O que disse o novo PGR, Amadeu Guerra, nas entrelinhas
Temas como as fugas de informação, detenções de arguidos que ultrapassam o prazo legal, a autonomia do MP, os atrasos do DCIAP nas investigações ou a validação de uma PJ não faltaram no discurso.
Lucília Gago deixou este sábado a a liderança do Ministério Público, depois de seis anos de mandato recheado de críticas tanto pelas fugas de informação, falta de prestação de contas, falta de resultados na investigação Influencer (que levou à queda de um Governo de maioria absoluta), acusações consecutivamente adiadas ou mesmo por um parágrafo acrescentado num comunicado de imprensa e acabou por provocar um terramoto político em Portugal, sem ter ainda qualquer resultado prático. António Costa demite-se, Montenegro é eleito primeiro-ministro e, quase um ano depois, a investigação da Operação Influencer continua quase como começou, a 7 de novembro.
Chega agora Amadeu Guerra como novo Procurador-Geral da República (PGR) – cuja tomada de posse ocorreu este sábado, no Palácio de Belém – nome já reconhecido no mundo jurídico, depois de ter liderado o DCIAP de 2013 a 2019.
Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro, Armando Vara, Zeinal Bava e José Sócrates foram alguns (só alguns) dos nomes sonantes que durante o mandato de Amadeu Guerra à frente do maior departamento que investiga a criminalidade económica e financeira, o DCIAP, foram investigados e acusados.
Ao longo do seu mandato surgiram alguns dos mais mediáticos processos judiciais. E não se coibiu – durante a investigação e acusação da Operação Fizz – de aceitar que um dos seus pares na estrutura do Ministério Público, Orlando Figueira, fosse alvo de uma acusação que, posteriormente, culminaria numa condenação. Menos sucesso teve no caso Vistos Gold, já que este processo resultou na absolvição do ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, e de quase todos os restantes arguidos. Foi, diria depois, um “caminho difícil e de muita responsabilidade de empenho”.
No seu discurso de cerca de 20 minutos proferido perante Marcelo Rebelo de Sousa, Lucília Gago, Luís Montenegro, Rita Júdice e José Pedro Aguiar -Branco, entre outros, que recados foram deixados? Interessa, agora, descodificar esses mesmos recados e os assuntos escolhidos, cirurgicamente, pelo ex-diretor do DCIAP. Fugas de informação, detenções de arguidos (mediáticos) que ultrapassam o prazo legal, a autonomia do Ministério Público, os atrasos nas investigações do DCIAP ou a validação de uma PJ que, com Lucília, algumas vezes não foi chamada a investigações, não faltaram no menu.
Com 69 anos, Amadeu Guerra chega a um Ministério Público em cacos, desunido, sem meios, prazos atrasados (basta lembrar os 12 anos que Mexia espera por uma acusação). Uma herança deixada por Lucília Gago e que, até na hora da despedida, Marcelo Rebelo de Sousa considerou como um mandato com mais agruras do que de bonança, salientando que exerceu o cargo num “contexto nada propício”.
O que disse então o novo PGR no seu discurso?
- O novo PGR assumiu que quer trazer o MP de volta ao “patamar que merece”. Sublinhando que todos os magistrados podem contar com o seu “empenho, determinação e vontade de colocar a imagem do Ministério Público no patamar que merece. Sei que essa é a vontade partilhada por todos”, Amadeu Guerra assumiu, assim, que a instituição com quase dois mil profissionais enfrenta uma crise reputacional.
- Criticando, de forma velada, Lucília Gago, Amadeu Guerra assume que o prestígio do Ministério Público não se concretiza com meros “processos de intenções” ou com “discursos de autoelogio”. Consegue-se quando a comunidade que servimos sentir que há resultados efetivos, que ocorreu uma mudança de mentalidades e que foi desencadeada uma mobilização para fazer cada vez melhor. Penso que isso está ao nosso alcance!… E foi por isso que aceitei”.
- Não deixou também de mandar recados aos deputados eleitos. “O Procurador-Geral da República, após um período inicial de contacto com a realidade nos tribunais, está sempre disponível para prestar contas no Parlamento”, disse, um mês depois de Lucília Gago ter sido chamada ao Parlamento, pela primeira e última vez, em que pouco respondeu, em concreto, às questões dos deputados da primeira Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
- Tocando desde logo na questão sensível e pela qual o MP é recorrentemente alvo de críticas, Amadeu Guerra avisou que “nos crimes de corrupção e crimes conexos, bem como na criminalidade económico financeira, é minha intenção acompanhar de perto, através dos Diretores dos DIAP Regionais e do DCIAP, as razões dos atrasos”. Basta lembrar-nos do caso dos CMEC – que tem António Mexia como arguido – que espera uma acusação para 23 de outubro, 12 anos depois do início da investigação e depois de dezenas de adiamentos.
- Amadeu Guerra quis também, pôr já os pontos nos ‘is’ no que toca ao tema sensível da autonomia do Ministério Público, lembrando que a subordinação dos magistrados é uma “linha vermelha” que o magistrado não pretende atravessar ou aceitar. Recorde-se que os magistrados judiciais (juízes) têm total independência mas os do Ministério Público apenas goza de autonomia, estando sempre submetido ao poder hierárquico. Uma frase que foi também uma implícita referência aos manifestos dos 50 que se tornaram mais de 100 , aos comentários políticos – incluindo de Marcelo e de José Pedro Aguiar Branco – e aos inúmeros comentários da sociedade civil nos últimos meses, quase um ano, à falta de comunicação e prestação de contas de Lucília Gago. Mas é precisamente nesta prestação de contas que a crítica vai para a ex-PGR: Amadeu já prometeu que estará sempre disponível para ir ao Parlamento mas sublinha que o MP precisa e quer desenvolver o seu trabalho sem o alarde mediático e discussão pública da sua atividade em processos concretos.
- A Polícia Judiciária não deixou de ser lembrada. Numa altura em que o mandato do atual diretor, Luís Neves já chegou ao fim em Junho, e que a ministra da Justiça já fez saber que a decisão de renovar, ou não, o mandato, será a próxima que tomará, Amadeu Guerra relembrou que “devemos envolver a Polícia Judiciária de forma efetiva, face ao aumento recente dos seus meios humanos: inspetores, peritos e meios tecnológicos”. Uma posição que nem sempre foi escolhida pela ex-PGR que, na fase inicial da investigação da Operação Influencer, não quis contar com o apoio desta polícia, que gerou um mau estar entre a PJ e o MP.
- O novo líder da investigação criminal prometeu ainda que “irá revisitar as questões relativas ao segredo de justiça, através da análise das medidas estabelecidas no Relatório elaborado em 2014, no estudo do regime de segredo de justiça em alguns países e nas boas práticas seguidas por alguns magistrados”. E avisa: “as soluções – se é que é possível alcançá-las – têm que passar pela abordagem das questões criminais, dos direitos, liberdades e garantias e, necessariamente, pelo equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação”. Neste ponto, justiça seja feita a Lucília Gago: este é um problema que já assombra o MP há décadas, não é de agora.
- Os direitos, liberdades e garantias e o equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação não foram esquecidos. Tocando em mais um tema sensível, Amadeu Guerra avisou que “quanto à detenção de arguidos e apresentação ao Juiz de Instrução há regras e prazos fixados na lei. O Ministério Público cumpre-os e não vislumbro as razões das críticas que, às vezes, lhe são feitas. Porém, considero que a ideia de fixação perentória de um prazo desproporcionado compromete o esclarecimento e recolha de informação necessária à decisão judicial, com risco de violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade”. Uma referência clara à detenção de várias semanas dos arguidos no processo que alegada corrupção na Madeira, que mais tarde veio a ser assumido por Lucília como “o normal tempo de uma investigação”, na única entrevista que deu em seis anos, à RTP.
- Dando uma no cravo e outra na ferradura, Amadeu Guerra falou da falta de meios humanos no seio do MP. E se não teve rasgo ao assumir que “a situação atual da Justiça em Portugal está condicionada pela falta de meios humanos. Quem trabalha ou acompanha a realização da Justiça está consciente que a falta de oficiais de justiça é preocupante no Ministério Público”, foi mais ambicioso e assertivo ao garantir que o MP tem “que dar o nosso melhor com os recursos disponíveis. Não podemos continuar a lamentar-nos com a falta de meios e esmorecer. Devemos, pelo contrário, mobilizar-nos e estar motivados, trabalhar em equipa, ser muito pragmáticos na nossa função e diminuir a morosidade”.
- Referindo-se ao tema quente da corrupção, o magistrado relembrou que os cidadãos consideram que “as políticas anticorrupção e as medidas tomadas na luta contra a corrupção são ineficazes” e que, por isso, “interessa sublinhar que, neste tipo de criminalidade, é tão ou mais eficaz assegurar a perda de bens do que uma condenação em prisão. Por isso, é uma prioridade dinamizar e concretizar a recuperação de ativos. Será criada uma estrutura ágil – à qual será dada a formação necessária – que fica encarregada de realizar ou apoiar o titular do inquérito na inventariação dos ativos e na apresentação dos requerimentos necessários à decisão de arresto preventivo”.
- O novo titular da investigação criminal não deixou de referir, no seu discurso, a “falta de investimento dos sucessivos Governos em meios tecnológicos avançados, em aplicações informáticas de gestão processual ou sistemas de gestão e tratamento da prova recolhida limita, em muito, a eficiência do sistema de Justiça”, criticou.
- Na despedida que fez à sua antecessora, o magistrado escolheu ser politicamente correto ao usar a pandemia como ‘desculpa’ para um mandato menos conseguido, já que “não teve a sorte do seu lado, no decurso do seu mandato, em que ocorreu uma pandemia que – durante cerca de dois anos – alterou os hábitos e a motivação dos portugueses. Mesmo assim, considero que exerceu o cargo – como sempre fez na sua carreira – com honestidade intelectual e de forma dedicada”.
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