Espaço Schengen abanou durante a pandemia. Ainda tem remédio?
Durante a pandemia, o Espaço Schengen não cumpriu o pilar da sua criação: o da livre circulação. Controlos de fronteiras ou regras diferentes de entrada em cada um dos Estados permanecem até hoje.
As consequências da Covid-19 estendem-se para além de uma crise sanitária e económica. Entre os muitos “danos colaterais” da pandemia, destaca-se o Espaço Schengen, a partir do momento em que os seus 26 membros começaram a impor fronteiras entre si para conter a propagação do vírus. Numa altura em que os países já levantaram praticamente todos os controlos fronteiriços face à melhoria da situação epidemiológica, como avaliar a resposta à pandemia deste espaço que permite a livre circulação sem uso de passaporte? E o que pode reservar o Espaço Schengen no futuro?
Controlos temporários das fronteiras internas – sendo que alguns ainda perduram -, testes de despistagem, imposição de quarentenas ou até proibições de entrada e saída do Espaço Schengen tiveram um impacto direto no quotidiano dos cerca de 400 milhões de cidadãos europeus desde que o “Velho Continente” se converteu no epicentro da pandemia, em março de 2020.
Com a adoção de medidas unilaterais pelos membros Schengen para o controlo da propagação da Covid-19, o antigo eurodeputado Carlos Coelho reconhece ao ECO que, “num primeiro momento, Schengen não esteve à altura do que os cidadãos esperavam e as empresas necessitavam”.
Para o também fundador e presidente da plataforma de cidadania Nossa Europa, o controlo coordenado das suas fronteiras externas foi uma “tremenda dificuldade” para o Espaço Schengen, sendo exemplo que uma eventual decisão de Portugal fechar as fronteiras a viajantes da África do Sul “era inútil” se a Espanha ou a Alemanha as mantinha abertas.
Desde as falhas de abastecimento, devido às interrupções nas cadeias logísticas mundiais, às famílias impedidas de se reencontrar ou que enfrentaram dificuldades em cruzar fronteiras, a reintrodução de fronteiras e de medidas de controlo descoordenadas fez-se sentir no dia-a-dia dos cidadãos europeus. Neste contexto, a diáspora portuguesa, em particular, “viveu momentos dramáticos”, com as mudanças “constantes e erráticas” nos controlos fronteiriços e nas medidas de saúde pública, aponta.
A este propósito, a chefe da delegação de Bruxelas do think tank Centre for European Reform (CER) considera que o facto de os países Schengen terem adotado políticas diferentes entre si para enfrentar a Covid-19 foi uma “resposta natural”. Contrariamente ao ex-eurodeputado, Camino Mortera-Martinez refere ao ECO que o Espaço Schengen está “muito bem equipado” para lidar com uma crise sanitária, tendo demonstrado ser “suficientemente resiliente” para reagir ao choque da pandemia – o que, ressalva, “não significa que seja perfeito”.
No entanto, concorda que o controlo de fronteiras foi “muito questionável”, representando, aliás, o “centro dos problemas” para o continente europeu, até porque os Estados-membros não falavam entre si nem com a Comissão Europeia por forma a dar uma resposta coordenada.
Desde 2006 que o Espaço Schengen, formado por 22 dos Estados-membros da União Europeia (exceto Bulgária, Croácia, Chipre, Irlanda e Roménia) e ainda por Islândia, Noruega, Suíça e Liechtenstein, é regido pelo Código de Fronteiras Schengen (SBC, na sigla em inglês), que permite a implementação de tais restrições. Contudo, estas “têm de ser temporárias” e os países foram muitas vezes inconsistentes na sua utilização das regras, recorda a analista do CER.
O papel da Comissão Europeia
Em outubro de 2020, um acordo entre o Conselho Europeu e a Comissão Europeia permitiu adotar um programa de restrições temporárias de viagens não indispensáveis de países terceiros para o espaço da UE. Apesar de ser apresentado como uma abordagem coordenada, ainda estava longe de resolver as graves repercussões nos direitos dos europeus, visto que este acordo impediu a entrada no Espaço Schengen de cidadãos não-europeus que não residissem permanentemente na UE.
“Schengen não estava preparado para uma crise de saúde pública como aquela que vivemos então – e vivemos, com diferente intensidade, hoje. Mas ficou claro que apenas juntos, coordenados e com um papel liderante da Comissão Europeia podíamos responder às necessidades dos europeus e fazer face às dificuldades e exigências impostas pelas pandemia.”
As restrições à livre circulação foram sendo gradualmente abolidas e de forma coordenada apenas a partir de 2021, com a compra conjunta de vacinas contra a Covid-19 acordada entre os Estados-membros e, sobretudo, a criação do certificado digital Covid. Estes dois instrumentos foram fulcrais para facilitar a circulação das pessoas de forma segura e livre num contexto pandémico, em todos os Estados-membros da UE, nos países do Espaço Schengen (Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça) e em vários países e territórios não pertencentes ao bloco.
Posto isto, mesmo reconhecendo que “Schengen não estava preparado para uma crise de saúde pública como aquela que vivemos então – e vivemos, com diferente intensidade, hoje”, Carlos Coelho considera que “ficou claro que apenas juntos, coordenados e com um papel liderante da Comissão Europeia” se pode responder “às necessidades dos europeus e fazer face às dificuldades e exigências impostas pela pandemia”.
A importância da Comissão Europeia no decorrer da pandemia foi igualmente sublinhada pela chefe da delegação de Bruxelas do CER. O início de 2021, com o começo do processo de vacinação em vários Estados-membros, foi “a solução para os nossos problemas”, destaca Camino Mortera-Martinez.
O que esperar do Espaço Schengen no futuro?
De momento, ainda se mantêm algumas restrições à circulação em países Schengen. Portugal, por exemplo, mantém a obrigatoriedade de mostrar um certificado digital Covid ou um teste negativo à chegada ao país.
Contudo, em dezembro passado, a Comissão Europeia apresentou uma reforma para o Espaço Schengen, como resultado das lições aprendidas durante o pico da pandemia, mas que aborda também outros desafios que a área tem enfrentado na última década, tais como a segurança e a migração.
Esta nova estratégia tem como um dos pilares a manutenção da livre circulação de pessoas, bens e serviços através do reforço das fronteiras externas, estando prevista a continuação da cooperação com países terceiros nas questões migratórias, tais como a Líbia, Marrocos e a Turquia.
A UE não resolverá o seu problema de confiança apenas com leis ou decisões judiciais, porque este é um problema que deriva de diferenças políticas, e não legais.
A nível interno, a proposta da Comissão apela a uma cooperação policial mais eficiente, por exemplo através de uma melhor partilha de informação sobre DNA, impressões digitais, registo de veículos e informação de passageiros, e à criação de relatórios anuais e visitas de verificação sem pré-aviso a Estados-membros para melhorar a governação do Schengen.
Agora, “está na mão do Parlamento Europeu e do Conselho apetrechar Schengen, prepará-lo para enfrentar crises futuras”, frisa Carlos Coelho. Para o antigo eurodeputado, que representou o PSD na assembleia europeia entre 1998 e 2019, a pandemia “pode bem vir a transformar-se num momento de refundação e mudança” para o Espaço Schengen. “Vamos ver o que proporciona o debate que se segue”, remata.
Num Eurobarómetro encomendado pela Direção-Geral da Migração e dos Assuntos Internos em 2018, “a expressiva maioria dos cidadãos” (cerca de dois terços) reconhecem o Espaço Schengen e a liberdade de circulação como principal conquista do projeto europeu, lembra ainda Carlos Coelho. Além disso, 75% dos cerca de 30.000 cidadãos da UE inquiridos consideram que o espaço Schengen é também vantajoso para os negócios nos países membros.
Camino, por sua vez, considera que o bloco comunitário não necessita de reformar o Espaço Schengen, mas antes de reconstruir a confiança dos cidadãos nos governos e nas instituições de Bruxelas. “A UE não resolverá o seu problema de confiança apenas com leis ou decisões judiciais, porque este é um problema que deriva de diferenças políticas, e não legais”, defende, acrescentando que a reconstrução da confiança “exigirá um nível mais elevado de responsabilização sobre a forma como as políticas do espaço de liberdade, segurança e justiça da UE são decretadas a nível nacional”.
Por fim, a analista do CER aponta os desafios futuros para o Espaço Schengen, reconhecendo que o maior deles, no imediato, é a Rússia, visto que a guerra na Ucrânia “irá traduzir-se em migração” e pode colocar em causa a segurança na Europa. “Não sabemos o que vai acontecer, pode causar problemas entre Estados-membros e nos Estados-membros”, alerta.
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