Juíza falou mais alto, repetiu questões e aceitou que Salgado saísse do tribunal 15 minutos depois de ter chegado

Esta terça-feira, começou o julgamento do processo principal do BES, envolvendo 17 arguidos, 733 testemunhas, 135 assistentes e mais de 300 crimes. Salgado esteve presente mas apenas 15 minutos.

O relógio marcava as 9.22 quando, esta terça-feira, Ricardo Salgado chegava ao Campus de Justiça, em Lisboa. Acompanhado pelos advogados de defesa e pela mulher, Maria João Salgado, que, com o braço, amparava aquele que em tempos foi chamado de homem forte do BES o “Dono Disto Tudo”. Agora, aos 80 anos e diagnosticado com a doença de Alzheimer, o Salgado desse tempo não estava ali.

O caminho, de pouco mais de 100 metros do carro até à porta do tribunal, foi demorado, custoso e com uma enchente de jornalistas, câmaras de televisão e mesmo um lesado do BES a bloquear a sua passagem. Já só quando estava prestes a chegar à porta do Edifício A do campus é que a polícia, impávida até então, decidiu agir e desimpedir o caminho.

Esta terça-feira, começou o julgamento do processo principal do BES, envolvendo 17 arguidos, 733 testemunhas, 135 assistentes e mais de 300 crimes. Este megaprocesso, que já vai nos 215 volumes após uma acusação com mais de quatro mil páginas, começou a ser julgado mais de uma década após o colapso do Grupo Espírito Santo (GES), em agosto de 2014.

Antes de Salgado chegar e ser visto, já um grupo de lesados do BES se apresentava à porta do Campus de Justiça, vestidos de preto (com máscaras incluídas) junto a uma carrinha funerária com a cara do ex-líder do BES.

Já dentro da sala de audiências, o arguido acusado de 62 crimes no processo do Universo Espírito Santo foi questionado pela juíza Helena Susano, a juiz presidente do coletivo. Salgado foi identificado e, questionado sobre o nome da sua mãe, respondeu “pode ser”. De seguida disse que foi banqueiro, mas não se recordou do nome da rua onde reside, em Cascais.

“- A sua profissão, qual era?”, pergunta a juíza. “Banqueiro”, responde. “Onde vive?”

— Vivo….

– Em Lisboa ou Cascais?

– Cascais?

– E sabe a rua?

– “Agora não me lembro”, diz o ex-banqueiro.

A juíza questionou ainda o arguido: “Quer que o julgamento decorra sem a sua presença?”. Repetindo por duas vezes e falando mais alto, insistiu: “Quer estar aqui?”. Maria João Salgado advertiu a magistrada que Ricardo Salgado não compreende o que lhe quer dizer. “Acho que é pacífico que o meu cliente tem a doença que tem. Não podemos fazer mais”, explicou o advogado de defesa, Francisco Proença de Carvalho.

Minutos depois, Francisco Proença de Carvalho pediu à juíza para falar com o seu cliente. Neste momento, perguntou ao seu cliente se queria ficar ou sair. A resposta de Ricardo Salgado foi “sim”. Salgado acabou mesmo por sair da sala de audiência, acompanhado por Maria João Salgado. Mas, desta vez, optou por descer pela garagem, sem acesso às dezenas de câmaras de televisão presentes à porta do tribunal. Entretanto, a defesa de Salgado já entregou um requerimento para que o seu cliente não volte a ter a obrigação de estar presente julgamento e que foi aceite pela juíza.

Depois de ter sido identificado o seu cliente, o advogado de Salgado, Francisco Proença de Carvalho, falou aos jornalistas e adiantou que se abriu uma “página negra na justiça portuguesa pelo menos diante de todo o mundo”.

“Com o relatório médico atual, perfeitamente claro quanto à dependência quase total de Ricardo Salgado para as tarefas mais básicas, como a de higiene. Um relatório médico que disse que a presença dele num tribunal seria irrelevante porque não tem capacidade cognitiva para responder as questões minimamente complexas e isto é o processo mais complexo da nossa história”, sublinhou.

Para Proença de Carvalho, o relatório médico já frisava que numa anterior sessão tinha tido efeitos “muito negativos” na evolução dos sintomas da doença e mesmo assim o tribunal “entendeu que Ricardo Salgado deveria estar aqui”.

“Tentamos evitar que isso acontecesse. Pedimos a dispensa para, no fundo, a dignidade da própria Justiça portuguesa, possamos evitar isto no futuro. Uma Justiça que humilha, e que viola a dignidade de qualquer pessoa, é uma Justiça que viola a sua própria dignidade”, refere.

Assim, o advogado assume que se não fosse a pessoa em questão, Ricardo Salgado, o tratamento teria sido diferente. “É incompreensível e é uma vergonha mundial aquilo que está a acontecer. Talvez na Rússia isto seja apreciado, mas aqui não”, frisou. Francisco Proença de Carvalho referiu ainda que Salgado “não tem consciência” de que está num julgamento porque “tem uma doença e os efeitos são o que são”.

Abriu-se uma página negra na justiça portuguesa pelo menos diante de todo o mundo. Temos o relatório médico atual, perfeitamente claro quanto à dependência quase total de Ricardo Salgado para as tarefas mais básicas, como a de higiene. Um relatório médico que disse que a presença dele num tribunal seria irrelevante porque não tem capacidade cognitiva para responder as questões minimamente complexas e isto é o processo mais complexo da nossa história”.

Francisco Proença de Carvalho, advogado de Ricardo Salgado

O advogado de Ricardo Salgado sublinhou também que o caso seria mais bem julgado por juízes internacionais, sublinhando que em Portugal se regrediu em termos de direitos humanos. Isto, derivado da necessidade da presença em tribunal de Salgado apesar da sua condição cognitiva.

“Não posso dizer que o diagnóstico esteja a ser totalmente ignorado, porque já está confirmado pelo tribunal. Mas as consequências desse diagnóstico é que creio que estão a ser mal tratadas daquilo que é o conhecimento que temos do que são os princípios do direito internacional”, disse, recordando casos em diversos países onde os casos foram tratados de outra forma.

Sobre a necessidade da presença no tribunal de Salgado, o advogado assume que se não fosse a pessoa em questão o tratamento teria sido diferente. “É curioso que quando é para retirar direitos aos arguidos, a informalidade impera em alguns tribunais portugueses. Quando é para lhes conceder um direito, vamos ao excesso de formalismo. Aquele relatório dizia exatamente o que qualquer atestado diria”, assume.

“É incompreensível e é uma vergonha mundial aquilo que está a acontecer. Talvez na Rússia isto seja apreciado, mas aqui não”, frisou. A defesa nunca chegou a responder se pretende avançar com uma queixa para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Na sessão da tarde, o outro advogado de Ricardo Salgado, Adriano Squillace, voltou a explicar que o antigo presidente do BES não tem condições para estar neste julgamento e “não consegue compreender o significado deste processo, muito menos prestar declarações. A defesa já requereu por inúmeras vezes perícias”, criticou o advogado.

“Este tribunal tem de verificar se o arguido tem ou não condições” para continuar a ser julgado. “O tribunal está obrigado a realizar uma perícia sob pena de nulidade”, acrescentou, sublinhando que este caso posiciona Portugal para ser condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Adriano Squillace acusou ainda a esta tarde a juíza, Helena Susano, de ser “uma lesada do BES”, uma vez que chegou a pedir escusa do caso BES, invocando ser titular de 560 ações do banco. Mas o Tribunal da Relação decidiu que isso não afetava a sua imparcialidade.

Adriano Squillace apresentou ainda um requerimento para que seja declarada a nulidade do início do julgamento. Segundo a defesa, o tribunal não pode “julgar um arguido que sofre de doença de Alzheimer só porque o nome do arguido é Ricardo Salgado e aparece nos jornais”. Assim, pediu que seja declarada a irregularidade do início do julgamento. São “manifestas as evidências de que o arguido não tem capacidade” para prestar declarações, refere no documento. No que concerne à “persistência” do tribunal em não realizar uma perícia médica, o advogado garante que esta decisão coloca Portugal “na exata situação em que os tribunais russos colocaram a Rússia perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”.

Lesado questionou Salgado sobre paradeiro da provisão para lesados

O lesado do BES Jorge Novo interpelou Ricardo Salgado – com alguma violência verbal – à chegada ao tribunal onde o ex-banqueiro começou esta terça-feira a ser julgado para “lembrar e alertar” que foi exigido ao então presidente do BES uma “provisão para os lesados”.

Em declarações à Lusa, Jorge Novo, da Associação dos Lesados do Papel Comercial do BES, disse que há provas e documentos que atestam que essa provisão foi criada e transitou para o Novobanco, tendo Ricardo Salgado e o seu primo José Maria Ricciardi confirmado já, em anteriores declarações, que tal provisão foi criada e transitou para o banco.

O mesmo responsável relatou ainda que essa provisão “foi desaparecendo” e os lesados suspeitam que o Novobanco utilizou as verbas para “fazer a cobertura das imparidades de ‘senhores’ que não pagaram os milhões” que deviam ao BES e cujas dívidas foram parar ao banco. Questionado como é que os lesados tencionam resolver o problema, designadamente se admitem recorrer aos tribunais ou fazer queixa ao Ministério Público, Jorge Novo vincou tratar-se de “uma questão política, pois são os governantes que têm de resolver o problema”.

A 24 horas do julgamento, a juíza admite Alzheimer de Salgado mas diz que não é razão para suspender, arquivar ou extinguir processo crime

A juíza responsável pelo julgamento de Ricardo Salgado, a menos de 24 horas do início do julgamento, enviou um despacho às partes, assumindo que a extinção, arquivamento ou suspensão do julgamento não tem qualquer fundamento legal, apesar de admitir a doença de Alzheimer do arguido.

Helena Susano, num despacho de 116 páginas, a que o ECO teve acesso, defende que a tese da defesa decorrente do diagnóstico de Alzheimer, de que o ex-homem forte do BES está impedido de exercer, de forma pessoal e plena, a sua defesa, “ainda que se considerasse, em face da prova documental apresentada, demonstrado que o arguido padece da Doença de Alzheimer, em condições suscetíveis de configurar uma anomalia psíquica, a pretensão manifestada pelo arguido não possui qualquer respaldo, como se verá, quer na lei, quer em qualquer outra fonte de Direito”, justifica a juíza que ordenou, na semana passada, que Salgado estivesse presente na primeira sessão de julgamento.

“O Código Penal elenca, de modo taxativo, as causas de extinção da responsabilidade criminal – a prescrição, a morte, a amnistia, o perdão genérico e o indulto –, nelas não se divisando qualquer fundamento de extinção assente numa putativa diminuição das capacidades de exercício da defesa pelo arguido. O arquivamento, por seu turno, corresponde a um despacho que encerra a fase de inquérito e cuja competência se encontra reservada ao Ministério Público e também a suspensão não se encontra prevista nos para este fundamento em que o arguido alicerça a sua pretensão”, diz a magistrada.

ANDRÉ KOSTERS/LUSAANDRÉ KOSTERS/LUSA

O ex-banqueiro está acusado de associação criminosa, corrupção ativa, falsificação de documento, burla qualificada e branqueamento de capitais. Inicialmente estava acusado de um total de 65 crimes e vai agora ser julgado por 62 ilícitos criminais, após terem prescrito dois crimes de falsificação de documento e um de infidelidade.

O levantamento dos crimes em risco de prescrição recentemente realizado pelo MP indica ainda que Ricardo Salgado pode ver cair, em finais de novembro próximo, mais um crime de falsificação e outros dois crimes no final de dezembro. Em janeiro de 2025 prescrevem mais três crimes de falsificação de documento, no final de fevereiro cai um de infidelidade e até 28 de março tombam outros três de infidelidade.

Para já, o coletivo de juízes agendou 14 sessões, até 29 de outubro. As quatro primeiras – a 15 e 16 de outubro – serão para as alegações iniciais do Ministério Público e defesa dos arguidos.

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