Bloqueio nos portos ucranianos vai castigar preço da comida em Portugal
Analistas avisam que atual bloqueio nos portos da Ucrânia pode levar a novo aumento dos preços, escassez, insegurança alimentar ou a tensões sociais, penalizando também a economia portuguesa.
O bloqueio nos portos ucranianos poderá levar a um novo aumento dos preços, escassez, insegurança alimentar ou a tensões sociais e a economia portuguesa vai sair penalizada, defenderam analistas consultados pela Lusa, que descartam uma crise alimentar.
“Podemos voltar a observar novas pressões de alta nos preços das matérias-primas, nomeadamente nos grãos, o que poderá aumentar também as pressões inflacionistas que temos vindo a observar há vários meses”, defendeu, em resposta à Lusa, o analista da XTB Henrique Tomé.
Porém, o analista excluiu, para já, um aumento da fome a nível mundial, recordando que, só na Europa, perto de 40% dos alimentos são desperdiçados e que existem alternativas que podem atenuar o impacto da guerra.
No que se refere às consequências diretas para Portugal, Henrique Tomé perspetiva a possibilidade de “aumentos generalizados” nos preços das mercadorias, levando a uma redução do poder de compra e a novas pressões inflacionistas.
Questionado sobre a possibilidade de os corredores russos poderem ser uma opção para escoar os cereais, o analista não descartou a hipótese, embora sublinhe ser “importante que se comece a procurar alternativas devido a toda a instabilidade na posição da Rússia”.
De acordo com os dados avançados pela XTB, “o rally nos preços das commoditires” tem vindo a dar sinais de abrandamento, apesar de estes ainda estarem em níveis elevados. “No entanto, o petróleo e o gás natural continuam a ser as commodities mais voláteis neste momento e espera-se que a volatilidade se mantenha enquanto os países ocidentais continuarem a aplicar sanções à Rússia, sobretudo, a Europa, que pretende avançar com o embargo ao petróleo russo”, notou.
Por sua vez, o diretor executivo da ActivTrades Europe, Ricardo Evangelista, prevê que o bloqueio nos portos ucranianos possa desencadear uma “sucessão de eventos que levam à perda da colheita” de cereais. “Segundo dados das Nações Unidas, através do World Food Programme, a não utilização dos portos, com os fluxos a dependerem inteiramente do transporte rodoviário, provoca uma redução de cerca de 80% na capacidade de exportação de cereais da Ucrânia, um cenário que se antevê catastrófico para vários países que dependem em larga escala das importações de produtos agrícolas ucranianos para alimentar as suas populações”, destacou.
A não utilização dos portos, com os fluxos a dependerem inteiramente do transporte rodoviário, provoca uma redução de cerca de 80% na capacidade de exportação de cereais da Ucrânia, um cenário que se antevê catastrófico para vários países.
Se este bloqueio se mantiver, as preocupações relacionadas com a segurança alimentar podem aumentar, referiu, lembrando que países como o Egito, Sudão ou Líbano, que dependem dos cereais ucranianos, dificilmente encontrarão alternativas, “sobretudo num cenário de subidas acentuadas de preços e medidas de protecionismo alimentar”.
À semelhança da XTB, a ActivTrades Europe também acredita que Portugal pode sair penalizado com um “eventual aumento dos preços nos mercados globais, o que poderá exacerbar as pressões inflacionistas”. Quanto a possíveis soluções, Ricardo Evangelista disse que a Rússia “não tem dado mostras de ser um parceiro fiável, tanto em negociações, como depois na implementação do acordado, por isso, o cenário de criação de corredores continua rodeado de incertezas”.
Conforme destacou o economista sénior do Banco Carregosa, Paulo Rosa, os cereais “são cada vez mais valiosos e há uma propensão dos agentes económicos a guardarem o que tende a valorizar”. Neste sentido, a Malásia já proibiu as exportações de frango, “causando consternação em Singapura, que importa um terço dessa carne de ave”, e a Índia decidiu conter as exportações de trigo e açúcar e restringir as vendas de óleo de palma.
“As economias mais avançadas não estão imunes”, apontou Paulo Rosa, dando como exemplo que “quase 10 milhões de britânicos cortaram alimentos em abril, em consequência do aumento do custo de vida”. Em França foram emitidos vales-alimentação e os EUA reduziram o tamanho das doses, “numa alusão à shrinkflation ou ‘reduflação’, técnica utilizada num contexto de elevada inflação”, acrescentou, sublinhando ainda que o aumento dos preços nas “economias avançadas afeta desproporcionalmente as famílias com menores rendimentos, que gastam grande parte do seu dinheiro em alimentos”.
O aumento dos preços nas “economias avançadas afeta desproporcionalmente as famílias com menores rendimentos, que gastam grande parte do seu dinheiro em alimentos.
O bloqueio portuário pode ainda ameaçar a alimentação animal, tendo em conta que as colheitas do final do verão destinam-se, em grande parte, à alimentação do gado no inverno. Se tal se verificar, poderá haver escassez de carne e um consequente aumento do seu preço.
Paulo Rosa antecipou ainda um cenário de tensões sociais, mais evidentes em países desenvolvidos, em virtude da escassez de cereais e de uma consequente crise alimentar e do aumento da inflação. “A China e a Índia são os maiores produtores mundiais de trigo e arroz, mas a maior parte das suas colheitas são para consumo interno e satisfazem as necessidades de 36% da população mundial. A possibilidade de falta de trigo nos mercados internacionais aumenta a procura de cereais alternativos, como o arroz”, precisou.
A Índia, por seu turno, é responsável por quase metade das exportações mundiais de arroz e não teria um substituto, se deixasse de exportar. “Os cereais são a base da dieta global e a sua escassez aumenta a possibilidade de uma crise alimentar, além de elevar a inflação. Em suma, menos cereais no mercado global elevam potenciais tensões sociais, mais visíveis em países subdesenvolvidos”, afirmou.
A economia portuguesa, sendo das mais abertas, é também “das mais penalizadas” pela escassez dos cereais e pelo aumento do protecionismo. Este fenómeno agrava assim a inflação e penaliza o crescimento económico, podendo estender-se um “crescente protecionismo alimentar” às economias avançadas, ameaçando a segurança alimentar global.
A Rússia invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro, com os países ocidentais a condenarem a ação, recorrendo a pacotes de sanções. Em 27 de maio, Moscovo anunciou que prevê exportar 50 milhões de toneladas de cereais no próximo ano agrícola, uma subida face ao ano em curso. As exportações russas de cereais estão atualmente a ser travadas por sanções na cadeia de abastecimento e no setor financeiro, enquanto as da Ucrânia, potência agrícola, estão a ser atingidas negativamente pela invasão militar russa.
“Nesta estação (2021-2022) já exportamos 35 milhões de toneladas de cereais, incluindo 28,5 milhões de toneladas de trigo, e até ao final do ano agrícola (30 de junho) estamos a apontar para a exportação de 37 milhões de toneladas de cereais”, disse o ministro da Agricultura russo, Dmitry Patrushev, num fórum de exportadores do setor. “E na próxima época (a partir de 01 de julho de 2022) estimamos o nosso potencial de exportação em 50 milhões de toneladas”, acrescentou o ministro russo. A Rússia estima que a colheita de 2022 será de 130 milhões de toneladas, contra 121,4 milhões de toneladas no ano anterior.
Crise alimentar avizinha-se e preços vão agravar situação
Também a agência alemã de ajuda humanitária Welthungehrilfe alerta para uma crise de fome que se avizinha em todo o mundo e diz que o aumento sem precedentes do preço dos alimentos vai agravar a situação. Em entrevista à agência Lusa, a conselheira sénior de política da organização, Anne-Catrin Hemmel, explicou que, “mesmo antes da guerra na Ucrânia, o número de pessoas famintas em todo o mundo estava a crescer a um ritmo constante devido às alterações climáticas, a guerras e às consequências da pandemia de covid-19”.
No entanto, o bloqueio das exportações de cereais da Ucrânia e da Rússia e grande escassez de fertilizantes essenciais – provocados pela guerra – “já estão a ter um impacto adverso dramático e vão agravar ainda mais o estado global da nutrição”.
A responsável lembrou que o secretário-geral da Welthungerhilfe já admitiu que as perspetivas “são sombrias” e que a sobreposição de crises torna a situação muito perigosa. “Só no corno de África [península da Somália] há cerca de 15 milhões de pessoas que correm o risco de fome aguda devido à seca severa e ao aumento dos preços da comida”, referiu Anne-catrin Hemmel
A Welthungerhilfe, agência que produz, todos os anos, um Índice Global da Fome avisou, na edição de 2021, que o combate à fome está perigosamente aquém dos seus objetivos. “Já em 2021 havia 811 milhões de pessoas que não tinham o que comer”, adiantou à Lusa a conselheira da agência alemã, lembrando que esse número já é de outubro.
O número de pessoas desnutridas em todo o mundo – se houver uma interrupção prolongada das exportações de trigo, fertilizantes e outros itens da Ucrânia e da Rússia – pode aumentar em entre oito e 13 milhões de pessoas em 2022/23.
“De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o número de pessoas desnutridas em todo o mundo – se houver uma interrupção prolongada das exportações de trigo, fertilizantes e outros itens da Ucrânia e da Rússia – pode aumentar em entre oito e 13 milhões de pessoas em 2022/23”, sobretudo “na região da Ásia-Pacífico, seguida pela África subsaariana, Médio Oriente e Norte da África”.
Para esta analista, a resposta à situação atual tem de passar pela ajuda humanitária, nomeadamente aumentando o poder de compra das pessoas mais pobres, ampliando a distribuição de alimentos, incluindo das refeições escolares, e reduzindo, através de financiamento, a diferença dos preços que mais subiram.
Além disso, adiantou, “é preciso garantir a disponibilidade de alimentos em regiões de insegurança alimentar, mantendo as cadeias de abastecimento agrícolas e assegurando acesso aos alimentos”, e “prevenir, a todo o custo, os défices das colheitas, facilitando o acesso, em particular dos pequenos agricultores, a sementes, fertilizantes e combustível”. Por outro lado, Anne-Catrin Hemmel sublinha ser imprescindível que se “evitem restrições à exportação de alimentos, combustível, sementes e fertilizantes”.
A situação de atual bloqueio dos portos da Ucrânia, que reduziu substancialmente as exportações de cereais daquele país, considerado um dos principais produtores mundiais, é condenada veementemente pela organização. “Foi relatado que os bloqueios russos impedem que navios zarpem com trigo, milho e outras exportações. As forças russas também foram acusadas de roubar cereais e de destruir deliberadamente armazéns na Ucrânia. Portanto, testemunhamos a fome a ser usada como arma [de guerra] e condenamos, nos termos mais fortes, qualquer violação dos direitos humanos em geral e do direito humano à alimentação em particular”, afirmou.
Por outro lado, a responsável defendeu a necessidade de fortalecer os sistemas alimentares regionais e de apoiar a diversificação, sobretudo nos países do hemisfério sul, onde há mais insegurança alimentar. Até porque, alertou a consultora de políticas, é sabido que a fome e a insegurança alimentar desencadeiam, muitas vezes, agitação social e violência. “Vemos semelhanças entre a situação atual e os preços crescentes dos alimentos em 2007 e 2008 que levaram a motins alimentares em todo o mundo”, afirmou, explicando que isso acontece também porque os desafios do acesso a alimentos foram agravados pela pandemia.
“No início de 2011, depois de os preços dos alimentos terem atingido um pico em 2007/2008, o mundo testemunhou uma onda sem precedentes de revoltas políticas no Médio Oriente, conhecida como Primavera Árabe, quando manifestantes marcharam, da Tunísia ao Egito e ao Iémen, exigindo a queda dos regimes”, recordou Anne-Catrin Hemmel. Também hoje, “além das preocupações humanitárias, surgem receios de que o aumento do preço dos alimentos, na sequência da pandemia e das secas severas, possa desencadear distúrbios civis”, concluiu.
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