Exclusivo O email da intervenção de Medina na Águas de Portugal para baixar a dívida
Fernando Medina impôs ao presidente da Águas de Portugal uma transferência extraordinária de 100 milhões de euros no último dia útil de 2023 para levar a dívida para um valor abaixo de 100% do PIB.
Na última semana de dezembro, com o país quase a despedir-se de 2023, a atividade no Ministério das Finanças era frenética para fechar as contas e garantir uma dívida pública inferior a 100% do PIB, um ‘brilharete’ para vender nas eleições de 10 de março. Mas havia um gestor público que resistia a aceitar a ordem do ministro, Fernando Medina, para transferir 150 milhões de euros em dividendos extraordinários e propunha modelos alternativos. Algo que suscitou a ira do ministro, num email violento. Só a intervenção diplomática do então primeiro-ministro permitiu desbloquear o confronto.
“A equipa de gestão que V. Exa lidera demonstrou repetidamente indiferença face aos objetivos e prioridades claramente definidos pelo acionista [no sentido de cumprir o objetivo nacional de redução da dívida pública], revelando falta de diligência e de profissionalismo exigidos a um gestor público“. Medina não perdoava a José Furtado, então presidente da Águas de Portugal, a resposta à decisão do Governo.
Foi num email enviado ao gestor no dia 28 de dezembro, às 19h17, um dos vários que chegaram à comissão parlamentar de orçamento e finanças (Cofap), enviado pela própria Águas de Portugal, para avaliar eventual ingerência do Governo na gestão das empresas públicas. José Furtado, que entrou na AdP por nomeação do socialista Matos Fernandes e que saiu da AdP já com este Governo (foi substituído por Carmona Rodrigues), vai esta quarta-feira ao Parlamento para esclarecer o que se passou naquele fim de ano.
Entre o dia 24 de dezembro, já com a ceia de Natal a aproximar-se, e o dia 29 de dezembro foram várias as trocas de e-mail – a que o ECO teve acesso – entre José Furtado, o secretário de Estado João Nuno Mendes, o presidente da Parpública, José Realinho de Matos, e Fernando Medina, por causa da transferência de dividendos extraordinários da AdP para os acionistas Parpública (81%) e CGD (19%) que, por sua vez, permitiriam baixar o défice e reduzir também a dívida pública.
E até António Costa se envolveu na disputa entre o ministro e o gestor, com contactos telefónicos e uma promessa de solução de compromisso que acabaria por viabilizar a transferência de 100 milhões de euros naquele dia 29 de dezembro ao final da tarde.
O email de Fernando Medina é “curto e grosso”. Em cinco pontos, dirigido ao “Sr. Presidente do Grupo ADP” e finalizado com um seco “Sem mais de momento“, o ministro revela o mal-estar e deixa mesmo implícito que, em Assembleia Geral, poderia avançar para a demissão de José Furtado. Um facto que terá sido depois comunicado verbalmente ao gestor pelo presidente da Parpública, mas que acabou por não se concretizar.
O que diz o email de Fernando Medina?
- Vi com surpresa a “proposta” do grupo AdP descrita no email por si enviado ao Dr. Realinho de Matos. Como qualquer um compreenderá, seria a todos os títulos errado comprometer dividendos integrados nos Orçamentos do Estado para 2024 e para 2025 quando estes serão executados na plenitude por outro governo.
- Das várias entidades públicas e privadas com quem a equipa do Ministério das Finanças tem vindo a trabalhar ao longo de 2023, no sentido de cumprir o objetivo nacional de redução da dívida pública, temos tido diligencia, empenho e efetividade na concretização de múltiplas medidas, várias de complexidade significativa.
- O Grupo AdP foi a única exceção a esta regra, tendo-se recusado a trabalhar de forma ativa e construtiva no processo. Pelo contrário, a equipa de gestão que V. Exa. Lidera demonstrou repetidamente indiferença face aos objetivos e prioridades claramente colocados pelo acionista, revelando falta de diligência e de profissionalismo exigidos a qualquer gestor.
- Só assim se pode compreender que não só não tenham apresentado qualquer justificação a “inevitabilidade” da “proposta” que avançam, como muito menos tenham estudado outras possibilidades, das inúmeras possíveis, assegurassem todos os objetivos definidos pelo Governo para as AdP. Para um grupo que recebe anualmente avultadas subvenções públicas, e que apresentou em 2022 capitais próprios de 1,8 mil M€, resultados transitados de 932M€, EBITA de 387 M€, um endividamento 3,2x do EBITDA, e que está dotado de uma capacidade técnica superior à de várias entidades públicas, esta omissão de diligencia da Administração é particularmente inaceitável.
- Neste sentido, não procederemos à emissão de Deliberação Unânime dos Acionistas (DUA), reservando para a Assembleia-Geral especifica as apreciações adicionais que entendamos necessárias.
José Furtado tinha outros argumentos para justificar a recusa em aumentar o dividendo extraordinário de acordo com o modelo exigido. E logo no dia seguinte, 29 de dezembro às 09h53, respondeu num longo e-mail a Fernando Medina. Sem o tom agressivo da missiva recebida do ministro das Finanças, José Furtado garante que a Águas de Portugal está “empenhada na busca de uma solução para implementar a orientação recebida no Ministério das Finanças há uma semana [dia 24 de dezembro]”. Mas com outro modelo, como a antecipação de tesouraria durante 15 dias. “Tivemos entretanto, nos últimos dias, oportunidade de partilhar a nossa preocupação relativamente a um cenário alternativo que consistiria na redução dos fundos próprios da AdP na ordem dos 150 milhões de euros, operação materialmente relevante numa sociedade com um capital próprio de 916 milhões de euros, sendo o capital social de apenas 435 milhões de euros“, explica o gestor.
José Furtado recorda ao ministro das Finanças, por outro lado, que “a incidência prática de uma redução nos fundos próprios e consequente endividamento a prazo, consistiria num impacto negativo na estrutura financeira, no custo da dívida e consequentemente nas tarifas. Teria ainda repercussão no cumprimento do limite de endividamento fixado na órbita pública”. Mas Medina estava irredutível e só a intervenção de António Costa permitiu uma solução de compromisso, a contendo das duas partes. O gestor público ainda tentou uma solução intermédia, com a antecipação de dividendos de 2024, o que permitiria uma transferência de mais 27 milhões (55 milhões de euros no total do ano), mas Medina recusou, e o valor final acabou por ser fixado nos 100 milhões, com a promessa de um aumento de capital no ano seguinte. Promessa de Costa que Medina sempre recusou subscrever.
O primeiro-ministro terá assumido então, telefonicamente, o compromisso com o presidente da Águas de Portugal de o Estado avançar para um aumento de capital no segundo semestre de 2024, no mesmo valor do dividendo extraordinário transferido no último dia útil de 2023. É o que se depreende de um outro email que chegou à comissão parlamentar, assinado por José Furtado, e que é dirigido ao presidente da Parpública e ao presidente da CGD, Paulo Macedo, enquanto acionista público minoritário. “Na sequência do que ficou estabelecido e por forma a dar execução a indicação que me foi dada pelo Senhor Primeiro Ministro, cabe-me informar que iremos requerer ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral da AdP, SGPS, S.A. que seja inscrito na ordem de trabalhos da próxima Assembleia Geral Ordinária um ponto respeitante ao aumento de capital da sociedade, no montante fixado de cem milhões de euros“. Um email, refira-se, antes das eleições legislativas de março.
O resto da história é conhecido. Dia 29 de dezembro de 2023, depois daquela troca de emails e do compromisso verbal de Costa, realiza-se uma assembleia geral extraordinária da empresa pública Águas de Portugal (AdP), formalizada por ata e subscrita pelos acionistas Parpública (81% do capital) e CGD (19%), e um ponto na agenda: Pagamento de um dividendo extraordinário de 100 milhões de euros ao Estado, receita de capital que contribuiu para a redução do défice público e da dívida pública. E no final do ano o Governo consegue mesmo o que quer, um saldo orçamental histórico e uma dívida abaixo de 100% do PIB.
De que forma foi assegurado esse défice? Além das operações de recompra de dívida do Fundo da Segurança Social e da CGA — como o ECO revelou em primeira mão –, as Finanças ‘raparam o tacho’ das empresas e organismos públicos com fundos disponíveis. Um dos casos, talvez o de maior impacto, foi mesmo o da empresa Águas de Portugal, a sociedade empresarial pública que tem concessões como a Epal e com melhores resultados (com exceção da Caixa Geral de Depósitos). Depois de ter transferido 30 milhões de dividendos por conta dos lucros de 2022, da ordem dos 100 milhões de euros, acabou o final do ano a reforçar essa transferência, com uma operação extraordinária de 100 milhões de euros. Somados, foram 130 milhões de dividendos, superiores ao valor dos lucros, e a ‘comer’ os resultados acumulados transitados.
Como é que estes dividendos extraordinários beneficiaram as contas públicas? A AdP é uma empresa fora do perímetro das Administrações Públicas, por isso, os depósitos no IGCP — o ‘banco’ das entidades públicas, empresariais e outras — são uma responsabilidade e, logo, a pesar na dívida. A decisão do ministro Fernando Medina permitiu receita de capital para a Parpública, que consolida dentro do perímetro do Estado, e diminuiu as responsabilidades, isto é, a dívida pública.
Fernando Medina já esteve na comissão de orçamento e finanças a responder às dúvidas dos deputados e justificou as operações realizadas. Por um lado, lançou duras críticas à equipa da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), acusando o organismo de cometer um “erro muito grave” ao reiterar que o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social tinha, no final de 2023, uma percentagem maior de dívida pública do que tinha em 2022. Por outro, em relação às empresas do universo empresarial público, “o que o Estado fez durante o ano foi proceder a injeções de capital perto de três mil milhões de euros a empresas publicas (2.965,4 mil milhões de euros) e solicitou às empresas o pagamento extraordinário de 130 milhões de euros de dividendos“, dos quais 100 milhões às Águas de Portugal, 20 milhões à Nav e 10 milhões a Casa da Moeda.
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