Sociedades multidisciplinares chegam à advocacia. E lá fora, o que já é feito?

A introdução das sociedades multidisciplinares, através da alteração da LAPP, não agrada às Ordens Profissionais, principalmente a do setor da advocacia. Mas há países em que isto já é uma realidade.

A porta de entrada a outras profissões, no setor da advocacia, já está a ser aberta em Portugal, mas os moldes em que essa integração vai ser feita ainda não está definida. Isto porque, apesar da nova Lei das Ordens Públicas Profissionais (LAPP) estar prestes a entrar e vigor, cabe agora a cada ordem regular a forma como esta vai ser implementada.

Foi em março que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou a Lei das Ordens Profissionais, que alterou o regime jurídico das associações públicas profissionais, após o Tribunal Constitucional se ter pronunciado pela constitucionalidade da mesma. Esta decisão foi tomada por unanimidade e por o TC “não considerar desrespeitados” quaisquer princípios ou normas constitucionais. O pedido de fiscalização preventiva tinha sido feito por Marcelo Rebelo de Sousa no dia 1 de fevereiro.

Esta lei, para além da introdução das sociedades multidisciplinares, veio alterar diversas questões das Ordens Profissionais como as condições de acesso às respetivas profissões, introduzir estágios profissionais remunerados e criar uma entidade externa para fiscalizar os profissionais, as taxas cobradas durante o estágio e a possibilidade de serem reduzidas. A duração dos estágios fixou-se em 12 meses, podendo ser maior em casos excecionais. Outra das alterações foi a aprovação da existência de um órgão disciplinar, que não estava previsto na anterior lei-quadro, que prevê a fiscalização sobre a atuação dos membros das ordens profissionais, composto por elementos externos às profissões respetivas.

Quase todas as Ordens Profissionais se mostraram contra esta proposta que nasceu do PS e do PAN. Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais.

Mas afinal o que é isto de sociedades multidisciplinares?

Foi a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que veio por fim à tradicional proibição das sociedades multidisciplinares com o regime jurídico das associações públicas profissionais através do artigo n.º 27. Esta norma, que foi transposta do artigo 25º da Diretiva 2006/123 do Parlamento Europeu, ditou que podem ser constituídas sociedades de profissionais que tenham por objeto principal o exercício de profissões organizadas numa única associação pública profissional, em conjunto ou separado com exercício de outras profissões ou atividades, desde que seja respeitado o regime de incompatibilidades. Ainda assim, o atual Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) proíbe este tipo de sociedades.

No fundo as sociedades multidisciplinares são uma associação de várias profissões na mesma empresa/estrutura societária. Em termos práticos, e no caso concreto da advocacia, permite que advogados e, por exemplo, consultores, auditores ou até notários e solicitadores coexistam na mesma firma.

A introdução das sociedades multidisciplinares não tem agradado as Ordens Profissionais, principalmente a do setor da advocacia. Grande parte dos advogados considera prejudicial a liberalização da profissão e que pode colocar em causa regras deontológicas básicas dos advogados, como a independência, respeito pelo segredo profissional e conflito de interesses.

Em entrevista à Advocatus em fevereiro, a bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, mostrou-se contra a medida. “Entendo que realmente colocam-se questões muito pertinentes, quer do ponto vista do sigilo profissional, quer do ponto vista até da tal situação disciplinar. Uma sociedade de advogados está sujeita à tutela disciplinar da Ordem dos Advogados. Se tem uma sociedade multidisciplinar quem é que vai tutelar…?”, sublinhou. Ainda assim, entende que esta situação pode resolver-se por via da regulamentação, uma vez que existem em outros países.

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Fernanda de Almeida PinheiroHugo Amaral/ECO

Por outro lado, existe um fração da classe que considera possível a convivência de várias especialidades sem colocar em causa deveres específicos.

Num recente artigo de opinião, João André Antunes, sócio da Pinto Ribeiro Advogados, defendeu que a multidisciplinariedade e sublinhou que “as posições que sustentam a inadmissibilidade das sociedades multidisciplinares – indiscutivelmente legítimas, sublinho – concentram-se de forma quase obsessiva na idiossincrasia da profissão de advogado e não naquilo que é o objeto do trabalho do advogado: a defesa dos interesses dos seus clientes”.

“Já não vivemos num mundo meramente global, pois ele derivou para um mundo uberizado – longe do que é desejado, mas a realidade é assim. Negar que a concorrência é a melhor forma de promover a qualidade é querer fechar os olhos. Por isso, opiniões eloquentes e retumbantemente defensoras sobre o atual protecionismo corporativo garantido aos advogados e às sociedades de advogados no que às sociedades multidisciplinares diz respeito terá o mesmo destino que todas as outras tentativas protecionistas contestadas pelo mercado: será disputado e recusado por quem procura esses serviços”, disse o sócio.

A Advocatus tentou saber junto das principais sociedades de advogados o que iria mudar nos seus escritórios, em concreto, com a aprovação do novo regime das ordens profissionais, mas sem sucesso. Apenas duas firmas decidiram partilhar a sua posição e sublinharam que não preveem grandes mudanças nos escritórios.

De forma a dar serguimento à introdução das sociedades multidisciplinares, a Ordem dos Advogados constituiu uma Comissão de Estudo e Revisão do Estatuto da Ordem dos Advogados com a incumbência de apresentar uma proposta de revisão dos EOA. A comissão tomou posse no dia 17 de março, sendo os trabalhos presididos pelo ex-bastonário Guilherme de Figueiredo. A comissão é ainda composta pelos advogados Brício Martins de Araújo, Gonçalo Gama Lobo, Joana M Abreu, Maria José Valente, Paulo Linhares Dias, Pedro Ataíde Hilário e Rita Maltez.

Fernanda de Almeida Pinheiro e Guilherme Figueiredo

“Como é sabido, a proposta de lei que esteve na origem das alterações aprovadas foi rejeitada pela Ordem dos Advogados, desde logo e, acima de tudo, por entender que as mesmas permitem estabelecer a tutela pelo poder político das associações públicas profissionais, numa estatização e instrumentalização que nunca sucedeu na nossa história quase centenária”, explicou na altura Guilherme de Figueiredo. “A questão central é de natureza política e não tanto de natureza jurídica, embora também possa ser encarada nesse sentido. Trata-se de tentar fazer das ordens profissionais uma longa manus do Estado, com o argumento e fundamento de que estas são um resíduo ideológico do ordenamento jurídico do Estado Novo”, acrescentou.

A multidisciplinaridade “lá fora”

“Lá fora”, principalmente nos Estados-membro da União Europeia, as sociedades multidisciplinares já são uma realidade e nos últimos anos esta tendência tem ganho cada vez mais adeptos. Em países europeus como Alemanha, Espanha, Bélgica e Suíça, as sociedades multidisciplinares são admitidas sem restrições. No caso da Finlândia, Dinamarca ou Suécia, existe apenas uma condicionante: não pode envolver partilha de lucros.

Outro exemplo em como a multidisciplinariedade em escritórios de advogados é uma realidade é em Itália. Na “bota europeia” as sociedades multidisciplinares tem de se inscrever num registo especial e dois terços do capital social e dos direitos de votos têm de pertencer a advogados. Mas não ficam por aqui. Também o órgão de gestão tem de ser composto por sócios e a maioria advogados.

Mas vamos analisar o nosso país vizinho em que esta questão é permitida desde 2001. Em Espanha, o Estatuto da Ordem dos Advogados permite que advogados se associem num regime de colaboração interdisciplinar com outras profissões liberais, desde que não sejam incompatíveis entre si. Assim, possuem um conjunto de requisitos tipificados no artigo 29.º do Decreto Real 658/2011, de 22 de junho. Vejamos o que diz este artigo:

Artigo 29.º

“1. Os advogados podes constituir sociedades multidisciplinares com outros profissionais liberais não incompatíveis, sem limitação de número e sem que tal afete a sua plena capacidade de exercício da profissão perante qualquer jurisdição e tribunal, sob qualquer forma lícita, incluindo sociedades comerciais, desde que estejam preenchidas as seguintes condições:

a) O objetivo da sociedade deve ser a prestação de serviços comuns específicos, incluindo serviços jurídicos específicos complementares dos das outras profissões.

b) Que a atividade a desenvolver não afete o exercício regular da advocacia pelos advogados membros.

c) Que se encontrem preenchidas as condições previstas no artigo anterior, no que respeita ao exercício da advocacia, com exceção do expresso no seu n.º 2, que não é aplicável, ou do n.º 4, em que apenas é aplicável a obrigação de fazer constar a condição de membro do agrupamento multiprofissional nos atos praticados e nas atas emitidas no seu âmbito.

2. Nas Ordens de Advogados será criado um Registo Especial onde serão inscritos os grupos em regime de multidisciplinariedade.

3. Os membros advogados devem ser separados sempre que algum dos seus membros não cumpra as regras sobre proibições, incompatibilidades ou deontologia da advocacia.”

A existência de sociedades multidisciplinares é ainda uma realidade fora da UE, como em países como Austrália e Inglaterra. Por exemplo, na Austrália as sociedades apenas precisam de informar a entidade competente. Já em Inglaterra, precisam de preencher um candidatura e pagar a respetiva taxa.

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