Tim Walz, a peça democrata para conquistar os “condados pivô” da América rural

  • Joana Abrantes Gomes
  • 10 Agosto 2024

Vinda da democrata Califórnia, Harris queria um parceiro forte nos 206 condados que votaram em Obama e depois em Trump. A escolha foi um ex-professor conhecido por vitórias-chave contra republicanos.

“Tim é um líder testado em combate que tem um legado incrível de fazer coisas para as famílias do Minnesota. Sei que ele trará essa mesma liderança de princípios para a nossa campanha e para o cargo de vice-presidente”, lia-se na mensagem de texto enviada por Kamala Harris aos seus apoiantes na passada terça-feira, em que anunciou a escolha de um governador de um estado solidamente democrata para ser o seu número dois na corrida às presidenciais de 5 de novembro.

A mensagem evidencia algumas das razões que levaram a atual vice-presidente dos EUA a decidir por Tim Walz. O “líder testado em combate” será uma referência, por um lado, aos 24 anos que esteve alistado na Guarda Nacional do Exército, mas, num sentido metafórico, também à eleição, em 2006, para deputado na Câmara dos Representantes, por um distrito do sul do Minnesota que tinha votado duas vezes no republicano George W. Bush para a Casa Branca. Foi reeleito cinco vezes, permanecendo durante 12 anos no Congresso, período após o qual o lugar voltou para mãos republicanas.

Já do “historial incrível de fazer coisas para as famílias do Minnesota” — algumas das quais Kamala Harris quer replicar se for eleita Presidente –, consta, por exemplo, uma lei que garante refeições gratuitas nas escolas, metas para combater as alterações climáticas, reduções dos impostos sobre a classe média, a descriminalização do uso recreativo da canábis, a proteção dos cuidados de saúde das pessoas transexuais, restrições à posse de armas, o alargamento do direito de voto para 55 mil residentes que estiveram presos e a inscrição do direito ao aborto na legislação estadual.

Além das vitórias consecutivas num distrito tradicionalmente republicano e do legado de dois mandatos como governador do Minnesota, para o qual foi eleito pela primeira vez em 2018 por 11 pontos percentuais contra Jeff Johnson, também o seu passado no ensino — deu aulas na China, na Reserva Indígena de Pine Ridge no Dakota do Sul e em escolas do Minnesota — e como treinador de futebol americano influenciaram a escolha de Kamala Harris. Walz é “o tipo de professor e mentor que todas as crianças na América sonham ter”, afirmou a candidata democrata na terça-feira, no primeiro comício ao lado do seu companheiro de corrida.

Na verdade, antes de se reunirem no domingo na residência de Kamala Harris, em que a ligação entre ambos foi instantânea, segundo descreveram à imprensa norte-americana fontes próximas do processo de seleção, os dois mal se conheciam. Os seus caminhos haviam-se cruzado anteriormente em março deste ano, quando o governador do Minnesota acompanhou a vice-presidente numa visita a uma clínica de aborto, ocasião em que ela o elogiou como um “grande amigo e conselheiro”.

“Gosto muito dele”, terá confidenciado a candidata democrata aos aliados mais próximos após o encontro em privado do último fim de semana com Walz, cuja “alegria” e “afabilidade” também pesou na hora do desempate face aos outros dois nomes apontados ao lugar. “Ela queria alguém que compreendesse o papel, alguém com quem tivesse uma ligação e alguém que trouxesse contraste ao ticket“, explicou Cedric Richmond, um antigo conselheiro da Casa Branca que fez parte da equipa que analisou os candidatos a vice de Kamala Harris.

A vice-presidente e candidata do Partido Democrata à Presidência dos EUA, acompanhada pelo seu número 2 na corrida à Casa Branca, num evento de campanha na cidade de Eau Claire, Wisconsin, em 7 de agosto. EPA/CRAIG LASSIGEPA/CRAIG LASSIG 7 Agosto, 2024

Casado e com dois filhos, Tim Walz também tem inscrita no currículo a liderança da Associação Nacional de Governadores Democratas, posição à qual renunciou após aceitar o convite de Harris. E, embora o seu papel na política norte-americana tenha sido sempre em representação do Minnesota, nasceu e viveu no Nebraska até 1996, onde se licenciou em Ciências Sociais no Chadron State College em 1989 — curso que iniciou na Universidade de Houston, no Texas –, e concluiu um Mestrado em Liderança Educativa na Minnesota State University, Mankato, em 2001.

Apesar de ser “alguém com experiência vivida comparável a tantas pessoas na América rural”, nas palavras da ex-senadora democrata Heidi Heitkamp, do Dakota do Norte, o valor estratégico de Tim Walz para a candidatura presidencial de Kamala Harris reside noutro fator.

Com as eleições norte-americanas a decidirem-se nos swing states — estados que tendem a mudar de partido a cada eleição, vistos como determinantes para o resultado eleitoral, e onde a atual vice-presidente de Joe Biden não tem tanta força por ser natural da Califórnia, de bandeira democrata –, previa-se que a escolha do running mate de Harris recaísse sobre uma figura do partido popular nesses estados. O governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, e o senador Mark Kelly, do Arizona, eram vistos com melhores possibilidades de ganharem o lugar em comparação com Tim Walz.

Mas, não sendo de um dos swing states, o governador do Minnesota é um “produto” dos “condados pivô” (pivot counties, em inglês), assim chamados por terem votado no democrata Barack Obama em 2008 e em 2012 e depois mudarem o voto em 2016 para os republicanos, encabeçados por Donald Trump e o seu vice Mike Pence, explica Luís Tomé, professor catedrático de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa, em declarações ao ECO.

De acordo com os dados da Ballotpedia, uma plataforma digital que reúne estatísticas das eleições norte-americanas, há 206 condados pivô distribuídos por 34 estados dos EUA, dos quais mais de metade (120) se concentram em dez estados do Midwest: 31 no Iowa; 23 no Wisconsin; 19 no Minnesota; 12 no Michigan; 11 no Illinois; nove no Ohio; cinco no Indiana; cinco no Dakota do Sul; quatro no Dakota do Norte; e um no Nebraska.

Walz pode ser uma grande ajuda na missão de recuperar alguns desses condados pivô que podem vir a ser decisivos no resultado das eleições de 5 de novembro.

Luís Tomé

Professor catedrático e diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa

Nessa região, “a população é, por norma, mais branca, menos rica e até com menos instrução do que a média dos Estados Unidos, vivendo em zonas rurais e pequenas cidades. Precisamente o tipo de locais que os democratas perderam nos últimos anos para os republicanos”, assinala Luís Tomé, que também é investigador no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA) e dá aulas no Instituto da Defesa Nacional (IDN).

Ora, oito dos 19 pivot counties do Minnesota localizam-se no distrito que Tim Walz representou na Câmara dos Representantes entre 2007 e 2019, o que, aos olhos de Kamala Harris e da sua equipa, confere ao governador de 60 anos o perfil ideal para o Partido Democrata ganhar nesses condados, inclusive nos estados vizinhos.

Walz “tem a habilidade de contactar com esse tipo de eleitorado” e “pode ser uma grande ajuda na missão de recuperar alguns desses condados que podem ser decisivos“, até porque “sobreviveu à derrocada [das midterms] de 2010″ — uma das maiores derrotas dos democratas no período pós-guerra, que reduziu a bancada do partido em seis lugares no Senado e em 68 assentos na Câmara dos Representantes — e “resistiu depois à vitória de Trump sobre Hillary Clinton em 2016 no sul de Minnesota”, aponta Luís Tomé.

Se, nas eleições de 2020, a preocupação do moderado Joe Biden na escolha do seu vice era unir as várias fações do Partido Democrata — daí que tenha optado por Kamala Harris, mais à esquerda –, agora o que se pretende é mobilizar os eleitores nos swing states e nos condados pivô que podem cair para um lado ou para o outro a votarem no ticket democrata.

Walz recebeu o convite de Harris via telefone, por volta das 10 horas de terça-feira. Alegadamente, não atendeu o primeiro telefonema, por ter sido feito a partir de um número privado. “Vamos fazer isto juntos”, disse ela. Ao final desse dia, a nova dupla do ticket do Partido Democrata estava a subir ao palco de uma arena lotada em Filadélfia. “Temos 91 dias [até 5 de novembro, dia da eleição]. Meu Deus, isso é fácil! Dormiremos quando estivermos mortos“, afirmou Tim Walz perante os cerca de 10 mil apoiantes presentes.

“Mini-primárias”

A procura pelo running mate de Kamala Harris arrancou nos dias após o Presidente Joe Biden anunciar a sua retirada da corrida à Casa Branca. Uma equipa que incluía o antigo procurador-geral Eric Holder Jr., a presidente da campanha, Jen O’Malley Dillon, a chefe de gabinete da campanha, Sheila Nix, a antiga conselheira da Casa Branca Dana Remus, e Tony West, cunhado de Harris, foi responsável por recolher e analisar as declarações financeiras e os antecedentes de uma dúzia de nomes, com os quais reuniram por videochamada até ao final de julho, segundo o Politico.

A 2 de agosto, a lista já estava reduzida a metade: além do governador do Minnesota, o senador Mark Kelly, do Arizona; o secretário dos Transportes, Pete Buttigieg; e outros três líderes estaduais, nomeadamente Andy Beshear, do Kentucky, J. B. Pritzker, do Illinois, e Josh Shapiro, da Pensilvânia. Os seis foram novamente entrevistados, desta vez por um painel composto pelo ex-secretário do Trabalho Marty Walsh, o conselheiro de campanha de Harris, Cedric Richmond, e a senadora Catherine Cortez Masto, do Nevada. No dia seguinte, apresentaram à atual vice-presidente dos EUA os prós e os contras de cada um dos candidatos.

Porém, os finalistas viriam a ser apenas três — Tim Walz, Josh Shapiro e Mark Kelly. De acordo com o The New York Times, a equipa de aliados de Kamala Harris concluiu que ela poderia ganhar as eleições de 5 de novembro com qualquer um deles. A escolha resumiu-se àquele que se saiu melhor no “teste de química” — como foram descritos os encontros presenciais entre a candidata a Presidente e os seus possíveis número 2, realizados no domingo, no Observatório Naval (a sua residência oficial) –, tendo Harris ainda procurado aconselhar-se junto de figuras como Joe Biden, o ex-presidente Obama e o casal Clinton.

"Temos 91 dias [até 5 de novembro, dia da eleição]. Meu Deus, isso é fácil! Dormiremos quando estivermos mortos.”

Tim Walz

Candidato democrata à vice-presidência dos EUA

Embora a decisão tenha recaído sobre Tim Walz, o nome de Shapiro era apontado como o favorito, e mesmo Mark Kelly surgia à frente do governador do Minnesota nas apostas. Mas os dados recolhidos pela equipa de Kamala Harris não sugeriam que Shapiro ou Kelly garantissem uma vantagem decisiva para os democratas nos seus estados de origem, respetivamente Pensilvânia e Arizona, dois dos swing states — o primeiro dos quais é o maior em termos de grandes eleitores, num total de 19.

No caso de Shapiro, várias pessoas familiarizadas com o processo de seleção relataram ao NYT que o governador da Pensilvânia se mostrou menos seguro em aceitar o cargo, tendo feito perguntas acerca das responsabilidades que teria caso fosse o escolhido. Além disso, é visto como uma pessoa que ambiciona ser Presidente, o que poderia complicar a sua relação com Kamala Harris, e seria uma escolha que não agradaria às fações democratas progressistas, em particular pelas críticas aos protestos pró-Palestina, numa altura em que o partido estava a começar finalmente a unir-se em torno da sua candidata presidencial.

Trump sem estratégia adaptada à nova dupla

Logo no dia em que foi anunciado o nome do governador do Minnesota para número 2 do ticket democrata, a campanha de Donald Trump e de J. D. Vance enviou um e-mail de angariação de fundos em que fez acompanhar a frase “Tim Walz vai desencadear o inferno na Terra!” de imagens da violência nas ruas daquele estado na sequência do assassinato de George Floyd em 2020. Estava dado o tiro de partida para uma enxurrada de acusações e insultos semelhantes aos já usados contra Kamala Harris.

“Não podia estar mais entusiasmado” por Kamala Harris ter feito esta “escolha chocante”, disse Donald Trump na quarta-feira, em entrevista à estação televisiva norte-americana Fox News. O ex-presidente alegou que Tim Walz é mais radical do que a atual vice-presidente em questões como a imigração e o crime e acusou os democratas de antissemitismo porque Harris escolheu Walz em vez de Josh Shapiro, que é judeu.

O candidato republicano à Casa Branca acusa também os rivais do Partido Democrata de serem “perigosos radicais de esquerda” e partilharem as ideias do senador Bernie Sanders, um dos mais progressistas do Congresso dos EUA. “Essa candidatura quer que este país se torne comunista imediatamente, se não antes“, declarou Trump.

Enquanto J. D. Vance não acrescenta nada a Donald Trump e pode ser um bocadinho tóxico, até ver, o Walz tem todas as condições para acrescentar e complementar a candidatura de Kamala Harris e chegar ao eleitorado onde esta não consegue chegar. Desse ponto de vista, a escolha é mais feliz do lado do ticket democrata do que é a do Partido Republicano.

Luís Tomé

Professor catedrático e diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa

Para o professor catedrático Luís Tomé, estes argumentos são a “prova” de que o Partido Republicano ainda não adaptou a sua estratégia a Kamala Harris e, entretanto, ao candidato escolhido para vice-presidente. “Continuarem na mesma linha em relação a Walz, conservando a linha de insultos pessoais, é contraproducente”, avalia o docente da Universidade Autónoma de Lisboa, notando que alguns dos argumentos que usavam para Joe Biden, como a questão da idade, funcionam agora ao contrário.

A campanha de Donald Trump já chegou a cometer uma gafe ao criticar uma medida implementada por Tim Walz no Minnesota que alargou o direito de voto a cerca de 55.000 residentes ex-presidiários, quando o candidato republicano foi o primeiro ex-presidente da história dos Estados Unidos a ser condenado na Justiça — ainda que seja mais provável ser-lhe aplicada uma multa e não uma pena de prisão.

Mas o GOP (Grand Old Party, como também é conhecido o Partido Republicano) pode também ser prejudicada pelo facto de Tim Walz ter o perfil de muito do eleitorado republicano (ou que pode tender para o lado republicano): vem da América rural, onde a população é menos instruída e predominantemente branca. Portanto, “vão ter que agarrar em algo que não seja um insulto pessoal ou chamar-lhe comunista”, pois “isso é pouco para quem está indeciso”, diz Luís Tomé.

Comparando os números 2 escolhidos por Kamala Harris e Donald Trump, o analista de Relações Internacionais distingue o mensageiro “hábil” e “eficaz” no caso de Walz dos discursos “sem o carisma e a chama” do ex-presidente republicano no caso de J. D. Vance — apesar de este ser “uma cópia” de Trump. O facto de Tim Walz ter cunhado, em poucas semanas, o mais recente slogan da campanha democrata contra os republicanos, quando chamou Trump e J. D. Vance de “estranhos”, prova essa diferença.

São os candidatos a presidente que pesam na hora do voto. Mas, “até ver, o Walz tem todas as condições para acrescentar e complementar a candidatura de Kamala Harris e chegar ao eleitorado onde esta não consegue chegar, enquanto J. D. Vance não acrescenta nada a Donald Trump e pode ser um bocadinho tóxico”, resume o investigador, para quem, “desse ponto de vista, a escolha [para vice-presidente] é mais feliz do lado do ticket democrata do que é a do Partido Republicano”.

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