Calçado português entra na “montra” de Milão para subir os preços
Na maior feira de calçado do mundo para apresentar a coleção de inverno, as fábricas portuguesas tentam contrariar o abrandamento nas encomendas e convencer os clientes a assumir o disparo nos custos.
A subida dos preços das matérias-primas e das componentes, da fatura da energia e também da mão-de-obra em Portugal deixaram sob pressão os custos da indústria do calçado. E se numa primeira fase tentaram aguentar esse embate e até absorveram uma parte significativa desses aumentos, as empresas portuguesas estão agora a aproveitar o lançamento das coleções de inverno na Micam, a mais importante feira do setor a nível mundial, para completar o “reequilíbrio” nos preços e assegurar a rentabilidade dos negócios.
Hugo Ferreira, diretor comercial da Centenário, uma das três marcas portuguesas presentes no pavilhão premium desta feira em Milão, conta ao ECO que se mantêm as dificuldades na compra atempada de peles e de solas, e que todas as semanas continua a receber “dezenas de emails com aumentos de preços, que depois não [conseguem] repercutir por completo no preço final”. Ainda assim, “as pessoas estão a ficar mais conscientes”. Calcula uma subida de 5% até ao momento, preferindo sacrificar ainda a margem. “Porque se aumentarmos muito, temos menos vendas e pode ser pior a emenda que o soneto”, completa.
Presença habitual na Micam, a empresa situada na Vila de Cucujães, concelho de Oliveira de Azeméis, é detida pela família Ferreira e já vai na terceira geração. Fundada em 1941, emprega 70 pessoas e produz 70 a 80 mil pares de sapatos por ano, com o preço médio final ao consumidor a rondar os 250 euros. Exporta 95% para Holanda, Espanha, EUA ou França e no ano passado faturou 6,5 milhões de euros. Para 2023, o responsável de vendas admite estar “ainda um bocadinho cético”, sentindo um abrandamento nas compras. “Vamos ver agora a próxima coleção se se compõe um bocadinho, senão acho que vamos decrescer as vendas este ano”, completa.
Em Felgueiras, a Joseli também sente que “as coisas estão mais calmas e o mercado a abrandar com a atual incerteza”. Por regra, as encomendas para a coleção de inverno são colocadas em fevereiro e em março, mas “este ano estão a tardar e as quantidades também são menores”, resume João Pinto. O grupo que produz 2.500 pares de sapatos por dia e vendeu 17 milhões de euros em 2022, com destaque para Alemanha, Holanda e Dinamarca, está por estes na Micam a mostrar a nova marca própria God’s Move. No entanto, a produção para outras marcas (private label) vale 90% do negócio e os custos das matérias-primas têm sido uma dor de cabeça.
Face ao pré-pandemia, os sapatos da Joseli estão 20% a 25% mais caros. Numa primeira fase, até porque na década anterior quase não tinha havido mexidas, “foi muito difícil os clientes aceitarem” o incremento na tabela de preços. “Agora aceitam mais e percebem. Podem comprar menos, mas aceitam. Uma grande preocupação é se, com estes aumentos, as grandes cadeias não podem fugir de Portugal para outros mercados”. É que, calcula, se há três anos a diferença de preço num sapato de pele feito na Índia ou Portugal era de cinco euros – e com os prazos de entrega e custos de transporte optavam pelas fábricas nacionais -, “essa diferença aumentou e está a perder-se essa vantagem competitiva”.
“No ano passado, a indústria portuguesa estava muito sobrelotada com os grandes grupos que desviaram encomendas da Ásia, por causa do problema da logística. E atualmente passa-se o inverso: estão a reduzir drasticamente em Portugal. Os clientes compraram muito e, se calhar, venderem menos do que projetavam”, corrobora Rui Oliveira, diretor da Matashoes, que sente igualmente os clientes com “receio de comprar tanto ou em antecipação”. Ao nível da evolução dos preços, por outro lado, o gestor desta fábrica de Ovar fundada em 1988, que emprega 90 pessoas e exporta 99% da produção, confessa que ainda não sabe se os 10% de aumento que praticou no último ano, no somatório de duas revisões, terão sido suficientes.
No entanto, poucas horas após abrir o stand na feira italiana, o líder desta firma que fatura seis milhões de euros já percebeu que este ano está a ser mais fácil explicar os aumentos de preços. Até por já ir no terceiro aumento para o mesmo produto – e porque, tendo clientes diversificados, o poder negocial do outro lado é menor do que se dependesse de um grande cliente. E esta progressão no preço, explica, “também já tem a ver com o aumento do custo da mão-de-obra em Portugal”, que diz pesar 40% no custo dos sapatos que produz. “Como aumentei 8% os salários a todos os trabalhadores, há aqui um aumento de 3,5% direto, só de mão-de-obra. Isto em cima das matérias-primas”, calcula.
Máquinas para compensar falta de trabalhadores
O preço médio de venda dos sapatos portugueses para os mercados internacionais ascendeu a 26,40 euros em 2022, um crescimento de 8,7% em relação ao ano anterior que contribuiu para o novo máximo histórico nas exportações registado pelo cluster do calçado e artigos de pele. Paulo Gonçalves, porta-voz da associação do setor (APICCAPS), aponta que “já está mais próximo do que deveria ser o aumento do preço médio global, mas ainda não reflete na íntegra” as subidas nos custos. Reconhece que “este é um exercício muito difícil porque muitas empresas já tinham assumido compromissos com os clientes e tiverem de assumir alguns destes custos”. Porém, lembra que a indústria nacional é, por tradição, mais forte nas coleções de inverno do que de verão, pelo que “há uma expectativa de que, agora sim, consigamos refletir [uma quota maior desses custos] num novo ajuste do preço”.
É o que está a fazer a ACO Shoes, que consta da lista das maiores empresas de calçado em Portugal, que é encabeçada por três multinacionais. Paula Costa, administradora, relata ao ECO que, depois de no último ano ter tido de “fazer um apertozinho” na atualização dos preços, beneficiando igualmente da compra antecipada de matérias-primas, “este ano tem sido mais fácil” a negociação da tabela de preços com os clientes. Para o consumidor final, estima que terá havido um aumento de 8% no calçado de conforto em que se especializou este grupo minhoto fundado em 1975, que no último exercício, em que se estreou a vender para a Polónia, faturou 30 milhões de euros. Os principais clientes estão na Alemanha, Holanda, Espanha, EUA e África do Sul.
Com a capacidade industrial toda tomada e sem sinais de abrandamento nas encomendas – “as perspetivas para 2023 são boas; se não for melhor, pelo menos igual a 2022, que foi um ano bom” – a empresária de Vila Nova de Famalicão, que tem também uma fábrica em Ponte de Lima e outra em Cabo Verde, empregando um total de 875 pessoas, está a aumentar o investimento na automatização das unidades industriais, como forma de compensar as crescentes dificuldades no recrutamento, transversais a um setor que vai lançar uma mega campanha para chamar os jovens às fábricas. “Dada a falta de mão-de-obra, temos de procurar outras alternativas para tirar as rentabilidades”, frisa Paula Costa.
Mais a Norte, o grupo Kyaia, outro dos porta-aviões da indústria do calçado português, com perto de 500 trabalhadores espalhados por Paredes de Coura e Guimarães, é mais cauteloso nas expectativas para 2023. Agora que está a arrancar a estação de inverno, para Miguel Freitas, diretor comercial, “o objetivo é não descer” as receitas, dada a “grande incerteza” nos mercados europeus. Dá como exemplo o mercado alemão, em que “as pessoas estão mais retraídas e a compra de sapatos deixou de ser uma prioridade”. No contacto com os clientes, por outro lado, o tema do aumento dos preços deixou de ser tabu.
As pessoas já estão um bocadinho mais cientes do contexto em que estamos inseridos. Quando há aumentos destes [nos custos], toda a gente tem de assumir um bocadinho a sua parte para chegarmos ao fim e as coisas serem o mais equilibradas possível.
“Nas últimas coleções já tínhamos acertado os preços com os clientes e absorvemos o que era possível. Agora já sabem que o mercado está todo assim e que somos apenas mais uma das muitas marcas que, por força das circunstâncias, teve de fazer atualizações. Houve aquele choque inicial da guerra e da inflação e ninguém estava preparado. As pessoas já estão um bocadinho mais cientes do contexto em que estamos inseridos. (…) Quando há aumentos destes, toda a gente tem de assumir um bocadinho a sua parte para chegarmos ao fim e as coisas serem o mais equilibradas possível”, sublinhou o responsável da Fly London, que continua a ter o Reino Unido como principal mercado, apesar da maior complexidade logística introduzida pelo Brexit.
Outra empresa vimaranense e que tem os britânicos como melhores clientes é a Cruz de Pedra. Empresa familiar criada em 1945, já vai na terceira geração, fatura seis milhões de euros e dá emprego a 90 pessoas. Na Micam, onde vem há 20 anos porque “quem não é visto não é lembrado, José Afonso relata o receio dos seus clientes com o comportamento dos consumidores, mantém a confiança em crescer o negócio este ano, mas admite que “as coisas estão tremidas”. E um dos sinais dessa incerteza é que os agentes estão com medo de colocar as encomendas a mais longo prazo e a pedir para encurtar em cerca de duas semanas aqueles quer eram os habituais prazos de entrega a rondar os 60 dias.
(O jornalista viajou para Itália a convite da APICCAPS)
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