Da esfera do Estado para a Câmara, quem tutela (e quem lidera) a Carris?

Pedro Bogas foi nomeado presidente da Carris em 2022, após o 'ok' da Câmara de Lisboa, que tutela a empresa desde 2017. Gestor foi adjunto de Sérgio Monteiro, que avançou com subconcessão da empresa.

O descarrilamento do Elevador da Glória, esta quarta-feira, dia 3 de setembro, que resultou na morte de, pelo menos, 16 pessoas gerou uma onda de consternação nacional e internacional. As causas do acidente serão agora apuradas e a Carris, a empresa responsável pelo ascensor, vai avançar com uma auditoria interna e uma investigação externa independente para apurar responsabilidades. Mas e quem responde pela Carris, a empresa de transportes públicos de Lisboa que, além dos icónicos elevadores da cidade, é responsável pelo serviço de autocarros e elétricos da capital?

Liderada por Pedro Bogas desde 2022, a Carris é uma empresa pública cuja gestão passou, em 2017, para as mãos da Câmara Municipal de Lisboa, por decisão do então primeiro-ministro António Costa. A transferência da gestão foi aprovada em 2016 e tornou-se efetiva no dia 1 de fevereiro do ano seguinte, atribuindo à autarquia a tutela da empresa de transportes públicos da cidade, que detém todo o capital. António Costa justificou, na altura, que o acordo de transferência da Carris, do Estado para a Câmara Municipal de Lisboa, põe “fim a um contencioso histórico entre o Estado que nacionalizou a Carris e o município de Lisboa que viu a sua empresa de transportes nacionalizada”.

“A Carris vai ser uma empresa pública, mas vai ser uma empresa gerida pelo município de Lisboa“, explicou, atirando que a empresa existe para prestar um serviço público de transportes e “não deve ser um produto financeiro”. “Podemos aliás ver, nos últimos cinco anos, qual é a visão desta empresa como um produto financeiro: era produzir resultados financeiros e não transportar pessoas, era resolver um problema financeiro e não estruturar uma cidade”, atirou, numa crítica direta às políticas do Executivo anterior.

Antes de passar para a câmara, a Carris estava na esfera do Estado e, em 2015, a sua subconcessão, juntamente com a do Metro de Lisboa e Transtejo, chegou a ser entregue aos espanhóis da Avanza, num processo promovido pelo então secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, do Executivo de Pedro Passos Coelho. Sérgio Monteiro, que ficou conhecido pelo seu papel nas privatizações nos transportes, tendo liderado a venda da TAP, CP Carga e Emef, defendeu a subconcessão da Carris, teve precisamente como seu adjunto o atual presidente da empresa de transportes públicos de Lisboa.

O presidente da Carris, Pedro Boga, que esta quarta se apresentou perante os jornalistas para defender que a Carris cumpriu “escrupulosamente” a manutenção do Elevador da Glória, foi adjunto de Sérgio Monteiro desde julho de 2011 até 2012, quando assumiu um cargo de vogal da Carris e do Metro. De janeiro a julho de 2011 acumulou, ainda, com um cargo de administrador não executivo da Refertelecom. Esteve ainda na Refer, na administração do Metro de Lisboa e era quadro da Infraestruturas de Portugal, desde agosto de 2019, quando foi nomeado para presidir à Carris, em 2022. Licenciado em direito, Pedro Bogas foi, durante cerca de 10 anos, advogado e depois sócio da sociedade de advogados Ferreira Pinto & Associados, atualmente integrada na Sérvulo & Associados.

Presidente da Carris, Pedro Bogas, garantiu que manutenção do Elevador da Glória foi assegurada “escrupulosamente” pela empresaMIGUEL A. LOPES/LUSA

A Câmara de Lisboa aprovou, por maioria, Pedro Bogas para a presidência da Carris em maio de 2022, sucedendo a Tiago Farias, que estava à frente da empresa desde 2016. Apesar de a proposta apresentada pela empresa para o conselho de administração ter recebido luz verde camarária — com a abstenção do PS — , a associação do gestor e advogado a Sérgio Monteiro, que defendia a privatização dos transportes públicos, não passou despercebida.

PS mostrou “preocupação face ao perfil”

O vereador socialista João Paulo Saraiva explicou ao Público, à data, que o PS decidiu abster-se por entender que a escolha de pessoas para este tipo de cargos “deve partir da presidência da câmara, responsabilizando-a pela sua nomeação”. Ainda assim manifestou “preocupação face ao perfil” de Pedro Bogas, que era quadro da Infraestruturas de Portugal e já tinha sido administrador do Metro de Lisboa, tendo “participado num Governo [de Pedro Passos Coelho] que defendeu a privatização da Carris e do Metro”.

A adjudicação da manutenção do Elevador da Glória a privados vem de 2011, do tempo em que Bogas era adjunto de Sérgio Monteiro, tendo-se juntado depois à empresa, num primeiro momento, como vogal. O membro do Executivo de Passos Coelho queria reduzir a fatura do Estado, passando para os privados a gestão dos transportes públicos, contudo a subconcessão da Carris foi revertida em 2016, depois de António Costa assumir o Governo. Apesar de apenas agora ter acontecido um acidente mortal, desde que a manutenção dos elevadores da Carris foi entregue a uma empresa externa ocorreram pelo menos dois acidentes, em 2013 e 2018.

Seis anos depois de a administração da Carris ter revertido a subconcessão da empresa a privados, já com Carlos Moedas como presidente da Câmara, Bogas foi o nome escolhido para passar a liderar a Carris, cujas queixas sobre falhas na prestação do serviço público de transporte, redução da velocidade comercial e o incumprimento dos horários se têm vindo a intensificar nos últimos anos, agravadas pelo forte aumento do turismo, que coloca pressão adicional na rede.

A escolha dos membros do conselho de administração, segundo os estatutos da Carris, cabe à assembleia geral da empresa, tendo que ser aprovada pelo acionista, ou seja, pela autarquia. Os Estatutos da CARRIS (artigo 10.º alínea b) preveem que compete à Assembleia Geral eleger os membros do Conselho de Administração, designando o respetivo presidente. O procedimento aplicável no caso de substituição de membros é regulado pelo artigo 7º dos Estatutos da CARRIS. No mais é aplicável o disposto no Código das Sociedades Comerciais”, refere a Carris no seu relatório de governo societário de 2022, ano em que foi nomeado a nova administração.

Refere o mesmo relatório que os “estatutos da CARRIS preveem, no n.º 2 do seu artigo 6º, que o mandato dos membros do Conselho de Administração seja coincidente com o dos titulares dos órgãos autárquicos do Município de Lisboa” e o “conselho de administração que iniciou funções a 25 de maio de 2022, foi formalmente eleito, por DUE a 25 de maio de 2022”.

Relatório de Governo societário de 2022 da Carris

Relativamente à designação de um novo conselho de administração da Carris, a proposta apresentada referia que “os gestores públicos são escolhidos de entre pessoas com comprovada idoneidade, mérito profissional, competência e experiência de gestão, bem como sentido de interesse público, e eleitos nos termos da lei comercial”

Acompanham o presidente Pedro Bogas no conselho de administração da empresa, Ana Cristina Pereira Coelho e Maria de Albuquerque Rodrigues da Silva Lopes Duarte, como vice-presidentes, Sara Maria Pereira do Nascimento e Fernando Pedro Peniche de Sousa Moutinho, como vogais.

Maior procura turística pressiona oferta

Responsável por assegurar os autocarros e elétricos da capital, a Carris tem sido confrontada com críticas devido ao mau serviço prestado aos seus clientes, com a empresa a não conseguir dar resposta à procura crescente. No caso do Elevador da Glória, que poderá ter descarrilado devido a falhas de manutenção, a empresa já previa um forte aumento do número de utilizações.

O Plano de atividades e orçamento 2025 da Carris prevê que o número de passageiros dos ascensores — que incluiu o da Glória — passe de 1,48 milhões em 2024, para 1,70 milhões , este ano, um aumento de 14,5%, e continue a crescer nos anos seguintes.

Apesar da expectativa de mais passageiros, o orçamento atribuído pela autarquia encolheu quatro milhões. Segundo o Livre e o BE, a Câmara retirou quatro milhões de euros ao orçamento da empresa municipal Carris para atribuir esse mesmo montante ao evento de tecnologia Web Summit.

No plano de atividades para os próximos três anos, a empresa refere que a estratégia “mantém como mote, para o período de 2025 a 2028, afirmar a CARRIS como garante da Mobilidade Inteligente do Futuro. Conceito que assenta em dois pilares essenciais: sustentabilidade e melhoria da qualidade e eficiência do serviço prestado pela Carris”.

A empresa adianta ainda que “serão recebidos já em 2025, 96 novos autocarros a energias limpas (61 destes com propulsão elétrica), o que evidência o forte compromisso da CARRIS com a transição energética e a descarbonização das suas operações”. “No presente Plano prevê-se que, no final de 2028, a frota sustentável da CARRIS venha a atingir os 93%, o que implicará a aquisição de 488 novos autocarros a energias limpas, dos quais 323 a propulsão elétrica”, conclui.

No passado mês de maio, a companhia adiantou que pretende implementar até 2030 um novo plano de rede, de forma a melhorar o serviço de transporte e a mobilidade na cidade de Lisboa.

Com o acidente do Elevador da Glória a levantar muitas questões sobre a manutenção do equipamento gerido pela Carris — os próprios colaboradores avisaram para falhas na manutenção — , a companhia poderá ser forçada a rever a sua estratégia e os contratos de manutenção externos.

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