não se discutirá política”. Eduardo Cabrita, Matos Fernandes e João Gomes Cravinho (por causa do hospital militar) são alguns dos ministros que na sua opinião serão trazidos ao calor da discussão.

Já Filipa Raimundo destaca o facto de este ser o primeiro debate desde que entrou em vigor o novo regimento que acabou com os debates quinzenais: existe “alguma sede de exposição sobre o primeiro-ministro para criar soundbytes e dar visibilidade, depois do desaparecimento dos debates quinzenais”, assinala, referindo que o contexto é de baixa popularidade do Governo, mas sem a oposição se “conseguir demarcar” e capitalizar em intenções de voto até ao momento. “Do ponto de vista da oposição não lhes falta coisas para pegar, desde a má gestão da pandemia, independente do plano de vacinação, o desgaste do Governo e as críticas por nomeações como a de Vítor Fernandes e a de Ana Paula Vitorino“, exemplifica.

Vacinação permite “libertação total da sociedade” no final do verão, mas até lá é preciso lidar com aumento de casos

A atual situação epidemiológica é desafiante por envolver mais fatores do que no passado: o aumento da capacidade de testagem e do processo de vacinação e, ao mesmo tempo, o maior ritmo de transmissão das novas variantes que se tornam dominantes e os potenciais efeitos prolongados da Covid-19. Porém, para já, o aumento dos casos não está a refletir-se da mesma forma na pressão no sistema de saúde, em particular no Serviço Nacional de Saúde: os internados, as unidades de cuidados intensivos e mesmo os falecimentos não estão a acompanhar os padrões registados antes da vacinação. Apesar dessa melhoria, o PAN não se inibe de criticar o Governo: “Tem faltado aquilo que é um planeamento e tem-se feito muito a correr atrás do prejuízo”, disse Bebiana Cunha à Lusa.

A pandemia obriga os políticos a trabalharem num território onde as previsões são ingratas”, lembra Adelino Maltez. António Costa já fala em “libertação total da sociedade” após o fim do verão, mas “não sabe, nem ninguém sabe” e “deixou de ter o espaço unânime dos epidemiologistas e médicos de saúde pública”, “houve uma brecha importante”, recorda o politólogo numa alusão à carta contra a tomada de “medidas extraordinárias de confinamento” para combater a pandemia, e “isso deve preocupar o primeiro-ministro e é essa uma das razões pelas quais não fez ainda remodelações”. “Não sabe como conduzir o barco. A sociedade está toda com medo” e qualquer erro pode custar a sobrevivência política, alerta.

Apoios de emergência dão lugar às medidas da retoma, mas incerteza mantém-se

Em 2020, o Governo foi criticado tanto à esquerda como à direita por ser um dos países da UE que menos gastou nos apoios Covid-19. Nas negociações do OE2021 o Executivo foi obrigado a ceder em vários apoios, nomeadamente com o pagamento a 100% do lay-off simplificado, e o segundo confinamento pressionou-o a ir mais longe com a despesa até maio a ficar nos 3.256,6 milhões de euros, acima do total gasto em 2020. Já a receita que prescindiu está nos 438,8 milhões de euros. Apesar destes números, a pressão para gastar mais, seja dos partidos seja da sociedade, mantém-se, principalmente perante o fim de medidas como as moratórias.

O Governo tem defendido que é preciso haver um equilíbrio entre a sustentabilidade das contas públicas e a necessidade de apoiar a economia e argumenta que é preciso manter algumas munições perante as incertezas (cada vez menores) do futuro próximo. Ultimamente, o foco tem estado em medidas de relançamento, em vez de medidas de emergência, como é o caso do IVAucher, as garantias para os créditos em moratória e o fundo de capitalização das empresas. A dúvida está no próximo ano: não se sabe o que mais tem o Governo na manga além do PRR, nem se irá cumprir com o alívio do IRS prometido em campanha. Para já, só garante que haverá estabilidade fiscal.

Economia recupera com turismo a atrasar. Dívida pública fica com o legado da crise

Portugal foi o único país da União Europeia a contrair no primeiro trimestre por ter de fechar significativamente a economia por causa da segunda vaga da pandemia. Essa evolução não estava nos planos e atrasou a retoma económica, mas no segundo trimestre são muitos os dados que apontam para um crescimento expressivo não só pela base de comparação de 2020 ser baixa mas porque há frações da economia que já estão no nível pré-pandemia. Mas ainda falta muito para o turismo recuperar totalmente e é esse fator que leva Portugal a ser um dos países europeus mais atrasados na retoma (lá chegará em meados de 2022).

No mercado de trabalho, os apoios do Estado e a resiliência das empresas evitaram cenários mais catastróficos e a taxa de desemprego subiu ligeiramente. O número de desempregados registados no IEFP baixou nos últimos três meses e atingiu em junho um mínimo de março de 2020, ficando próximo de eliminar por completo o impacto da pandemia no desemprego. Porém, há uma cicatriz na dívida pública, provocada pelos défices altos, que demorará a desaparecer. E nem tudo são rosas, como recorda o PCP — “O estado da nação é, naturalmente, um estado de grandes problemas económicos e sociais”, disse João Oliveira à Lusa –, recordando os despedimentos coletivos em algumas empresas.

A dúvida sobre a execução dos fundos europeus, a transparência e a corrupção

É expectável que Portugal receba a primeira tranche de 2,2 mil milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ainda este mês, o que vai representar um marco para a “bazuca”, mas a execução do plano já está em andamento dado que o Orçamento do Estado para 2021 (OE 2021) já tinha uma verba de antecipação do PRR, a qual até pode ser aumentada. Ainda assim, este será um dos principais desafios do país nos próximos cinco anos, dado o risco de perder fundos, e, apesar das linhas mestres do plano já estarem todas definidas, é preciso assegurar que a execução corresponde às expectativas não só em termos de timing como de efeitos no crescimento da economia. Ao PRR vão acrescer os fundos europeus “normais” do Quadro Financeiro Plurianual (QFP 2021-2027).

Os partidos têm questionado bastante a capacidade do Estado de gastar bem (ou não) os fundos europeus, baseando-se, por exemplo, em estudos sobre o que foi feito no passado, como é o caso da recente análise feita pelo economista Fernando Alexandre. Além disso, mostram-se preocupados com o potencial de corrupção e de fraude dado o elevado volume de verbas e da capacidade de fiscalização, apesar das várias instituições que vão estar a olhar para as operações antes, durante e depois de estas se concretizarem. O Bloco usa esse perigo para criticar o estado da Nação perante os casos judiciais as últimas semanas: “As pessoas reconhecem, o país percebe, com tantos sacrifícios que foram pedidos, para que uma elite desgovernasse o país e vivesse às custas desses sacrifícios gerais”, disse Pedro Filipe Soares à Lusa.

Uma coisa é certa: este será um trunfo que o Governo poderá usar como impulso da economia, a seu crédito, ainda que seja financiado pela União Europeia. Para Filipa Raimundo, o primeiro-ministro vai focar-se nas “coisas positivas e no futuro porque as previsões de crescimento são boas e tem bastante dinheiro dos fundos europeus e pode explicar o que pretende fazer com eles“. António Costa pode ainda argumentar que esteve ativamente envolvido no acordo da bazuca, nomeadamente com a aprovação do aumento dos recursos próprios e dos primeiros PRR, durante a presidência portuguesa do Conselho da UE no primeiro semestre deste ano.

O dossier em aberto da TAP e a necessidade de recapitalizar as empresas para a retoma

A TAP é uma das vítimas da pandemia. O Governo nacionalizou a empresa, apresentou um plano de reestruturação a Bruxelas, e apesar da luz verde para uma ajuda de emergência de 1,2 mil milhões de euros, o dossier teima em não descolar. Apesar das dezenas de despedimentos, que podem ainda não ficar por aqui, a Comissão Europeia enviou o tema para investigação aprofundada. O Governo já fala num plano B que passa pela entrada da Lufthansa no capital da TAP e uma possível redução dos níveis de ajuda. A oposição não tem poupado ataques ao Governo pela forma como tem gerido o tema (que se avolumou com a ajuda que a TAP deu à Groundforce) e o peso que terá no bolso dos contribuintes.

A necessidade de capitalização da TAP não é única. Se há coisa que a pandemia veio acentuar foi a falta de capitais próprios das empresas nacionais, sobretudo as PME. As moratórias ajudaram num primeiro momento e agora que chegaram ao fim foi necessário criar mecanismos de capitalização que evitassem uma onda de falências. O Banco de Fomento foi chamado a financiar as soluções, também com verbas do PRR, mas se a operacionalização do banco é uma arma que o Executivo pode esgrimir a seu favor, as suspeitas do envolvimento de Vítor Fernandes na Operação Cartão Vermelho é mais um caso que a oposição pode explorar. Isto porque o antigo administrador do BCP e da Caixa Geral de Depósitos foi uma escolha do ministro da Economia. E como sublinha José Adelino Maltez, o debate será “um tiro à peça: quanto mais ministros na berlinda melhor”.

Xadrez político começa a mexer e há remodelação governamental à vista

As últimas sondagens divulgadas antes do Estado da Nação não trazem boas notícias para ninguém: a popularidade do Presidente da República baixou, assim como a do primeiro-ministro (que não se refletiu muito nas intenções de voto no PS), e a subida do PSD foi curta face à distância que tem do PS. O terceiro lugar continua taco a taco entre o Bloco e o Chega e os restantes partidos (IL, PAN e PCP) mantêm-se com votações aproximadas, à exceção do CDS que quase desaparece. Os partidos entram assim no verão sem mudanças significativas no xadrez político, apesar de se notar uma “consolidação” dos novos partidos à direita (ainda insuficiente para governar), assinala Costa Pinto, além da ascensão do Chega e da queda do PCP (o que dá mais votos aos partidos à direita do PSD do que aos partidos à esquerda do PS), uma tendência que já tem algum tempo.

Para José Adelino Maltez “tocaram os sinais de alarme”, “é o sinal da mudança psicológica”, “de um potencial crescimento do PSD”. “A situação da esquerda institucional é dramática, nem percebeu o que lhe aconteceu”, diz o politólogo. “Pensam e organizam-se e depois têm este resultado nas sondagens, com o Bloco à beira de André Ventura”, acrescenta o politólogo. “Há um território do centro que tem de ser desbravado pelo PSD ou pelo PS e Rio, com todas as asneiras, tem surfado melhor a onda“, defende.

É verdade que a discussão sobre o desgaste do Governo é cada vez maior, principalmente por causa dos sucessivos casos do ministro da Administração Interna, Eduarda Cabrita, algumas notícias sobre governantes que querem sair (exemplo de Augusto Santos Silva) e a longevidade de alguns no cargo. O Governo está “gasto, cansado, com vários ministros a cometerem muitos erros”, diz o PSD.

Porém, o primeiro-ministro já afastou esse cenário, ainda que os analistas políticos sejam quase unânimes a dar como certas mexidas no Governo antes ou depois das eleições autárquicas — momento em que ficará também definida a continuação (ou não) da liderança de Rui Rio do PSD –, dois anos após o arranque desta legislatura. “António Costa tem a remodelação pronta”, garante Adelino Maltez. Mas a decisão de avançar com a remodelação será tomada “de acordo com a temperatura” política. “De derrotado pode passar a vencedor da opinião pública com a remodelação”, sublinha o investigador de ciência política, recordando o que se passou na vizinha Espanha com Pedro Sanchéz a remodelar o seu Governo recentemente. Quando acontecer, será de “surpresa”, antecipa Costa Pinto.

As divergências de Marcelo e Costa, com o TC à mistura

Tanto o Presidente da República como o primeiro-ministro rejeitam que exista tensão entre Belém e São Bento, mas não escondem que não pensam da mesma forma, a começar pela gestão da pandemia, com Marcelo a insistir para que não se volte atrás e Costa a dizer que não é possível garanti-lo (apesar de não querer recuos). Mas até aí houve concordância no final com Marcelo a elogiar o equilíbrio das novas regras definidas pelo Governo, apesar da resistência e polémica com os testes, para lutar contra a subida de casos. Também no desenho final do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) há divergências, tendo o Presidente repetido recentemente as críticas que já tinha feito em abril quando foi apresentada a versão final entregue à Comissão Europeia.

A discórdia subiu um nível quando se trata não só de Belém e de São Bento, mas também envolvendo a Assembleia da República e os entendimentos à margem do Governo minoritário do PS. O primeiro embate foi o aumento dos apoios sociais com Marcelo a adivinhar uma derrota jurídica mas uma vitória política ao colocar-se ao lado da maioria do Parlamento e dos portugueses que pediam mais apoios durante o confinamento. Essa ideia foi repetida pelo próprio na sequência das críticas de vários comentadores após o Tribunal Constitucional ter decidido que a subida era inconstitucional por violar a lei-travão, tal como defendia o Governo. Agora avizinha-se uma nova batalha constitucional por causa de dois diplomas do Parlamento (um deles já promulgado por Belém) que obrigam o Governo a mexer no recrutamento de professores, o que o Executivo diz que viola a separação de poderes inscrita na Constituição, segundo o Expresso.

OE2022 com “bazuca” e sem limite ao défice, mas não se pode perder foco das regras

O Governo começou na semana passada a fazer o ponto de situação com os partidos sobre a execução do Orçamento do Estado em vigor, o qual servirá de ponto de partida para as negociações do próximo que arrancarão depois do Estado da Nação. Após ter conseguido aprovar dois Orçamentos de emergência durante a pandemia, o OE2022 terá outra filosofia (de retoma da economia), vários milhares de milhões vindos da União Europeia e ainda será sem obrigação de cumprir as regras orçamentais, o que dá ainda menos motivos para haver roturas. Porém, a secretária de Estado do Orçamento já avisou a esquerda de que não se pode perder o foco das regras.

Tanto o Executivo como os partidos que viabilizaram o último OE não avançam ainda com medidas e cadernos de encargos — as discussões com o Bloco serão mais tarde e não se espera uma mudança no sentido de voto –, focando-se na execução do OE2021 e remetendo a discussão do OE2022 para mais tarde. Mas há já uma queixa: a data das eleições autárquicas, a 26 de setembro, irá criar “dificuldades” às negociações do Orçamento, não pelos resultados mas pelo curto calendário posterior até à entrega no dia 11 de outubro, alertou o PCP. Fora da negociação orçamental, mas em modo crítico sobre a política económica está o PSD que aponta o dedo ao PS por não ter “vontade nenhuma de reformar o que quer que seja”, disse Afonso Oliveira à Lusa, para que a economia portuguesa seja mais competitiva.

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