Catarina Belim é a advogada do mês da edição de março da Advocatus. A sócia fundadora do escritório Belim considera que o combate à pandemia representa um enorme golpe nas finanças públicas.
Catarina Belim, sócia fundadora do escritório Belim, esteve à conversa com a Advocatus e fez um balanço sobre os primeiros quatro anos do seu projeto e dos riscos que assumiu. Segundo a advogada, o escritório conta com advogados que não se acomodam a frases como “mas sempre foi assim”. Sobre o combate à pandemia assegura que este representa um enorme golpe nas finanças públicas.
Aos 35 anos fundou o seu próprio escritório, o Belim. Sempre teve o objetivo de fundar algo seu ou surgiu naturalmente?
Surgiu naturalmente, de forma orgânica, fruto de fatores pessoais e profissionais. A nível pessoal, aos 32 anos estive internada nos cuidados intensivos. O internamento durou uma semana mas foi o suficiente para passar a relativizar o valor da carreira tradicional e dar muito mais valor a fazer do meu tempo o melhor que podia extrair dele, incluindo ter a minha própria prática com toda a autonomia e responsabilidade que daí vem. A nível profissional, e talvez fruto do meu ponto de viragem a nível pessoal, acusei o cansaço de estar numa grande estrutura. A Deloitte e VdA em que trabalhei foram grandes escolas, por quem tenho o maior respeito, amizade e bons amigos mas, naquele momento, o modelo tradicional de hierarquia, carreira corporativa, objetivos de horas faturáveis que ditam a ausência de jantares de família, deixou de fazer sentido para mim. Hoje tenho ainda maior respeito por aqueles grandes escritórios porque sei na primeira pessoa o empenho e a “cola” em termos humanos e profissionais que é necessário para funcionarem. Mas sou de momento mais feliz na minha prática e no meu desafio de prestar serviços profissionais na área da fiscalidade através de uma estrutura que construo todos os dias.
Teve medo do risco que tomou na altura?
Sim. Achei que não ia ter clientes nem trabalho e que ia conseguir fazer todos os álbuns de fotografia que tinha guardado para a reforma. Na verdade, desde o 1º dia não parei. Existe todo um mundo para além das paredes dos grandes escritórios: o mundo das associações profissionais que incentivam as novas práticas e o networking, o mundo dos outros “jovens” advogados e consultores que estão a criar as suas práticas e partilham conhecimentos, softwares, dicas, contactos e clientes, o mundo dos clientes que procuram conhecimento especializado, uma alternativa aos grandes escritórios ou simplesmente um advogado que lhes responde, de forma direta, a tempo e horas sem uma grande estrutura pelo meio.
Existe ainda todo um mundo de problemas administrativos e operacionais que uma grande estrutura nos poupa mas que com o tempo aprendemos a gerir: licenças de software, licenças de bases de dados, administração de sites, como fazer posts profissionais no LinkedIn, fontes de informação atualizada, renting de impressoras, seguros de responsabilidade profissional, redes de comunicações, economato e até cápsulas de café que, por incrível que pareça, acabam se não as tivermos em stock.
Qual foi o melhor conselho que lhe deram quando decidiu avançar com o Belim?
Se eu tiver que salientar três conselhos que me deram e se estendem a todas as práticas de serviços profissionais são: 1) um conselho básico mas que é essencial para qualquer atividade de serviços e que por vezes os mais jovens não percebem de imediato – ler o jornal todos os dias – é a cultura geral que nos vai permitir manter uma conversa, defender um ponto de vista, formar uma convicção ou simplesmente ler as tendências do futuro; não é por acaso que muitos dos sócios das mais reputadas sociedades de advogados em Portugal a 1ª coisa que fazem pela manhã é ler os jornais de referência; 2) participem em conferências, seminários, congressos, associações, formações, lançamentos de livros ou eventos de empresa. Hoje em dia sei que essa tarefa está mais dificultada pelo contexto atual da pandemia mas porventura 80% dos meus clientes são referências de contactos que fiz em eventos profissionais. A pandemia tornou ainda mais evidente que somos seres sociais e o mesmo é verdade nos serviços profissionais: quando chega a hora de atribuir um trabalho a alguém, quem nos vem à memória é o colega que estava ao nosso lado no coffee break, jantar ou almoço da conferência; 3) mais vale responder a dizer que não vamos conseguir responder do que não responder de todo.
Em termos de valores que seguimos, o escritório conta com advogados que não se acomodam a frases como “mas sempre foi assim” ou “a culpa é do sistema informático”.
Iniciaram atividade em 2016. Que balanço faz destes primeiros quatro anos de atividade?
Os primeiros dois anos foram de afinação e afirmação do tipo de serviços prestados. Numa fase muito inicial em que estávamos a construir uma base de clientes, cobrimos diversas áreas do direito, com pedidos recebidos de contactos próximos (amigos, familiares, antigos colegas e antigos clientes). Creio que será assim com qualquer escritório que começa do zero. Gradualmente, no final do 1º ano de atividade, como havia trabalhado durante mais de 12 anos na área da tributação indireta, os contactos e as referências começaram a ser cada vez mais institucionais e empresariais, com pedidos recebidos para apoiar muitas empresas multinacionais que, devido às suas operações com conexão em Portugal, têm obrigações relativas a IVA no nosso país.
Os últimos dois anos são de completa afirmação, sem complexos, de que o escritório é especializado em Direito Fiscal com um enfoque nos impostos indiretos, em particular IVA e questões aduaneiras associadas. Os pedidos que chegam são cada vez mais especializados, mais sofisticados e de maior valor acrescentado e o escritório tem vindo a assumir um papel cada vez maior na assistência de empresas que operam no comércio internacional, quer seja nas vendas intracomunitárias de bens, operações de importação e exportação ou realização de eventos com público internacional em Portugal. Nesta área, a noção que temos é a de que existe um mundo de indústria e serviços nacionais a ter em conta e temos vontade e orgulho de poder ajudar, dentro da nossa área de especialidade, as empresas nacionais a se internacionalizarem ou as empresas internacionais a usarem Portugal como plataforma das suas operações.
Achei que não ia ter clientes nem trabalho e que ia conseguir fazer todos os álbuns de fotografia que tinha guardado para a reforma.
“Quem trabalha connosco sabe que somos advogados pouco “acomodados” aos dogmas instituídos”. Dizem esta frase no vosso site. O que querem dizer com ela, mais concretamente com os dogmas instituídos?
Em termos de valores que seguimos, o escritório conta com advogados que não se acomodam a frases como “mas sempre foi assim” ou “a culpa é do sistema informático”. Aqui questiona-se o porquê e as lacunas da lei perante clientes, inspetores, técnicos e juízes, procurando expor às autoridades competentes os problemas e questões que identificamos, em benefício de todos e do próprio sistema fiscal. Neste contexto, o escritório não tem tido medo de apresentar exposições à administração fiscal sobre questões que provocam problemas no dia-a-dia das empresas e que não são respondidas pela lei ou que necessitam de clarificação para gerar maior competitividade ou equidade em quem opera no mercado nacional. E a experiência mostra que quando fundamentamos devidamente as nossas razões, a administração e autoridade fiscal e aduaneira são sensíveis às questões expostas e procuram cooperar e introduzir melhorias, quer a nível legislativo, quer em programas informáticos, quer na simplificação de procedimentos. Naturalmente, existem situações em que a opção pela alteração de uma lei ou clarificação de lacunas legais é mais política do que jurídica mas enquanto advogados inquietos que não se acomodam aos “dogmas instituídos” o nosso espírito é o de procurar evidenciar as questões e lacunas da lei com impacto prático no dia-a-dia e economia das empresas que operam no mercado nacional.
Noutra vertente, um dos grandes “dogmas” instituídos na advocacia em Portugal, pelo menos no segmento da consultoria a empresas, é o de que um escritório de advogados precisa de uma grande estrutura para prestar um bom serviço ao cliente. A realidade, porém, é bem diferente. Mesmo em escritórios de grande dimensão, a generalidade dos trabalhos especializados como aqueles em que foca o nosso escritório são feitos por um ou dois advogados. No nosso escritório tomámos a opção consciente de, nesta fase, apostar num núcleo essencial de advogados especializados que trabalham diretamente para e com o cliente. Temos consciência de que esta estrutura minimalista limita o número de trabalhos que conseguimos fazer a cada momento, mas acreditamos que, em compensação, esta estrutura “Small is Beautiful” permite-nos produzir, em menos tempo, um trabalho perfeitamente alinhado com as necessidades do cliente, já que o ponto de contacto do cliente é o advogado que irá realizar o trabalho.
Associado ao tema da estrutura estão depois todos os outros “dogmas” relativos à necessidade de um escritório físico permanentemente aberto, de uma equipa de paralegals, pareceres longos e formato tradicional, entre outros. Acreditamos que todos esses “dogmas” estão associados a uma forma de advocacia que insiste em não acompanhar a evolução tecnológica verificada nos últimos anos na prestação de serviços por meios telemáticos. A verdade é que, sem prejuízo da necessidade de uma morada onde se possa receber o cliente presencialmente se aquele assim o desejar, hoje em dia um escritório de advogados não precisa de um escritório físico permanente aberto, precisa sim de estar em contacto permanente com o cliente, onde quer que ambos estejam, através do meio telemático pelo qual o cliente tenha preferência. Acresce que certamente nem todos os clientes pretendem um parecer longo em formato tradicional, preferindo antes um documento mais simples e apelativo que possam usar para apresentar ao conselho de administração, por exemplo. Acreditamos que este modelo de trabalho é o futuro, permitindo a um escritório de advogados de Lisboa poder estar a atuar noutras zonas geográficas do País sem ter lá necessariamente uma presença física e vamos trabalhar neste sentido. Este modelo de trabalho já é adaptado pelas consultoras Big4 há muitos anos, pelo que os clientes não estranham.
A vossa equipa é composta por apenas duas advogadas. Pretendem expandir a equipa em 2021?
A equipa core é pequena mas conta diariamente com outros advogados, outros escritórios nacionais e internacionais, consultores, comunicação e imagem, informáticos, web designers, secretariado e back office, com os quais trabalhamos em modelos flexíveis e menos tradicionais, à medida das necessidades dos clientes e dos projetos. Em termos de áreas de apoio, estamos neste momento a ponderar expandir a capacidade de resposta em matéria de IVA, atendendo à procura elevada que registámos nesta área.
Em termos de equipa core, numa estrutura que se pretende ser pequena mas autossuficiente é especialmente importante existir uma perfeita simbiose entre os advogados que fazem parte da equipa. Por essa razão, o salto para a próxima grande etapa do crescimento do escritório, com a entrada de um novo sócio, foi sendo sucessivamente adiado. Felizmente, contamos que esse processo esteja concluído este verão, altura em que estaremos em condições de anunciar uma reestruturação e rebranding do escritório. Estamos muito entusiasmados com o futuro do escritório.
Relativamente às áreas de prática, configuram-se como especializados em direito fiscal e aduaneiro. Esta especialização é para continuar ou pretendem apostar em novas áreas? Se sim, quais?
Sim, a aposta do escritório é na especialização em direito fiscal e aduaneiro. Este é o fator diferenciador do nosso escritório dos demais existentes no mercado e aquele que faz valorar os nossos serviços pelos clientes nacionais e internacionais. Porém, sabemos que o direito fiscal tem interseção direta ou indireta com quase todas as áreas de prática, pelo que o apoio prestado pelo escritório muitas vezes extravasa a fiscalidade pura. Assim, o escritório está preparado com uma rede de advogados e parceiros de referência que poderão prestar ao cliente, com a qualidade que pretendemos, os serviços jurídicos de que o cliente necessita.
A verdade é que não podemos ignorar que o combate a esta pandemia representa um enorme golpe nas finanças públicas e que as mesmas precisam de ser financiadas também a partir da receita dos impostos.
Como caracteriza o atual contexto fiscal português?
Não obstante os reconhecidos esforços dos últimos governos para introduzir importantes medidas de simplificação, o sistema fiscal nacional continua a ser excessivamente complexo e estratificado, como que assente numa manta de retalhos, o que traz enormes custos de contexto para os contribuintes. Isto resulta do choque entre a herança do passado (onde ainda perduram, por razões sobretudo orçamentais, versões pouco modernizadas dos impostos mais antigos do nosso sistema fiscal, como o imposto do selo, os impostos especiais sobre o consumo e os impostos municipais sobre a propriedade imobiliária e automóvel) e a necessidade (ou mesmo obrigatoriedade) de nos adaptarmos às melhores práticas ao nível da UE ou da OCDE. A situação é agravada pela necessidade da generalidade das alterações à legislação fiscal necessitarem de ser aprovadas pela Assembleia da República, o que implica uma maioria parlamentar que nem sempre é fácil de reunir neste tipo de matérias (infelizmente) demasiado politizadas. O resultado é que qualquer operação económica, por mais simples que seja, tem, por regra, implicações em mais do que um imposto, obrigando ao cumprimento de uma multiplicidade de obrigações declarativas. Se a isto aliarmos os mais de 500 benefícios fiscais existentes no nosso sistema fiscal, com diferentes regras de reconhecimento, reporte e controlo, temos a combinação perfeita para uma enorme variabilidade ao nível do imposto final devido, o que levanta não só preocupações de equidade fiscal como gera uma maior necessidade de consultoria fiscal. No nosso escritório procuramos suprir a falta de simplicidade do sistema fiscal nacional com um aconselhamento descomplicado e orientado para o resultado prático para o contribuinte.
Em termos fiscais, o Governo poderia apoiar mais as empresas em plena pandemia ou considera que é o apoio possível?
Antes de mais é preciso reconhecer que o desafio que foi colocado a este Governo não tem qualquer paralelo na história recente do nosso país. É compreensível que para as empresas que estão em dificuldades profundas, as medidas adotadas pelo Governo (sobretudo centradas em planos de pagamentos e flexibilização de prazos de reporte de prejuízos), não parecem ser suficientes, razão pela qual apelam à necessidade de adoção de medidas mais extremas de alívio fiscal (como reduções ou isenções temporárias de imposto).
Numa perspetiva de direito comparado europeia, olhando para as medidas fiscais de forma isolada (e descontando as contribuições da segurança social), a maioria dos Estados-membros adotou medidas semelhantes de planos de pagamento, dispensa de pagamentos por conta, flexibilização do reporte de prejuízos e suspensão de execuções fiscais como medidas para conferir liquidez aos operadores económicos. Em termos de IVA, a medida com maior impacto, uniformizada a nível de resposta da União Europeia, foi a atribuição de isenções de equipamentos de proteção individual e a aplicação da taxa reduzida a máscaras de proteção respiratória e gel desinfetante, colocando-se aqui o benefício fiscal nos instrumentos diretos de combate à pandemia mas ao mesmo tempo poupando-se o Estado do desembolso do IVA aquando da compra destes equipamentos (o que, de forma indireta, poupa as finanças dos contribuintes). A verdade é que não podemos ignorar que o combate a esta pandemia representa um enorme golpe nas finanças públicas e que as mesmas precisam de ser financiadas também a partir da receita dos impostos. A chave aqui é naturalmente ir buscar receita apenas onde ela efetivamente existe, o que é um equilíbrio muito difícil e que infelizmente tende a cair numa ratoeira ideológica.
Os primeiros dois anos foram de afinação e afirmação do tipo de serviços prestados.
Como perspetivam os próximos anos para o Belim?
Um escritório que vai continuar a apostar na especialização em direito fiscal e aduaneiro. Um escritório que vai ajudar as empresas que pretendam operar no mercado nacional. Um escritório que quer contribuir para a melhoria e justiça do sistema fiscal. Um escritório que quer ser moderno a comunicar. Um escritório que partilha know-how. Um escritório que se vai manter independente, nacional e fiel a si mesmo.
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“O desafio que foi colocado ao Governo não tem paralelo na história recente do nosso país”, diz Catarina Belim
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