Miguel de Almada é o advogado do mês da edição de maio da Advocatus. Para o sócio da Cuatrecasas o “retraimento económico” e a “perda de confiança” ditarão o regresso de uma advocacia de crise.
Miguel de Almada, sócio coordenador da área de litígios e arbitragem da Cuatrecasas, esteve à conversa com a Advocatus e garantiu que o setor não será o mesmo depois do Covid-19. O advogado que lidera a Task Force Coronavírus da firma admite que em tempos de dificuldade a exigência “é maior e a qualidade e preparação tendem a marcar mais a diferença”.
Face à pandemia Covid-19 que está a assolar o país e o mundo, foi destacado pela Cuatrecasas para liderar a Task Force Coronavírus da sociedade. Como encarou este novo desafio proposto?
Com muito entusiasmo e especial interesse, quer pela importância fulcral da missão da Task Force, quer pela oportunidade de intervir e construir soluções perante um fenómeno tão disruptivo, transversal e universal como esta crise, que se desenvolve e transforma dia-a-dia e cujas consequências práticas, económicas, jurídicas e outras se continuarão a fazer sentir ao longo dos próximos anos. Trata-se de estudar e desenhar respostas para um presente em movimento, enquanto se prepara futuros imediatos, mas também de médio e longo prazo, o que é não só muito interessante como verdadeiramente gratificante.
Em que consiste a Task Force Coronavírus da Cuatrecasas?
A ideia da Task Force nasceu logo nos primeiros dias de março, ainda antes de nos retirarmos para casa em regime de teletrabalho, como proposta para otimizar, em qualidade e eficiência, a assistência e apoio aos nossos clientes em toda a gama de questões e desafios, trazidos pela epidemia do Covid-19 e pelas medidas aprovadas, e a aprovar, para lhe fazer face.
A Task Force é, assim, uma equipa multidisciplinar de onze elementos que congrega um conjunto de advogados de diversas áreas de prática, mas também, as nossas áreas da comunicação e da gestão do conhecimento, com o intuito de assegurar a harmonização e coordenação do tratamento das referidas questões, a reflexão sobre o posicionamento a assumir perante determinadas matérias de maior complexidade e projeção futura e a organização e articulação de iniciativas de informação e comunicação, como o website, legal flashes, newsletters e webinars.
A Task Force promove ainda a recolha de informação, conteúdos e materiais de suporte, assegurando a construção de uma base de conhecimento e experiências para apoio aos advogados no tratamento das solicitações de clientes. Além disso, a Task Force está também a dinamizar e gerir o envolvimento e a participação da Cuatrecasas em projetos de responsabilidade social que contribuem para a mitigação dos efeitos negativos da crise.
Este novo desafio ocupa grande parte do seu dia?
Nas suas várias vertentes, ocupa um tempo considerável todos os dias. No início, mais numa componente de estruturação e definição de linhas de orientação, depois na gestão e coordenação propriamente dita das diferentes componentes de atuação que referi antes, além do permanente estudo e atualização, da intervenção na preparação de respostas, soluções e estratégias para clientes. É uma equipa de primeiro nível, com verdadeira dedicação e grande espírito colaborativo que tem feito um trabalho extraordinário. Isso exigiu um esforço muito relevante de todos e uma interação constante.
É uma equipa de primeiro nível, com verdadeira dedicação e grande espírito colaborativo que tem feito um trabalho extraordinário.
Reunimos por Zoom duas vezes por semana, com agenda previamente definida e registo escrito do teor da reunião, além de termos depois reuniões setoriais por assuntos ou áreas de intervenção. Tudo tem ângulos bons e uma das revelações realmente construtivas desta crise é a expressão de vitalidade e o capital de colaboração e eficiência interdisciplinar que esta equipa revelou e que nos tem permitido ter feedbacks muito positivos quanto ao nosso posicionamento e atuação.
Considera que o Covid-19 vai afetar também a médio e longo prazo o setor da advocacia?
Vai afetar decisivamente a curto e médio prazo, mas terá também efeitos que se estenderão a longo prazo. Vejo, desde logo, dois tipos de impactos que conduzem a transformações: no tipo de trabalho a desenvolver e na organização e forma de exercício da profissão. O retraimento económico, a perda de confiança e um recrudescimento geral de desequilíbrios e dificuldades, ditará o regresso de uma advocacia de crise, por contraponto ao cunho expansionista a que assistimos nos últimos anos. Neste sentido, o foco de trabalho dentro de várias áreas de atuação mudará e mudarão também os níveis de solicitação, o volume de trabalho e o protagonismo entre áreas. Por outro lado, as restrições próprias deste período estão a mudar também o próprio exercício da advocacia e há aqui um ponto de viragem cujos efeitos vão perdurar no tempo.
O retraimento económico, a perda de confiança e um recrudescimento geral de desequilíbrios e dificuldades, ditará o regresso de uma advocacia de crise, por contraponto ao cunho expansionista a que assistimos nos últimos anos.
Curiosamente, as condicionantes que enfrentamos e as que continuaremos a viver mesmo depois de iniciada a abertura, funcionam como um acelerador na implementação de movimentos e tendências em que vínhamos mais vagarosamente entrando de há um tempo a esta parte: a transformação digital, com a sua faceta mais evidente e imediata no trabalho à distância, nas comunicações e no uso do vídeo, mas também o paperless, a simplificação de processos, as soluções de inteligência artificial, entre outras.
Estes shifts exigem músculo, preparação, plasticidade, complementaridade, capacidade de adaptação e qualidade acrescida quer dos advogados quer dos recursos que apoiam a atividade. Representam, por isso, oportunidades para uns e riscos muito relevantes para outros. Em tempos de dificuldade a exigência é maior e a qualidade e preparação tendem a marcar mais a diferença. A Cuatrecasas, por exemplo, fez uma grande aposta tecnológica que lhe tem permitido estar a trabalhar desde casa, mas junto dos clientes de uma forma muito natural. Está, por outro lado, a preparar a sua nova sede em Lisboa para 2021, num processo de mudança com grande abrangência em que todas as realidades acima referidas terão um peso muito relevante.
Em plena pandemia, qual considera ser o principal desafio que a advocacia enfrenta atualmente?
No imediato, destacaria os que resultam do isolamento e da paragem da atividade, tanto económica, como dos tribunais, serviços e instituições. A advocacia é um reflexo dos movimentos e comportamentos dos agentes económicos e da sociedade, pelo que aqueles fenómenos têm repercussões imediatas para as quais é preciso encontrar soluções. O primeiro desafio – isolamento – afetará mais a quem tem menos sofisticação de meios e estrutura, a uma advocacia mais tradicional e não às tanto sociedades mais preparadas. O segundo afeta a todos, embora de diferentes formas e com intensidades distintas.
Um ano e poucos meses depois de ter integrado a equipa de sócios da Cuatrecasas, que balanço faz?
Não podia fazer um balanço mais positivo. Vindo de onde vinha [Morais Leitão], a exigência era naturalmente muito elevada mas hoje posso dizer que as expectativas foram claramente excedidas, quer olhando para a Cuatrecasas na sua dimensão global, quer para a realidade nacional e para o “corpo” de sócios portugueses, quer ainda concentrando-me na área de prática de resolução de litígios que coordeno. O acolhimento e a integração foram excelentes e a Cuatrecasas é uma grande firma, num grande momento em termos globais e nacionais, com uma estrutura de meios e uma capacidade de ação invulgares mesmo no universo das sociedades de topo.
Vindo de onde vinha [Morais Leitão], a exigência era naturalmente muito elevada mas hoje posso dizer que as expectativas foram claramente excedidas, quer olhando para a Cuatrecasas na sua dimensão global, quer para a realidade nacional e para o “corpo” de sócios portugueses, quer ainda concentrando-me na área de prática de resolução de litígios que coordeno.
Em Portugal, a estrutura, a qualidade da equipa, a homogeneidade do corpo de sócios e a linha de rumo traçada, permitem fazer um trabalho de primeira linha junto dos clientes e uma assegurar uma presença e uma afirmação no mercado de grande solidez. No que toca em particular ao departamento que coordeno, é um grupo extraordinário, com grande capital de preparação, qualidade e experiência, mas também com uma componente de juventude, o que, associado a uma dimensão humana, para mim fundamental, lhe confere uma capacidade de resposta e um potencial de crescimento tremendo. Nesta coordenação a prioridade inicial foi o entrosamento, junto com a preparação de um novo caminho e o trabalho que fizemos permitiu ter tido logo no primeiro ano resultados excelentes, acima do projetado e lançar uma série de fundações importantes para o futuro, designadamente na definição de estratégia, na organização e na capacidade de resposta.
Coordena a área de arbitragem e resolução de litígios da Cuatrecasas. Sente que a arbitragem em Portugal ainda é um mundo desconhecido por parte dos clientes?
Tem-se registado uma notória evolução neste domínio. Hoje não se pode dizer que seja uma realidade desconhecida, apesar de se verificarem ainda bastantes assimetrias no domínio das matérias da arbitragem e na familiaridade com os seus processos e especificidades. As empresas de maior dimensão, com litígios mais recorrentes e departamentos jurídicos estruturados e organizados conhecem bem a realidade e estão bem capacitadas para fazer opções e adotar decisões a este respeito.
No entanto, continua a existir uma porção relevante do mercado que tem reduzida experiência e conhecimento, o que é, em si mesmo um óbice a uma maior e melhor utilização deste meio. Em qualquer caso, o rumo tem sido muito positivo e os sinais permitem esperar um futuro interessante, embora ao contrário da nossa luta contra o coronavírus, a curva aqui se esperasse menos aplanada do que a que se tem assistido.
Qual é grande mais-valia da utilização deste meio alternativo de resolução de litígios?
A arbitragem voluntária é um meio de resolução de litígios com méritos muito importantes e um potencial e uma capacidade de resposta extraordinários ao serviço da economia e da paz social. É um exercício de liberdade vinculada, difundido internacionalmente que tem grande capacidade de adaptação à realidade, ao mesmo tempo que garante o cumprimento de padrões universais de exigência a que deve responder um mecanismo de solução de controvérsias. Nesta linha, as principais mais-valias da arbitragem derivam da especialização, da flexibilidade e da universalidade, como características geradoras de qualidade das decisões, de eficiência de processos e resposta às especificidades de cada caso concreto, com um âmbito transfronteiriço que permite ultrapassar barreiras no comércio internacional.
Qual é o maior desafio que a arbitragem enfrenta neste início de década?
No plano internacional e interno, embora em doses distintas num e noutro, diria que os desafios principais respeitarão à sua maturidade, confiança e afirmação como método privilegiado para a resolução de determinados tipos de litígios. Na realidade nacional será, em particular, muito importante a sua consolidação e expansão nos domínios da atividade empresarial e comercial para que está naturalmente talhada, a sua clarificação em áreas como a do contencioso administrativo e a sua abertura a outras matérias como a dos litígios societários, onde estou convicto que acrescentará verdadeiramente valor.
Os desafios principais respeitarão à sua maturidade, confiança e afirmação como método privilegiado para a resolução de determinados tipos de litígios.
Como pedras principais nestes caminhos elegeria o desconhecimento e a demagogia. E muitas vezes os dois vêm de mãos dadas e alimentam-se mutuamente. As críticas que se levantam à arbitragem vêm em regra de quem não a conhece devidamente e concretizam-se, no essencial, em chavões e desinformação que distorcem a realidade. Por isso, transparência, informação e divulgação são ferramentas chave para a afirmação da arbitragem.
Foi recentemente distinguido como “excellent”, em Arbitration e Civil and Commercial Litigation, pela Leaders League. Como encara este reconhecimento?
Num certo circuito, os diretórios prestam um contributo importante a advogados e sociedades de advogados, no sentido da sua valorização, projeção e responsabilização e até de estímulo a uma sã concorrência. Hoje este é um domínio em que a oferta prolifera e os níveis de credibilidade e rigor variam bastante, havendo também alguns desajustes naqueles que merecem mais crédito. Pelo que sei, a Leaders League tem vindo a implementar um projeto com profissionalismos e bases sólidas, pelo que é, naturalmente, com agrado que vejo esta distinção.
Devemos, no entanto, relativizar estas distinções e colocar no plano certo as prioridades. O que me preenche verdadeiramente na advocacia é, por um lado, fazer um trabalho que acrescente valor ao cliente, lhe dê soluções e vitórias e, por outro, promover condições para que os que me rodeiam o façam também. Se associado a isso vierem reconhecimentos e prémios, ótimo. Como sempre ouvi o José Miguel Júdice dizer “mais vale tê-los que não os ter”, mas tem de estar assegurado o essencial.
Existiu algum caso, no qual tenha estado envolvido, que o tocou particularmente e que tenha de alguma forma mudado a sua perspetiva de vida?
Em 22 anos de exercício da profissão a minha perspetiva de vida foi mudando, com um contributo relevante de diversos casos em que participei. Olhando para trás, não posso dizer que me salte à vista um daqueles casos de filme ou de livro que mudam, por si só, a vida do protagonista. Encontro, no entanto, diversas interações e situações que me moldaram e me fizeram acreditar que compensa lutar por causas e dar primazia a valores, apesar dos revezes, das dificuldades e de eventuais solidões no caminho.
Olhando para trás, não posso dizer que me salte à vista um daqueles casos de filme ou de livro que mudam, por si só, a vida do protagonista.
Ao longo dos anos e fruto da experiência em vários casos, fui também aprofundando o pragmatismo e aprendendo a descer à realidade, a olhar à volta para procurar compreender o que move cada um, em cada momento e de que forma se podem encontrar soluções por esse prisma.
Com mais de 20 anos de experiência, quais são as suas perspetivas profissionais para os próximos 20?
A profissão vai mudar muito nos próximos 20 anos. Redefinida, continuará a ser de grande importância, mas é difícil prever exatamente onde estaremos. Um desejo, mais do que uma perspetiva, é continuar a realizar-me e motivado profissionalmente. A resolução de litígios é uma paixão, mas tenho também preocupações mais abrangentes e um gosto especial pela componente estratégica e de organização e pelo acompanhamento da evolução do papel do advogado.
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Miguel de Almada: “A perda de confiança ditará o regresso de uma advocacia de crise”
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