Do governador do BdP à venda da TAP, o que fica “pendurado” com um Governo de gestão?
Caso o Executivo caia, o que parece cada vez mais provável, há vários dossiers que podem ter de parar por vários meses, com decisões a passarem para o próximo Governo.
Apesar do chumbo da moção de censura apresentada pelo PCP, esta quarta-feira, tudo aponta para que o Governo acabe mesmo por cair, por outra via. Luís Montenegro anunciou, logo no início do debate, que o Governo vai apresentar uma moção de confiança, que tem o seu destino traçado: PS e Chega anunciaram já que a vão rejeitar, e isso é suficiente para que seja chumbada.
O que isto significa é que – seja qual for o calendário concreto – o Governo vai ficar com poderes limitados, de gestão, após essa rejeição e até haver novas eleições e tomar posse um novo Governo. Isto implica, como já aconteceu noutras ocasiões, que há processos que vão ficar suspensos, porque o Executivo não tem plenos poderes para tomar algumas decisões. As mais evidentes são a privatização da TAP e a escolha do governador do Banco de Portugal, uma vez que o mandato de Mário Centeno acaba em julho. Mas, mesmo aqui, não é totalmente claro o que pode ou não pode ser feito, com os juristas a dividirem-se face a vários casos concretos.
O Presidente da República anunciou no início da noite de quarta-feira que quer estabelecer “um calendário de intervenção o mais rápido possível”, apontando as eleições para 11 ou 18 de maio.
Mas o que são, afinal, as regras de um Governo de gestão? O enquadramento é dado pelo artigo 186 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que estipula: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”. Ora esta redação é propositadamente vaga, da parte do legislador, e isso abre espaço para várias interpretações.
O tema foi, por isso, alvo de uma análise do Tribunal Constitucional, há mais de 20 anos, e é um debate sempre em curso por parte de constitucionalistas, que se dividem entre uma leitura mais restritiva ou mais ampla. E há dois planos, um legal e um político.
O que diz a lei e os constitucionalistas?
“O artigo da CRP é totalmente vago e de propósito. Cabe ao Presidente da República e ao Tribunal Constitucional controlar e, também a Assembleia da República, politicamente. A jurisprudência tende a limitar a uma gestão prudente e necessária e urgente. [O Governo] Só deveria praticar atos de mera gestão corrente não inovatória, a não ser que seja urgente e necessário“, defende ao ECO José Moreira da Silva, advogado especialista em direito público, sócio da SRS Legal.
Já Jorge Bacelar Gouveia, Professor Catedrático e Advogado constitucionalista, defende que “o art. 186º, nº 5, da CRP, não confina a prática de atos do governo demitido apenas aos atos de gestão corrente, havendo pois uma mais larga margem de atos que um governo demitido pode praticar, incluindo atos legislativos”. E explica: “Em vários acórdãos, como o Acórdão Nº 65/02, a expressão “prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos” deve ser filtrada por um critério duplo, aplicando-se tanto a atos legislativos como administrativos: 1) atos que seja inadiáveis, critério temporal; 2) atos que sejam necessários para a melhor proteção do interesse público“.
“No caso da designação de cargos que se integrem dentro do prazo de vigência do Governo, este mesmo demitido, não pode deixar de nomear as pessoas, para não haver prolongamento de mandatos”, afirma Bacelar Gouveia, interpretação que pode aplicar-se ao Banco de Portugal. “Já no caso de decisões de elevada envergadura que possam esperar, implicando uma orientação possível alternativa que possa advir do novo governo a nomear, já tais atos não podem ser praticados“, conclui este especialista.
Para Jane Kirkby, advogada e sócia da Antas da Cunha Ecija, “o que são “atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”, já foi amplamente discutido no contexto de anteriores Governos demissionários. Sumariamente, o critério deve ser, não as matérias, mas a urgência dos atos de decisão”. “O Tribunal Constitucional, em 2022, emitiu um acórdão no qual esclareceu as restrições aplicáveis aos executivos em gestão. Na sua decisão, foi afirmado que um governo demissionário não está sujeito a restrições quanto aos atos que pratica, desde que consiga justificar a urgência da sua realização. O critério fundamental que orienta as ações de um governo demissionário é a necessidade imperiosa de execução desses atos, ou seja, medidas que não possam ser adiadas ou que sejam essenciais para garantir a continuidade da gestão pública“, explica a advogada. Que conclui: “Neste sentido, diria que decisões como a nomeação do próximo governador do BDP, para um mandato de cinco anos, a privatização da TAP e o lançamento de repetição de concurso para novo troço do TGV, extravasam o âmbito dos atos de gestão dos negócios públicos. Já os atos de que dependa a aplicação do PRR, parece-me poder justificar-se pelo critério da urgência”.
Esta especialista lembra que “quanto a quem pode controlar o que pode ou não ser decidido, será o Tribunal Constitucional e o Presidente da República, com as devidas cautelas a fim de não beliscar o princípio da separação de poderes”.
No plano político, tem havido algum consenso em que um Governo de gestão deve abster-se de praticar medidas estruturantes ou nomeações de perfil elevado se houver um desacordo claro do maior partido da oposição, considerando-se que o Executivo está politicamente diminuído e, como tal, deve deixar essas decisões para o sucessor, seja ele qual for.

TAP e BdP são os casos mais mediáticos
Há dois dossiers que são estruturantes e que poderão mais facilmente ficar suspensos.
O primeiro é a privatização da TAP, cujo modelo não tem colhido consenso entre PSD e PS, nomeadamente no que toca à parte do capital a vender. Estava previsto que o decreto-lei da privatização, que conteria o enquadramento e as condições dessa venda, fosse publicado até ao final do primeiro trimestre. No entanto, é bem possível que esse dossier fique agora suspenso, para que essas decisões sejam tomadas por um futuro Governo já com plenos poderes. Ainda na TAP, recorde-se que, aquando da queda do anterior Executivo de António Costa, já tinha sido aprovado um decreto-lei de privatização, mas foi entendido que não havia condições para um Governo de gestão prosseguir com o processo. O mesmo deve suceder agora, apesar dos vários grandes grupos internacionais que já manifestaram interesse na companhia área portuguesa. A TAP foi privatizada em 2015 pelo Governo de Pedro Passos Coelho, já depois do programa de Governo ter sido rejeitado, decisão muito criticada pelo PS, que depois acabou por “reverter” essa decisão, quando António Costa chegou ao poder.
Outro caso por fechar é uma nomeação, a do Governador do Banco de Portugal, que cabe ao ministro das Finanças. O mandato de Mário Centeno acaba em julho deste ano, e parece evidente que a intenção de Miranda Sarmento e de Luís Montenegro é não o reconduzir. Porém, dada até a sensibilidade “política” do tema, é possível que essa decisão fique para o próximo Governo, mesmo que tal implique que Centeno possa ficar mais algum tempo no cargo após o termo oficial do mandato. Porém, esse entendimento não é certo, com Bacelar Gouveia a defender que não há limitação alguma da decisão governamental e Jane Kirby a considerar o contrário. De acordo com o calendário eleitoral indicativo descrito na quarta-feira pelo Presidente da República, as eleições antecipadas deverão ocorrer a meio de maio, pelo que é de esperar que haja Governo no final desse mês ou no início de junho. Ou seja, apesar de ser comum ser anunciada uma decisão sobre o Governador um pouco antes do fim do mandato, neste caso isso deverá mesmo ficar para o novo Executivo, que deverá entrar em funções com o mandato de Mário Centeno ainda válido. Para além disso, o processo de indicação de um Governador tem uma série de formalidades, como a ida prévia ao Parlamento, o que atrasa o processo e poderá obrigar Centeno a ficar mais algum tempo no lugar.
No que toca à venda do Novo Banco, o processo não deverá conhecer qualquer mudança face ao previsto, porque a decisão de alienação da instituição não cabe ao Estado e sim ao seu acionista dominante, a Lone Star. O Estado tem 25% do banco mas não é ele quem decide a venda ou os seus calendários, decidindo sim se, aquando da operação de entrada em bolsa, vende parte da posição ou não. De qualquer forma, ainda estamos a alguns meses de distância desse momento.
Outro dos pontos clássicos quando se fala de instabilidade governativa é a execução do PRR, que ficaria em risco. No entanto, foi feito o processo de reprogramação das verbas e este parece ser um exemplo claro de um processo cuja não execução acarretaria graves prejuízos para o País. Assim, é de esperar que nada mude por qualquer limitação de poderes do Executivo.
Um ponto que poderia gerar dúvidas é o relançamento do concurso para o segundo troço do TGV entre Porto e Lisboa. O júri excluiu a proposta do único concorrente, a do consórcio liderado pela Mota-Engil, e deverá lançar um novo, com condições diferentes, em breve. Este é um tema em que, politicamente, há algum consenso partidário e há já um outro processo relacionado em curso, com o primeiro troço (que deixaria de fazer sentido se o segundo troço não avançasse). Ou seja, sendo a continuação de um processo, ainda por cima consensual, é possível que possa prosseguir, não sendo certo .
Já no que respeita ao novo aeroporto, os próximos passos estão nas mãos da ANA e não do Governo, pelo que nada deverá ser posto em causa pela queda do Governo (a não ser que o próximo possa querer reverter qualquer decisão, mas sem estar isto ligado a um Governo de gestão).
Lítio e energia eólica offshore
O Governo apresentou em dezembro do ano passado um plano para as matérias-primas críticas em Portugal, na sequência de um esforço europeu nesse sentido. O plano prevê o lançamento de concursos para a prospeção destas matérias-primas, que vão do cobre ao lítio, e que, de acordo com a ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, deverão ter lugar em 2025. Ao mesmo tempo, prevê atribuir um estatuto prioritário aos projetos que sejam considerados estratégicos neste âmbito e avançar com apoios ao financiamento.
O leilão para a instalação de mais energia eólica offshore no país já se arrasta desde 2022, quando o então primeiro ministro, António Costa, anunciou esta intenção. Até ao final de 2023 registavam-se 50 empresas interessadas em investir nesta fileira em Portugal, embora duas tenham entretanto comunicado que desistiam da corrida (Orsted e Equinor). No Orçamento do Estado, o atual Governo afirmava a intenção de dar um pontapé de partida (“lançar os procedimentos”) até ao final de 2024. Mas foi só este ano, em fevereiro, que foram conhecidas as áreas aprovadas pelo Governo como tendo potencial para a construção de projetos. Do leilão em si, ainda não foram avançados novos prazos.
É possível que alguns destes processos fiquem suspensos.
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