Burocracia e falta de organização arrastam obras na ferrovia
São necessários sete anos entre a autorização para lançar projeto de construção e a conclusão da empreitada, segundo a IP. Especialistas defendem autonomia no planeamento.
Construir ou renovar uma linha de comboio implica um processo de sete anos. Este é o período que decorre entre a autorização do Governo para lançar o concurso público para o projeto e a conclusão da empreitada, explicou o vice-presidente da Infraestruturas de Portugal (IP), Carlos Fernandes, em entrevista ao ECO. A situação explica o arrastamento das obras ferroviárias anunciadas em 2016 e das quais menos de 20% estão concluídas. Aumentar a autonomia no planeamento pode contribuir para encurtar prazos, defendem os especialistas contactados pelo ECO.
A demora na aprovação dos despachos de delegação de competências pelas Finanças, a necessidade de autorizações de dois ministérios para despesas plurianuais acima dos 100 mil euros e as visitas do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) para identificar e licenciar os cortes de árvores são três das situações identificadas por Carlos Fernandes que contribuem para a demora dos projetos antes do começo das obras no terreno. Esse contexto afetou o Ferrovia 2020 e também já está a influenciar o cumprimento dos prazos do Programa Nacional de Investimentos para 2030 (PNI 2030).
“Quando olhamos para os atrasos do Ferrovia 2020 e PNI 2030 é verdade que, partindo de realidade onde não há projetos e nem há sequer âmbitos claramente definidos, é inevitável a dilatação dos prazos até finalização da execução”, corrobora o especialista em ferrovia João Cunha. “Isto remete-nos para a necessidade de capacitar a administração pública para ser um edifício de planeamento de políticas públicas de continuidade, independente de ciclos políticos”, propõe o administrador do portal Portugal Ferroviário.
Separada do Instituto da Mobilidade e dos Transportes — que atualmente tem a competência de assessorar o Governo nesta área –, a Direção-Geral dos Caminhos-de-Ferro poderia ser um “órgão autónomo” a contribuir para o planeamento nesta área.
Quando olhamos para os atrasos do Ferrovia 2020 e PNI 2030 é verdade que, partindo de realidade onde não há projetos e nem há sequer âmbitos claramente definidos, é inevitável a dilatação dos prazos até finalização da execução. Isto remete-nos para a necessidade de capacitar a administração pública para ser um edifício de planeamento de políticas públicas de continuidade, independente de ciclos políticos
Manuel Tão considera como “absurdo” que o processo para uma obra ferroviária demore sete anos e lembrou a aposta no alcatrão após 1986. “Depois de termos entrado para a União Europeia construímos perto de 3.000 quilómetros de autoestradas e estes problemas não foram levantados“, recorda o especialista em transportes da Universidade do Algarve.
Quando questionado sobre este ponto durante a entrevista, o vice-presidente da IP defendeu que estes projetos “foram feitos sob modelos de parcerias público-privadas” em que “os processos de licenciamento eram muito mais simples e não existiam autorizações plurianuais”.
O especialista da Universidade do Algarve sinaliza que a base de uma autoestrada, tecnicamente designada de superestrutura, “é semelhante à do caminho-de-ferro”. O que muda é “a exigência do traçado da linha do comboio”, que tem de ter menos pendentes e curvas mais abertas” em comparação com a rodovia. Por outro lado, “a secção transversal [largura] da autoestrada é três vezes maior do que a da ferrovia, com 12 hectares e quatro hectares”, respetivamente.
Falta de coordenação do Estado e orçamentos à cabeça
João Cunha recorda que nos anos de 1980 e 1990 chegaram a funcionar os gabinetes dos nós ferroviários, para as cidades de Lisboa e do Porto, com equipas que reuniam elementos de diversas entidades públicas. No caso de Lisboa, o gabinete foi fundamental para que a ponte 25 de Abril passasse a contar com o tabuleiro inferior, para a passagem do comboio. No Porto, o gabinete foi decisivo para que nascesse a ponte de São João, substituindo a centenária ponte D. Maria Pia.
Os gabinetes foram extintos em 1997, quando a gestão da rede ferroviária foi separada da CP e foi constituída a Refer. Roda e carril passaram a ser geridos por diferentes empresas.
Atendendo a que “aumentou a complexidade” dos projetos, por conta das normas ambientais e da contratação pública”, este especialista critica a “responsabilidade excessiva de orquestração na IP“. João Cunha entende também que o atual contexto “não mobiliza suficientemente o aparelho do Estado para cumprir o que, no fundo, é uma prioridade definida por ele próprio para o desenvolvimento do território”.
Depois de termos entrado para a União Europeia construímos perto de 3.000 quilómetros de autoestradas e estes problemas não foram levantados
Manuel Tão considera que desde a criação da Refer “há um profundo desinteresse na ferrovia” por parte dos políticos. Este especialista lamenta que o ministério das Finanças se tenha transformado no “verdadeiro ministério dos Transportes”.
João Cunha destaca que “continua a existir um problema de coordenação política no governo” e defende que as verbas sejam programadas com muito mais antecedência. “Como é possível apresentar-se um programa de investimentos em 2016, balizado por um orçamento global e por uma percentagem de fundos europeus a garantir, e em 2023 ainda andarmos a falar de delegação de competências e cabimentações orçamentais para esse programa? Os programas devem ser cabimentados à cabeça, com orçamentos plurianuais para todas as atividades, de projeto a execução, e com as restrições convenientes incorporadas”, propõe.
O vice-presidente da IP aguarda que o ministério das Finanças autorize o despacho de delegação de competências do Governo para que possam ser lançados os restantes projetos do PNI 2030, como a ampliação da Gare do Oriente, a eletrificação do troço Régua-Pocinho (Linha do Douro), a modernização do Caldas da Rainha-Louriçal (Linha do Oeste), a ligação entre a Linha de Cascais e a Linha de Cintura e a aposta no troço Sines-Grândola.
Se os projetos forem lançados depois de 2023, “já não é fácil de os conseguir concretizar neste quadro comunitário”, que dura até 2030, avisa Carlos Fernandes.
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