Auditoria de 2016 elogia venda da ANA e contraria conclusão de 2024
Relatório do Tribunal de Contas, nunca publicado, considera que a privatização maximizou o valor da venda. Ainda assim, modelo regulatório fragilizou a posição do Estado e dos consumidores.
O Tribunal de Contas divulgou no início do ano um relatório com duras críticas ao processo de privatização da ANA – Aeroportos de Portugal conduzido pelo Governo de Passos Coelho. Uma avaliação da mesma entidade feita há oito anos e nunca tornada pública faz, no entanto, uma avaliação oposta da operação, concluindo que foi adequada “à luz dos interesses dos contribuinte” e maximizou o valor da venda. Os dois relatórios coincidem, ainda assim, num ponto: O contrato de concessão beneficiou a concessionária em detrimento do Estado.
O PCP queria uma Comissão Parlamentar de Inquérito à venda da ANA à Vinci, consumada em 2013, mas a pretensão não passou no Parlamento. Os responsáveis políticos e gestores envolvidos na operação vão, no entanto, ser ouvidos na Comissão de Economia, Obras Públicas e Habitação. O que levou o PSD a apresentar um requerimento para que o Tribunal de Contas enviasse a auditoria remetida para contraditório ao então ministro das Finanças, Mário Centeno, no início de 2016. O processo foi interrompido na altura e a auditoria nunca chegou a ser votada nem publicada.
O relatório, que já está na posse dos deputados, faz uma avaliação da privatização da gestora dos aeroportos nacionais à Vinci bem diferente daquela que foi divulgada pelo mesmo Tribunal de Contas no início deste ano, como já refere uma peça de abril da TVI.
Na auditoria de 2016 pode ler-se que “considerando o valor do encaixe realizado por negociação particular, conjugado com a OPV reservada a trabalhadores, constata-se que a opção tomada se revelou adequada à luz dos interesses dos contribuintes, uma vez que o mesmo foi superior ao valor da avaliação”.
A ANA foi alienada à Vinci por 3.080 milhões de euros, superando a avaliação máxima feita quer pelo Crédito Agrícola (2.525 milhões) quer pelo banco BIG (2.540 milhões). Excedeu também largamente os 2.440 milhões oferecidos na segunda maior proposta vinculativa, apresentada pelo consórcio Fraport/IFM.
O balanço da operação foi positivo pois cumpriu o seu objetivo principal: a redução da dívida pública maximizando o valor da venda.
“O balanço da operação foi positivo pois cumpriu o seu objetivo principal: a redução da dívida pública maximizando o valor da venda“, conclui também a auditoria de 2016. Mas observa que “do valor bruto do encaixe, apenas 32,2% dos 3.080 milhões de euros foram afetos à amortização de dívida pública, o que traduz o elevado valor dos montantes deduzidos àquela receita”.
Na prática, “em termos líquidos o saldo da operação ascendeu a 1.108,8 milhões”, Isto porque é preciso deduzir os 1.200 milhões que a ANA pagou pela concessão, o pagamento de 681 milhões em dívida da concessionária e de um empréstimo de 41,4 milhões ao BES, a entrega de 30 milhões em dividendos relativos ao exercício de 2012 e os encargos de 18,4 milhões em assessoria financeira e jurídica suportados pelo Estado.
A verificação da materialidade ou, mesmo, a materialização dos principais riscos identificados pela auditoria faz concluir não ter sido maximizado o encaixe financeiro resultante da alienação das ações representativas do capital social da ANA (…).
Na auditoria divulgada no arranque deste ano, o entendimento do Tribunal de Contas é bem diferente, concluindo “não ter sido maximizado o encaixe financeiro resultante da alienação das ações representativas do capital social da ANA“. Uma das críticas apontadas é a ausência da avaliação prévia da empresa, “que era legalmente exigível”, algo que em 2016 é desvalorizado: “A ausência da fixação de um preço base não veio a ter qualquer impacto negativo no sucesso da operação”.
O relatório vinca ainda que “o Estado concedeu à Vinci os dividendos de 2012, quando a gestão era pública, e suportou o custo financeiro da ANA para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão, tendo o preço da privatização (1.127,1 milhões de euros) sido 71,4 milhões inferior ao oferecido e aceite”.
Em 2016, é salientado que “o momento da venda e a calendarização da operação obedeceu a prazos reduzidos, estabelecidos no âmbito do compromisso assumido pelo Governo português” no memorando assinado no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira a Portugal. Oito anos depois, sublinha-se que “a urgência em concluir a privatização fez iniciar e aprovar o respetivo processo sem todas as condições necessárias à sua regularidade, transparência, estabilidade, equidade e maximização do encaixe financeiro“.
Contrato de concessão desequilibrado a favor da ANA
Se as divergências quanto ao resultado financeiro da privatização são evidentes, no que toca ao contrato de concessão celebrado com a ANA as críticas convergem. Após a publicação do decreto de privatização da ANA e durante o processo de venda foi realizada uma alteração ao modelo regulatório. A metodologia para a fixação das taxas e os indicadores de qualidade, que se encontravam definidos em diploma legal, passaram no novo modelo para o contrato de concessão.
A auditoria feita em 2016 e nunca publicada aponta que “relativamente à função de regulador, o INAC (atual ANAC) viu a sua intervenção, em matéria de regulação económica, ser reduzida e circunscrever-se a uma intervenção ex-post, condicionada à prévia reclamação por parte dos utilizadores (companhias aéreas) das infraestruturas aeroportuárias”.
“No que respeita à fiscalização, gestão e acompanhamento do contrato de concessão, em nome do concedente, verificou-se uma transferência de competências do INAC (atual ANAC) para o Instituto da Mobilidade e dos Transportes. Contudo, a este último foram apenas atribuídas funções de acompanhamento da gestão do contrato”, acrescenta o relatório. Competências que nunca recebeu na prática, até à publicação de um diploma nos últimos dias do Executivo de António Costa.
Este novo regime pode representar uma redução da salvaguarda dos interesses dos consumidores sobre os quais se refletem os aumentos das taxas aeroportuárias, porquanto a intervenção do INAC (atual ANAC) carece da apresentação de reclamação por parte dos utilizadores (companhias aéreas).
“Considera-se crítico o facto de não existir uma entidade gestora de contrato que responda, de forma integrada, às diversas valências e necessidades do seu controlo, designadamente, das cláusulas administrativas, do desempenho financeiro da concessionária, da qualidade do serviço prestado, bem como a análise e gestão dos riscos contratuais”, aponta a auditoria.
E conclui: “Este novo regime pode representar uma redução da salvaguarda dos interesses dos consumidores sobre os quais se refletem os aumentos das taxas aeroportuárias, porquanto a intervenção do INAC (atual ANAC) carece da apresentação de reclamação por parte dos utilizadores (companhias aéreas)”.
Este instrumento mereceria um controlo financeiro mais apertado e um regulador dotado de poderes mais amplos em termos económicos, caso contrário, poderá fazer parte do elenco de negócios públicos com rendas garantidas e excessivas em benefício de privados.
O relatório aponta também que “a cláusula de partilha de riscos de tráfego só penaliza os operadores, dado que prevê sempre a manutenção e subida do tarifário, mas nunca a sua descida”. Considera ainda que o contrato “não salvaguarda de forma razoável a partilha de benefícios com o Estado, já que apenas prevê a partilha de receitas após o ano de 2025″.
“Este contrato contém um reduzido risco para o concessionário encontrando-se o mesmo blindado em termos de clausulado, na medida em que quaisquer alterações relevantes, de lei ou de circunstâncias, conduzem necessariamente a um processo de reequilíbrio financeiro a favor da concessionária”, refere o relatório, alertando que sem um “controlo financeiro apertado”, a privatização “poderá fazer parte do elenco de negócios públicos com rendas garantidas e excessivas em benefício de privados“.
A auditoria divulgada no início deste ano também considera que “o Estado privilegiou o potencial encaixe financeiro com a venda da ANA, no curto prazo, em detrimento do equilíbrio na partilha de rendimentos com a concessão de serviço público aeroportuário, no longo prazo”.
As disposições sobre a regulação económica da concessão transitaram, durante o processo de privatização, da lei aplicável para o contrato, fragilizando a regulação e com prejuízo para a estabilidade processual e para a transparência e publicidade daquelas.
Refere também que “as disposições sobre a regulação económica da concessão transitaram, durante o processo de privatização, da lei aplicável para o contrato, fragilizando a regulação e com prejuízo para a estabilidade processual e para a transparência e publicidade daquelas”.
Aponta ainda “não se ter verificado o reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas pela ANA”. Em suma, “não foi assegurado que o enquadramento deste processo protegeria cabalmente os interesses nacionais“.
De notar que as conclusões da auditoria deste ano não foram unânimes para os juízes relatores do Tribunal Constitucional. Dos nove, três votaram vencidos. A concessionária também contestou os resultados: “A ANA assinala que não acompanha a maioria das considerações e afirmações produzidas, designadamente quanto aos (alegados) desequilíbrios dos contratos de concessão a favor do privado e em especial no que respeita às taxas aeroportuárias e à receita da concessão”, lê-se na pronúncia enviada ao Tribunal de Contas e assinada pelo presidente do conselho de administração da ANA, José Luís Arnaut, e pelo presidente executivo, Thierry Ligonnière.
Ambos vão agora ser ouvidos pelos deputados da Comissão de Economia. Tal como o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, o antigo ministro das Finanças, Vítor Gaspar, a antiga secretária de Estado do Tesouro, Maria Luís Albuquerque e o antigo secretário de Estado das Infraestruturas, Sérgio Monteiro. Do lado dos governos socialistas, foram chamados os ex-ministros Pedro Marques, Pedro Nuno Santos e João Galamba.
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