Governo quer relançar economia com obras públicas. Economistas divididos

O Governo diz que o investimento será o "coração" da recuperação. Mas há quem alerte para "exageros". Os economistas dividem-se sobre a "dose" de investimento público, mas o crucial é a sua qualidade.

Parece haver consenso de que será necessário algum investimento público durante a fase de recuperação da economia, mas há divergências quanto à dose e as áreas a aplicar. O ministro do Planeamento, Nelson Souza, defende que o “investimento público será o coração do plano de recuperação” e o ministro das Finanças, Mário Centeno, diz que “vai ser uma pedra chave no nosso plano de recuperação”. Já o ex-ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, considera que “entrar em quimeras de investimento público seria um disparate total” e o PSD teme que este não seja o instrumento mais adequado por causa do desfasamento temporal. Para já, a intenção do Governo é executar o investimento previsto para 2020, o qual tem ficado aquém dos objetivos nos últimos anos.

A questão que divide os economistas mais ou menos intervencionistas tende a reaparecer em alturas de crise. Uns querem que o Estado avance com investimentos — “investimento público será certamente um dos grandes instrumentos do plano de recuperação”, assumiu Nelson Souza, em entrevista ao ECO — numa altura em que a falta de confiança (e de recursos) do setor privado deixa a economia paralisada. Esta foi a primeira resposta da União Europeia à crise financeira, mas esta abordagem viria a ser abortada e, em parte, terá levado à crise das dívidas soberanas. “Vamos continuar a promover o investimento público como um instrumento fundamental para animar a economia e obter, entre outros efeitos, a dinamização da procura que, em último caso, também é aproveitada pelo setor privado”, acrescentou esta semana no Parlamento, afirmando que esta estratégia irá aumentar a confiança dos agentes económicos.

Outros economistas temem não só o fardo de dívida (e de impostos futuros) que esse “grande” investimento público cria como duvidam do seu efeito no relançamento da economia. Muita literatura refere o efeito de “crowding out“: existindo uma disputa por recursos (trabalho e capital), o aumento do investimento público levaria a uma queda do investimento privado — este deverá cair já por causa da recessão –, mas com o desemprego em alta essa questão não deverá colocar-se. Em entrevista ao ECO, Álvaro Santos Pereira, diretor do departamento de economia da OCDE, considerou que esse dinheiro do investimento público devia ser utilizado para “ajudar as empresas e para as pessoas voltarem a ter emprego”.

Em 2020, no panorama nacional, a intenção do Governo é manter o que estava planeado, segundo o primeiro-ministro. O Orçamento do Estado para 2020 prevê 4.992 milhões de euros de investimento, mais mil milhões do que o executado em 2019 (3.980 milhões de euros). No entanto, este valor pode vir a ser aumentado ou revisto em baixa no orçamento suplementar (ou retificativo) que será apresentado antes da pausa de verão dos trabalhos parlamentares. O ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, já assumiu no Parlamento que o investimento público “pode ter um papel determinante”, anunciando que vai tirar da “gaveta” várias empreitadas até ao final do ano e que o Ferrovia 2020 já está em velocidade de cruzeiro, como mostraram os dados da execução orçamental até março.

Para atingir o objetivo, o Executivo quer agilizar os procedimentos administrativos: “É importante que o Estado tenha a capacidade de absorver e compensar essa diminuição da capacidade produtiva e o investimento publico é muito necessário”, disse o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, no Parlamento. No início do ano já foram lançados alguns concursos como as novas linhas de metro do Porto e de Lisboa (com recurso a fundos comunitários) e a modernização da Linha da Beira Alta, tendo março sido o mês com o maior volume de concursos públicos desde 2010. No caso do aeroporto, este também deverá avançar, segundo António Costa, mas não conta diretamente com dinheiro público dado que será financiado pela concessionária ANA (Vinci).

No panorama europeu, as incertezas à volta da forma como o dinheiro do plano de recuperação chegará aos 27 Estados-membros não permite grandes conclusões sobre se este será mais focado em investimento público ou optará por outras vias. Será preciso saber exatamente para que programas os fundos serão canalizados e se chegarão aos países na forma de subvenções ou empréstimos para perceber o seu efeito no investimento público. A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, disse a maioria do investimento iria ser canalizado para reformas nos Estados e para a coesão, mas também para o pacto europeu verde, para a transição digital e para a criação de maior autonomia de produção em áreas essenciais.

Investimento público para reanimar economia: sim, mas com que dose?

Até o Fundo Monetário Internacional (FMI), uma entidade vista como mais conservadora, assumia no World Economic Outlook e no Fiscal Monitor que os países terão de aumentar o investimento público. Um estímulo orçamental, “como por exemplo o investimento em infraestruturas públicas ou cortes transversais nos impostos”, podem “prevenir uma queda mais acentuada da confiança, ajudar a aumentar a procura agregada, limitar a propagação do choque ao reduzir as falências e evitar uma recessão ainda pior”.

No Fiscal Monitor, o Fundo mostrava como o investimento público estava a diminuir nas economias avançadas antes da crise pandémica. “O argumento para o investimento público é particularmente forte em países com um rácio de capital face ao PIB baixo ou em queda (isto é, onde o investimento bruto não compensa pela depreciação), com uma acumulação lenta de capital per capita e uma procura agregada fraca”, aconselhava o FMI.

Esse é o caso de Portugal, como alertou a Comissão Europeia em fevereiro: “O investimento público em Portugal tem sido mais baixo do que o consumo de capital fixo desde 2012, o que se traduz num investimento público em termos líquidos continuamente negativo e numa erosão potencial do stock de capital”. Esta deterioração do investimento público contrasta com o investimento privado líquido que é positivo desde 2018. Atualmente, o Estado só representa 10% do investimento total da economia portuguesa.

“O investimento público, efetuado de forma continuada pode contribuir para a obtenção de uma taxa de rentabilidade macroeconómica positiva (cerca de 1,6% no período 1960-2014 em Portugal)“, argumenta, em resposta ao ECO, António Afonso, professor do ISEG, citando um estudo seu com Miguel St. Aubyn do Conselho das Finanças Públicas.

Os números do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que um euro de investimento (público e privado) conduz a 37 cêntimos de importações (contributo negativo para o PIB) e 63 cêntimos de PIB. Já um euro de exportações — que foram o motor da recuperação económica da crise anterior, mas que poderão demorar a reanimar, principalmente no turismo, por causa da pandemia — conduz a 44 cêntimos de importações e 56 cêntimos de PIB.

"O investimento público, efetuado de forma continuada pode contribuir para a obtenção de uma taxa de rentabilidade macroeconómica positiva.”

António Afonso

ISEG

Porém, Pedro Braz Teixeira, diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade, duvida dos efeitos de um grande aumento do investimento, alertando que “é muito difícil haver estudos fiáveis em relação ao investimento público”. “Como é que se diferencia entre investimento útil e disparatado (TGV)?“, questiona, argumentando que, “em geral, nos estudos, quanto maior a derrapagem, maior o investimento público e maiores seriam os seus efeitos, o que não é razoável”. Esta semana, o Fórum escrevia mesmo este era o “pior instrumento possível” para combater uma recessão destas características.

Susana Peralta, professora da Nova SBE, também reconhece que os estudos sobre os efeitos do investimento público têm um “problema enorme de causalidade”, mas a maioria dos estudos aponta para um efeito positivo no PIB quando se está perante aumentos nos gastos públicos “razoavelmente contidos”. No entanto, nota que “evidentemente a qualidade do investimento público é determinante” para tirar conclusões mais robustas.

“Os multiplicadores (rácio da variação de euros do PIB como consequência da variação de euros do investimento público) dependem do horizonte temporal, das características dos países, da composição do próprio investimento e também do estado (expansão/recessão da economia), entre muitas outras dimensões”, acrescenta Pedro Brinca, professor de macroeconomia na Nova SBE. Contudo, relativamente a Portugal, o economista considera que “os níveis baixíssimos de investimento público que têm sido observados no passado mostram que mais do que uma política oportuna de combate à recessão, é mesmo uma necessidade do país”.

"Em geral, nos estudos, quanto maior a derrapagem, maior o investimento público e maiores seriam os seus efeitos, o que não é razoável.”

Pedro Braz Teixeira

Fórum para a Competitividade

Há ainda dificuldades inerentes ao momento que se vive, nomeadamente o condicionamento da vida pública até que haja uma vacina ou um tratamento eficaz. “É importante salientar que estimular a procura [através do aumento do investimento público], em quarentena, tem impactos limitados“, avisa Braz Teixeira, explicando que “há muitos setores impossibilitados de vender (por exemplo, vestuário) que não são beneficiados, pelo que os benefícios circulares habituais estão cerceados”.

Esta é uma crise única no sentido que é uma crise de procura i.e. afeta a capacidade/vontade de as pessoas consumirem, e uma crise de oferta ao mesmo tempo i.e. afeta a capacidade/vontade de as pessoas produzirem”, complementa Pedro Brinca, explicando que “a estratégia de promover o investimento público em altura de recessões faz mais sentido num contexto de crise de procura”. “Dependendo do peso relativo destas duas forças, pode fazer mais ou menos sentido”, conclui, referindo que nos “inquéritos às empresas que têm sido feitos, o efeito dominante parece ser o da crise na procura e sendo assim, uma política de investimento público poderá fazer sentido“.

Uma União dividida no investimento público

Entre as economias avançadas, Portugal tem um dos rácios de investimento público no PIB mais baixos: em 2019 foi de 1,9%, segundo os dados do Eurostat, apenas acima do Chipre (1,7%) e longe da média europeia de 3% do PIB. Esta estatística em particular demonstra bem a capacidade de investimento público dos vários países da União Europeia: Portugal, Grécia, Espanha e Itália — países mais endividados que lutam por um maior apoio europeu — estão na cauda europeia neste indicador.

Fonte: Eurostat.

António Afonso explica que “países com maiores desequilíbrios orçamentais e maiores rácios dívida pública-PIB, na UE, têm sentido alguma limitação adicional em implementar medidas de investimento público, quer pelas restrições orçamentais, quer pelo maior custo de financiamento e obtenção de capital no mercado de capitais”. “O investimento público seguramente que é uma prioridade nacional, mas se implicar divida significativa adicional sem qualquer garantia ou apoio das instâncias Europeias (que não os mercados), não me parece que seja viável“, antecipa Pedro Brinca.

Na mesma linha, Susana Peralta avisa que “em Portugal, a aposta no investimento público é muito mais problemática [do que noutros países europeus] se levar a um aumento enorme da dívida, o que depois pode levar a cortes em gastos fundamentais e austeridade”. Ainda assim, a economista vê como positiva a “vontade política” a nível europeu de haver um fundo de recuperação de cerca de 10% do PIB, mesmo que seja em grande parte através da concessão de empréstimos. Esta componente europeia poderá dar mais margem a Portugal para investir, nomeadamente se estiver integrado no pacto verde europeu que “depende de muito investimento público” por ser uma “mudança de paradigma” que é “impulsionada pelo Estado”.

"Parece evidente que a reconstrução pós-crise terá de ser inserida nesse plano pré-crise do plano verde.”

Susana Peralta

Nova SBE

“São investimentos que dificilmente o setor privado consegue fazer”, considera, explicando que os custos iniciais são “enormes”. “Parece evidente que a reconstrução pós-crise terá de ser inserida nesse plano pré-crise do plano verde”, diz, referindo que este é o “contexto ideal para fazer a transição energética” até porque a situação atual mostra como nos temos de proteger de “riscos mais radicais”, seja os incêndios, inundações ou o risco sísmico. “Esta é uma oportunidade para o Estado avançar”, argumenta, para que mais tarde o “setor privado possa complementar de alguma forma”.

Investir sim, mas onde?

Um dos pontos que os economistas consideram ser essencial neste debate é onde será aplicado o dinheiro. E aqui também há divergências entre os países europeus no ponto de partida: por exemplo, a ferrovia está mais desenvolvida e interligada nos países que partilham fronteira (Alemanha, França, Bélgica, Itália e Espanha, por exemplo) enquanto Portugal, que apostou mais na rodovia, foi ficando à margem. Mas há áreas em que Portugal está mais à frente em comparações com outros países europeus, como é o exemplo das telecomunicações.

Na entrevista ao ECO, Álvaro Santos Pereira temia “grandes” obras públicas, mas concordava, por exemplo, com investimentos europeus, nomeadamente as ligações europeias de ferrovia. Já Nelson Souza falava de “investimento público qualificando, melhorando e disponibilizando as infraestruturas”, sem dispensar uma “análise criteriosa dos investimentos, da sua viabilidade e, do contributo que para a estratégia de retoma”.

“Portugal desde os anos 90 tem escolhido canalizar parte do investimento público (e privado) para infraestruturas rodoviárias, as quais, provavelmente, terão já alguma rentabilidade implícita negativa”, considera António Afonso, explicando que “sendo um país de pequena dimensão territorial, e com apenas uma fronteira terrestre, tal tipo de investimentos pode ser diversificado, por exemplo para áreas como a ferrovia”.

Pedro Braz Teixeira segue a mesma linha: “É preciso diferenciar as infraestruturas. Em vias rodoviárias estamos bem, em geral, mas ferroviárias não. Em transportes sim, mas em saúde não“, acrescenta, assinalando que neste momento “parece importante aumentar a capacidade do sistema de saúde, para lidar com novos picos, que são dados como prováveis”. “Nunca houve e não haverá (pelo menos num futuro próximo) tantas condições políticas para investir no sistema nacional de saúde“, acrescenta Pedro Brinca, assinalando que “existem problemas graves no SNS em termos de infraestruturas que podem e devem ser colmatadas”.

Já no reforço da autonomia produtiva da União Europeia, uma prioridade da Comissão Europeia e do Conselho Europeu, o economista prefere que o ónus esteja do lado das empresas. “É preferível que seja o setor privado a fazê-lo, porque o Estado não tem qualquer experiência na produção destes bens”, argumenta Braz Teixeira, ressalvando, no entanto, que para o investimento privado “ser interessante” é preciso ter “clareza sobre como será a procura e os preços”.

Para Susana Peralta este reforço da autonomia obrigará a União Europeia a ser menos focada na “minimização do custo” e “mais focada na minimização do risco” de depender apenas de um só país, a China, em várias cadeias de valor. “Essa industrialização a nível europeu, movendo parte da produção, até pode ser uma boa notícia para Portugal. Pode vir a ser uma oportunidade”, antecipa. Essa opinião é partilhada por Pedro Brinca que vê uma “oportunidade” para Portugal, país com custos de trabalho relativamente baixos na União Europeia, no “reshoring de muita atividade produtiva que estava deslocalizada para fora da Europa”. No entanto, “obviamente que essa não será uma ‘vantagem desejável’ no longo prazo”, considera.

E este reforço da autonomia europeia poderá levar a um aumento do protecionismo a nível mundial? Pedro Braz Teixeira admite que sim — “existe um risco protecionista” –, mas refere que em parte tem “boas razões, como sejam a segurança”. “Será como ter uma mini-PAC para os bens da saúde, mas sem perder de vista os propósitos iniciais daquela”, antecipa. “Esta crise veio acentuar algum sentimento que surge sempre nestas alturas, de mudar os perfis de consumo para apoiar as economias nacionais“, acrescenta Pedro Brinca, referindo, porém, que “como em todas as outras ocasiões, não terão grandes consequências”.

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