Tornar englobamento no IRS obrigatório ameaçaria capitalização das empresas
O englobamento obrigatório de todos os tipos de rendimentos no IRS é uma das matérias que estão a ser discutidas, na preparação do Orçamento do Estado para 2022.
O Governo está a negociar com a esquerda o englobamento obrigatório dos diversos tipos de rendimento no IRS, no âmbito do Orçamento do Estado para 2022. Esta não é a primeira vez que a medida é colocada em cima da mesa — aliás, consta até do programa do Executivo de António Costa –, mas nunca chegou a sair da gaveta. Os fiscalistas ouvidos pelo ECO avisam agora que, a concretizar-se, estará em causa um agravamento dos impostos, que poderá trazer efeitos muito negativos à economia, como a descapitalização das empresas e o desincentivo ao mercado de arrendamento.
No programa com que o PS concorreu às eleições legislativas de 2019, estava clara a vontade de “caminhar no sentido do englobamento dos diversos tipos de rendimento em sede de IRS”. Mais tarde, essa medida viria a constar também do programa do Governo. E esta é também uma das grandes bandeiras do PCP, para a área fiscal.
Assim, na discussão na especialidade dos Orçamentos do Estado para 2020 e 2021, por exemplo, estiveram em cima da mesa propostas comunistas neste sentido, mas os socialistas ajudaram a chumbá-las. Agora, segundo o ECO apurou, o assunto voltou a ser trazido para a ribalta, no âmbito das negociações à esquerda do Orçamento para 2022. Os fiscalistas ouvidos pelo ECO deixam, contudo, críticas a essa medida e avisam que será sinónimo de um agravamento fiscal.
Atualmente, o englobamento no IRS é opcional para três categorias de rendimentos: E (rendimentos capitais, como juros de depósitos ou dividendos), F (rendimentos prediais) e G (incrementos patrimoniais). Nestes casos, o contribuinte pode optar por não somar estes valores aos seus rendimentos, por exemplo, do trabalho dependente e, em vez disso, sujeitá-los a uma taxa liberatória fixa de 28%.
Ora, como o IRS é progressivo, juntar estes valores aos demais poderia significar uma subida de escalão e, consequentemente, da taxa a aplicar, sendo que essa taxa de 28% é mais baixa do que aquela prevista (a taxa normal) para cinco dos sete escalões, pelo que é tendencialmente mais vantajoso optar por não englobar os referidos tipos de rendimentos.
Nas propostas que deu a conhecer nos anos anteriores, o PCP defendia, por exemplo, que os contribuintes com rendimentos acima de 100 mil euros anuais deveriam estar sujeitos ao englobamento obrigatório dos rendimentos prediais e de capital. Para este ano, ainda não se sabe o que está, em concreto em cima da mesa, mas, como está desenhado o modelo tributário, deverá significar mais impostos para certos contribuintes.
“O englobamento total de todas as categorias de rendimentos, tendo em conta as escandalosas taxas normais de IRS e os miseráveis escalões a que estamos sujeitos, mais não significaria do que um aumento da carga tributária direta para quem ainda vai tendo alguma propensão para a poupança“, sublinha João Espanha, advogado da Espanha e Associados, em declarações ao ECO. O especialista em fiscalidade explica que é, sobretudo, nos rendimentos capitais “que a pancada se fará sentir” e atira que o alargamento do englobamento “é, em geral, antissistémico” — isto é, vai contra “alguns dos pilares do tributo” –, além de estar desalinhado com as mais recentes tendências. “Só se justifica como moeda de troca para manter o poder. O partido do Governo trocará um forte desincentivo à poupança por mais um Orçamento do Estado patchwork“, acrescenta.
Sobre o lado político desta medida, João Espanha diz ainda que negociar o englobamento dos diversos tipos de rendimentos no IRS “no regateio do OE é uma péssima ideia”. “Parece-me totalmente tonto pretender um IRS super progressivo e, de outra banda, sofrermos a carga de uma miríade de tributos indiretos regressivos, que pesam mais a quem ganha menos”, frisa ainda o fiscalista.
Também Nuno Cunha Barnabé, sócio da Abreu Advogados, critica a possibilidade de o englobamento no IRS se tornar obrigatório para os chamados rendimentos passivos. “É uma alteração profunda à estrutura atual do IRS”, começa por salientar, em conversa com o ECO o especialista, que lembra que, na reforma do IRS de 2015, o englobamento também foi ponderado, mas acabou descartado face a uma série de argumentos “que se mantêm válidos“.
Nuno Cunha Barnabé sublinha que estão em causa rendimentos “muito flexíveis”, pelo que qualquer alteração significativa à tributação — como a implicada na medida em questão — levaria os investidores a “ajustarem os seus comportamentos“. Resultado? As empresas portuguesas poderiam ficar ainda mais descapitalizadas e, no mercado de arrendamento, esta medida poderia ser mesmo um desincentivo.
A propósito, João Caiado Guerreiro, da Associação Portuguesa de Proprietários (APPROP), enfatiza que “ao aumentar a pressão fiscal” vai cair o investimento “em casas novas, na reabilitação e, claro, aumentar as rendas”. Isto quando hoje “mais de metade da renda” já vai para o Estado, através de impostos. “Quando um inquilino paga a uma renda de mercado de 1.000 euros em Lisboa, três meses são para pagar os 28% da taxa liberatória de IRS“, detalha Diana Ralha, da Associação Lisbonense de Proprietários, que diz ver com “enorme apreensão” a possibilidade de o englobamento se tornar obrigatório para os diversos tipos de rendimentos.
“O englobamento obrigatório afetaria, diretamente, todos os investidores que apostaram nos últimos anos no mercado do arrendamento e potenciará a fuga ao fisco, sendo expectável que um maior número de contratos de arrendamento fique por registar para que se evite a aplicação de taxas mais elevadas do que a de 28% e poderá mesmo provocar um aumento do valor das rendas, já de si altas, especialmente em Lisboa e Porto, pois, sendo a carga fiscal superior, é expectável que os senhorios aumentem as rendas para suportar esse encargo“, antecipa, nesse sentido, Rogério Fernandes Ferreira, da RFF Advogados.
O já mencionado advogado da Abreu frisa, por outro lado, que, entre os demais países europeus, a tendência não é o englobamento, mas a alteração da taxa ou até a criação de vários escalões nessa taxa. Optar por um caminho diferente poderia levar, acrescenta o mesmo, a um “desvio do investimento“, particularmente grave num momento em que as empresas e a economia nacional ainda não recuperaram do impacto da crise pandémica. “A solução tem de ser muito bem calibrada e cirúrgica“, defende, por isso, Barnabé, que atira que, caso contrário, nem é “evidente” que este englobamento tenha “potencial de receita fiscal significativa”.
Inês Pereira de Melo, advogada da Carlos Pinto de Abreu & Associados, junta-se aos críticos: “O englobamento obrigatório para todos os tipos de rendimentos é uma medida irresponsável, uma brutalidade, um absurdo total, uma inusitada violência fiscal. Pior, é uma medida cega, destrutiva e violadora dos princípios da razoabilidade e da equidade“. Em declarações ao ECO, a advogada defende que tal medida “impeliria as pessoas à fuga, à inércia ou à desistência”, desincentivando a poupança e o investimento. “As famílias e, sobretudo, a classe média veriam chegar o sistema fiscal a um ponto verdadeiramente confiscatório“, diz.
Também as advogadas Marta Gaudêncio e Maria Norton dos Reis, da Pares Advogados, não veem com “bons olhos” a possibilidade de o englobamento se tornar obrigatório para todos os tipos de rendimentos. “Perder-se-ia a previsibilidade de conhecimento sobre a tributação que o legislador, até ao momento, entendeu conferir a certos tipos de rendimento – que, de resto, vigora em vários países”, salientam e garantem que não têm dúvidas de que esta medida desincentivaria o investimento. “Quanto aos rendimentos de capitais, tornar-se-á cada vez menos interessante realizar investimentos financeiros, o que seguramente não irá estimular a poupança e poderá ter consequências ao nível dos mercados de capitais e do investimento realizado nas empresas. É preciso não esquecer que são as empresas que criam emprego, sendo necessário dar-lhes condições para o fazerem”, afirmam, em declarações ao ECO.
A propósito, Samuel Fernandes de Almeida, da Vieira de Almeida, admite que tornar o englobamento obrigatório “poderá ser um desincentivo [ao investimento], quando Portugal já é o 33º do ranking da competitividade fiscal no seio da OCDE, que conta com 40 membros”, mas sublinha que o problema é mais amplo do que isso: “O problema está no modelo económico e fiscal proposto e imposto aos portugueses“, diz ao ECO.
Já Fernando Castro Silva, sócio da Garrigues, sublinha que o incentivo ao investimento “pode também ser dado pelo achatamento da curva da tributação“, Isto uma vez que, “com o efetivo alargamento da base tributável através do englobamento”, será possível reduzir gradualmente as taxas de tributação sem afetar os níveis de arrecadação essenciais ao financiamento do Estado, salienta o especialista.
As negociações sobre o Orçamento do Estado para 2022 vão continuar a decorrer, sendo que o Governo tem de apresentar no Parlamento a sua proposta de OE até 11 de outubro. Para a área fiscal, está também previsto o desdobramento dos escalões do IRS, além do prolongamento do IRS Jovem e do reforço das deduções fixas por dependente. O ministro das Finanças já garantiu que 2022 não será um ano de austeridade.
(Notícia atualizada às 10h25 com mais informação)
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