Em entrevista ao ECO24, o presidente executivo da Bial admite que há suborçamentação no SNS, que está a "rebentar pelas costuras", apesar de ter muita qualidade.
António Portela é presidente executivo da Bial, uma farmacêutica portuguesa que iniciou, há mais de 25 anos, complexos processos de investigação e desenvolvimento. Hoje, tem dois medicamentos no mercado e sete moléculas patenteadas, de um total de mais de 16.000 moléculas criadas. Em entrevista ao ECO, o gestor fala do setor da Saúde em Portugal, mas também da morte de um dos voluntários, na fase de teste de uma molécula da Bial, sem se perceber porquê. “Esse foi, para muitos de nós, na Bial, um dos momentos mais difíceis”, admite.
Como é que analisa o estado do SNS em Portugal?O estado do SNS precisa de alguma reflexão. Em Portugal, temos a tendência de criticar as coisas de um modo um bocadinho ligeiro. Mas nós [a Bial] temos experiência, porque estamos em muitos países onde vamos vendo os SNS: a qualidade que o nosso SNS tem é muito boa, até pelos profissionais que tem. Fomos capazes de, ao longo dos anos, formar bons profissionais e, portanto, o serviço que é prestado é muito bom. Agora, o que realmente acontece é que está a rebentar pelas costuras. Isso é visível para toda a gente, principalmente quando estamos numa trajetória de envelhecimento da população, de mais pessoas a precisarem de mais cuidados. Toda a gente fala, ao longo dos anos, que é preciso, que é preciso…
Falta dinheiro ou falta melhor gestão?Falta claramente dinheiro. Todos os anos, o orçamento não chega.
Há suborçamentação?Há suborçamentação. Isso é evidente para toda a gente. Provavelmente também faltará alguma gestão. Aquilo que, para mim, falta em termos de SNS, é planeamento. Temos de pensar o SNS a dez ou a 20 anos — o que queremos dele. Temos conseguido aumentar a esperança média de vida dos portugueses espetacularmente nos últimos anos. Isso só é possível porque o fazemos com qualidade. Agora, isso faz-nos viver mais anos e, portanto, vamos ter mais encargos.
E há uma maior pressão sobre o próprio sistema.Aquilo que para mim falta, em termos de SNS, é planeamento. Temos de pensar o SNS a dez ou a 20 anos — o que queremos dele.
Inevitavelmente. Para mim, é claro que temos tomado muitas medidas no curto prazo, paliativos, para tentar gerir o ano. Mas não pensamos no médio e longo prazo.
Portanto, o SNS é melhor do que parece, mas pior do que todos gostaríamos que fosse. Nesse contexto de planeamento, que prioridades deveria ter o SNS?A qualidade que temos é evidente, em termos comparativos com aquilo que se faz noutros países. Neste momento, uma das prioridades que se deveria ter é: somos um país geograficamente pequeno. E toda a gente gosta de ter serviços perto de casa. É necessário fazer uma reflexão séria sobre onde é que queremos ter os serviços. Porque não temos a necessidade de ter tantos serviços em tantos hospitais, por exemplo.
Melhores serviços, mas mais concentrados.Exatamente. Isso é que deveria guiar o planeamento: ter serviços prestados com muita qualidade, nas várias áreas. Mas que não tivéssemos todos um serviço de cardiologia à porta de casa, que obviamente vai fazer com que não seja tão bom. Aliás, há alguns anos, houve uma discussão à volta dos serviços de parto, onde ficou evidente que havia serviços que não prestavam o número de partos suficientes para garantir a qualidade do serviço prestado. Alguns desses estudos estão feitos. Isso é que era necessário em termos de prioridades.
Mas há uma mentalidade na saúde que é a da proximidade e que não tem em conta o facto de hoje, muito rapidamente podermos chegar a distâncias relativamente elevadas.Olhando para outros países que têm um território muitíssimo maior do que o nosso, os serviços são muito mais separados e tem de se percorrer distâncias muito maiores para se chegar a um serviço da área que precisa de ser tratada. Felizmente temos um território relativamente pequeno nesse aspeto. E temos vias de comunicação ótimas. Ou seja, se fizemos um investimento nas infraestruturas, agora deveríamos aproveitá-las.
E qual é o papel dos privados no meio disto? Falo dos privados num sentido transversal a todo o setor. São bem recebidos pelo SNS? Estão a ter o papel que poderiam ter?Sim, acho que os privados têm feito o seu papel. Há uma complementaridade muito grande entre aquilo que é o público e aquilo que é o privado e, inevitavelmente, vai ter de ser mais assim. Olho para os SNS que existem na Europa, que são muito voltados para o sistema assistencial às pessoas, onde as pessoas pagam relativamente pouco pelo serviço que têm, em comparação com os EUA, onde acontece o oposto, que para se ter um serviço de qualidade, é necessário desembolsar muito dinheiro. A Europa (não é só Portugal) vai ter de caminhar não para o que têm os EUA, mas terá de caminhar para um meio-termo, para garantir a sustentabilidade, para que possamos prestar cuidados assistenciais às pessoas.
Mas o que significa esse meio-termo? Tem de haver uma complementaridade eficaz entre o SNS e o sistema privado?Terá de haver uma comparticipação maior por parte das pessoas, nomeadamente através de seguros de saúde, que na Europa alguns países já têm mais e nós temos relativamente pouco.
Inevitavelmente terá de haver. Ou seja, terá de haver uma comparticipação maior por parte das pessoas, nomeadamente através de seguros de saúde, que na Europa alguns países já têm mais e nós temos relativamente pouco. Mas, inevitavelmente, isso vai ter de crescer para podermos sustentar a quantidade de pessoas, para serem tratadas com a qualidade que tem de ser.
Há uma desconfiança em relação ao setor privado na saúde? Percebe isso na sua interação diária, nos contactos que tem com os gestores hospitalares, com o SNS entendido de forma mais ampla?É verdade que existe algum debate sobre isso. Mas o que é certo é que as pessoas que são tratadas nos privados, que recorrem ao privado, o fazem quando são coisas não muito graves, e isso prova a qualidade do nosso SNS. Quando as coisas são graves, as pessoas recorrem ao público, porque o público está bem apetrechado, tem pessoas com qualidade. As pessoas recorrem tanto a um como a outro, obviamente conforme os meios financeiros que têm para o fazer, mas também consoante a gravidade.
Estamos a falar de privados e de serviços privados de saúde. Mas também temos a dimensão dos privados que gerem os serviços públicos de saúde. Por exemplo, as PPP, não só na construção como também na gestão. Vamos agora entrar novamente no processo de renovação de algumas PPP na gestão de hospitais públicos. O que se percebe é uma desconfiança face à gestão. É justa essa desconfiança?Não é justa porque, obviamente, a gestão hospitalar é muito complicada e vemos isso quando temos os hospitais na situação financeira em que temos a maior parte deles (e fala-se muitas vezes) em falência técnica e outro tipo de coisas. Obviamente que um grupo privado, quando toma conta de um hospital, não o pode ter em falência técnica, não o pode ter a dar prejuízos, senão não o vai gerir. E o que procura fazer é aplicar as melhores práticas de gestão na gestão do hospital. Aquilo que sei — e não sou um expert na área — é que os hospitais que estão sob gestão privada têm uma boa gestão em termos de contas. Às vezes discute-se muito isso, mas apresenta-se poucos números.
Falta avaliar os resultados.Falta avaliar os resultados e falta comparar com aquilo que faz o setor público. Há coisas que, obvia e inevitavelmente, terão de ser geridas pela parte pública. Há outras que não precisam de o ser. E essas poderão ser geridas pela parte privada.
Há uma dimensão que conhece bem, que é a política do medicamento e a relação do Estado com o medicamento. Houve um aumento muito significativo da quota de mercado dos genéricos em Portugal. Já chegámos ao ponto de equilíbrio entre o que são os genéricos e os medicamentos de marca própria? E como é que isso impacta depois na investigação e desenvolvimento de medicamentos próprios?Portugal fez um caminho muito diferente de outros países. Foi dos países que mais rapidamente teve a adoção dos genéricos. Também adotou mais tarde mas depois, quando adotou, adotou de uma forma muito rápida. Hoje, mais de 50% dos medicamentos prescritos em Portugal são genéricos. É evidente que os genéricos têm o seu espaço e ninguém contesta isso. Aquilo que tem de haver é um equilíbrio entre o que é a utilização de um medicamento que tem 30 ou 40 anos, e a necessidade de muitas vezes um paciente precisar de um medicamento com outras características, que é mais inovador.
Mais caro e mais recente.Mais caro, mas que obviamente tem outras características que os mais antigos já não têm. Por isso, em alguns casos, será possível tratar algumas patologias com os medicamentos genéricos. Noutros casos, já não será possível. Às vezes existe pressão para que se prescrevam genéricos a toda a gente…
É uma pressão excessiva?Mais de 50% dos medicamentos prescritos em Portugal são genéricos. É evidente que os genéricos têm o seu espaço e ninguém contesta isso. (…) Às vezes existe pressão para que se prescrevam genéricos a toda a gente…
Às vezes é uma pressão excessiva. Até porque os medicamentos mais antigos, mesmo os que ainda têm marca, mais antigos, já baixaram o preço para o nível dos genéricos. E, portanto, há ali uma quase paridade entre o que são os medicamentos de marca mais antigos e os medicamentos genéricos. Não há essa grande diferença.
E há diferença de qualidade?Não, em Portugal não há. Em Portugal, os medicamentos são todos avaliados pelo Infarmed e, digamos, daquilo que nós conhecemos do Infarmed, acho que isso não existe.
Dizia que há talvez uma pressão excessiva na prescrição de genéricos. Porquê? Aparentemente, não é por razão financeira, porque se está a dizer que os medicamentos de marca são mais ou menos iguais no preço, também não é uma questão de qualidade...Isto acontece em Portugal e também noutros países. A questão dos genéricos é uma bandeira na área da saúde…
... de todos os ministros e de todos os governos...Exatamente, o que acaba por penalizar a parte da inovação. E aqui, inovação não existe se não se fizer investimento. Temos de conseguir vender a inovação para podermos, depois, fazer os investimentos e podermos trazer medicamentos que sejam melhores em termos de eficácia, que tenham menos efeitos secundários, e que tratem patologias que hoje ainda não são tratadas.
Está a falar é de um estrangulamento da própria inovação e do financiamento à inovação?Tem de haver um equilíbrio entre uma coisa e outra. Se, no limite, só utilizarmos genéricos, não há incentivo nenhum a que exista inovação. Vemos isso onde a proteção da propriedade intelectual não existe ou é muito frágil: não há inovação. A China, em poucos anos, passou de não respeitar para respeitar a propriedade intelectual, porque assim conseguiram atrair milhares de milhões de dólares das grandes multinacionais para os centros de investigação que, neste momento, estão a fazer. Dantes não tinham nada disso.
Como é feito hoje o financiamento à inovação? É pelo volume de consumo dos medicamentos que vão para o mercado?O volume de negócios que temos, obviamente, serve para financiar os nossos processos de investigação e desenvolvimento. São processos complexos, de muito capital intensivo, e que demoram muitos anos até chegar ao mercado, onde a maior parte das coisas falham. Um exemplo: a Bial iniciou o processo de investigação e desenvolvimento há mais de 25 anos. Sintetizamos neste período cerca de 16.000 moléculas, temos sete patenteadas. Todas as outras que sintetizamos foram para o lixo.
E dois medicamentos no mercado.E dois no mercado. Há um período muito longo onde a maior parte das coisas não funciona. Há muito dinheiro investido para fazer isso chegar. Se durante o dia de hoje um dos nossos cientistas teve uma ideia brilhante que consiga chegar ao mercado, ela só vai chegar lá para 2030.
Tem um período de maturação de dez a 12 anos...Sim, aquilo que estamos a fazer agora vai chegar ao mercado daqui a dez ou 12 anos. Temos de ter capacidade de fazer este investimento nesta molécula, e em todas as outras que vão falhar e vão precisar de investimento, até conseguirmos chegar ao mercado.
É justo reconhecer que existe muita falsa inovação? Inovação vendida como tal para levantar fundos, para ter algum tipo de apoios públicos. Não só em Portugal mas também a nível internacional?A Bial iniciou o processo de investigação e desenvolvimento há mais de 25 anos. Sintetizamos neste período cerca de 16.000 moléculas, temos sete patenteadas. Todas as outras que sintetizamos foram para o lixo.
Essa questão surge algumas vezes em discussão pública. Haverá alguns casos, penso que serão muito poucos, onde isso acontece. Porque há pressão para desenvolver um medicamento que traga mais-valias (e hoje é preciso demonstrarmos isso do ponto de vista científico, mas também farmacoeconómico em comparação com o que existe no mercado). Isso existe muito pouco. Há dois tipos de inovação. A inovação disruptiva, que é aquela que traz benefícios brutais… Estes novos medicamentos para a Hepatite C são completamente disruptivos (passámos de conseguir tratar 45% dos doentes para tratar 95% dos doentes). Claro que isto traz um custo acrescido enorme, mas há um salto de qualidade brutal. Mas para se chegar a estas inovações disruptivas, antes, foram feitas inovações mais pequenas, incrementais. Às vezes costumo dar o exemplo do iPhone: quando olhamos para os diversos tipos de iPhones, que surgiram com os anos, as diferenças entre eles não parecem muito grandes. Mas hoje comparamos o novo iPhone com o que saiu primeiro no mercado, as diferenças são absolutamente abismais. Vão havendo inovações que vão trazendo eficácia em termos de segurança e depois, de repente, consegue-se dar um salto qualitativo maior.
Consegue perspetivar que inovação vai chegar nos próximos anos, do ponto de vista de medicamentos e com consequências diretas a nível de saúde pública?Aquilo que hoje é muito discutido, por um lado, é a inovação, os medicamentos personalizados. Até agora temos tratado muito a hipertensão, o colesterol, com um medicamento standard. E toda a gente leva pelo mesmo standard. Aquilo que a ciência está a fazer agora, e conhecendo como funcionamos, é termos medicamentos que se adaptam mais a A, a B… Não personalizados à pessoa, mas a grupos de pessoas que têm determinadas características. Isso vai-nos permitir tratar melhor algumas patologias, porque será mais adaptado. Agora, vão continuar a haver inovações. Na área da oncologia, vários dos especialistas dizem que, em cinco ou dez anos, a oncologia se tornará, tal como a Sida se tornou, numa doença crónica. Provavelmente não haverá cura, mas que se tornará numa doença crónica. Vemos isso hoje, em vários tipos de cancros, detetando cedo, as pessoas já conseguem tratá-los.
A Bial viveu um momento difícil em França, com a morte de um paciente alvo de testes. Do ponto de vista de gestão e de aprendizagem, o que é que a Bial retirou dessa experiência?Esse foi, para muitos de nós, na Bial, um dos momentos mais difíceis em termos de gestão. Não era um paciente, era um voluntário saudável que estava num ensaio de Fase 1 com uma molécula nossa. Fizemos mais uma série de estudos complementares até agora, que já temos apresentado e onde basicamente não conseguimos perceber porque é que se desencadeou aquela reação naquele voluntário. Houve também já vários comités independentes das autoridades francesas e das autoridades internacionais que analisaram toda a documentação daquilo que fizemos e aquilo que concluíram foi que cumprimos as regras todas, não havia sinal nenhum que pudesse antever aquilo. Nem se consegue explicar porque é que naquele voluntário, aquilo aconteceu. Todos os relatórios são unânimes em concluir isso. Claro que é lamentável que tenha acontecido o que aconteceu.
Mudou alguma coisa na gestão da Bial? Mudaram processos?Inevitavelmente. Tivemos de mudar algumas coisas, apesar de, e isso é uma das maiores frustrações da nossa equipa, é não ter encontrado a causa. Porque, sem conhecer a causa, é difícil perceber o que é que poderíamos ter feito diferente. Claro que vamos fazendo testes, primeiro em laboratório, depois em animais e só depois é que se passa para humanos. Este foi o primeiro ensaio que fizemos num humano. Havia oito anos de investigação anterior e toda ela mostrava que não havia problema nenhum de segurança. Aliás, em animais, demos doses 600 vezes maiores do que aquilo que demos num humano.
Essa investigação, neste caso, está condenada?Está condenada. Absolutamente condenada. Oito anos de investigação, 12 milhões de euros, borda fora. Apesar de acharmos que a molécula tem características muito interessantes, sem saber o que aconteceu, não podemos continuar.
Consegue identificar uma coisa que tenha verdadeiramente mudado em termos de gestão?Em termos dos nossos processos, alterámos alguns dos passos no processo de investigação de moléculas para incluir alguns ensaios que não incluíamos antes. E que não são pedidos pelas autoridades, mas passámos a incluir nos nossos processos.
A ideia do Infarmed no Porto é uma ideia que já passou de moda?É uma decisão política do Governo.
Mas para si faz sentido?Para mim, o que faz sentido é que o Infarmed se mantenha com a qualidade que tem hoje. A maioria das pessoas não tem a noção disso, mas o Infarmed tem, nos últimos anos, sido avaliado como uma das três, quatro melhores agências de medicamento na Europa. E portanto, para mim, aquilo que é importante é que isso se mantenha. Dá-nos credibilidade enquanto país e mesmo a nós como empresa, no nosso processo de internacionalização, também nos dá credibilidade. Se está em Lisboa ou no Porto… Trabalhamos com o Infarmed como trabalhamos com a AEM, como a espanhola, a alemã, a inglesa, independentemente de onde elas estiverem.
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António Portela: “O Serviço Nacional de Saúde está a rebentar pelas costuras”
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