Numa altura em que o fracasso do arranque da campanha de vacinação na UE é mais do que evidente, porque razão a UE insiste em olhar apenas para as vacinas ocidentais. Leia o Novo Normal desta semana.
Já há dez vacinas contra a covid-19 em uso ou prontas a ser usadas, das quais oito estão autorizadas e a ser administradas em pelo menos um país do mundo. Mas na União Europeia, apenas três receberam luz verde das autoridades do medicamento – a da Pfizer, a da Moderna e a da AstraZeneca. São todas de origem europeia e/ou americana, e o padrão deverá manter-se em relação às próximas vacinas a ser aprovadas pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) – as da Johnson&Johnson e da Novavax, ambas made in USA, ambas na fase final de ensaios clínicos (fase 3), provavelmente terão luz verde das autoridades da UE antes da Sputnik V, a vacina russa que já está a ser administrada em 23 países ou territórios.
Numa altura em que o fracasso do arranque da campanha de vacinação na UE é mais do que evidente, tendo mesmo levado a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, a um inédito mea culpa, porque razão a UE insiste em olhar apenas para as vacinas ocidentais, apesar das dificuldades de produção desses fornecedores?
A decisão europeia de concentrar nas mãos da Comissão a negociação e compra conjunta das vacinas contra a covid significa que os Estados são desaconselhados de fazer negociações autónomas (mas não estão proibidos – e há quem o esteja a fazer), limitando o portfolio de vacinas na UE a, no máximo, oito fornecedores.
Três já têm luz verde:
- Pfizer (600 milhões de doses)
- AstraZeneca (400 milhões)
- Moderna (160 milhões)
Três estão na fase final dos ensaios clínicos:
- CureVac (405 milhões)
- Johnson&Johnson (400 milhões)
- Sanofi-GSK (300 milhões)
E outras duas, também ainda em testes, tiveram acordos preliminares de compra negociados recentemente pela UE:
- Novavax (200 milhões)
- Valneva (60 milhões)
Tudo de origem europeia ou norte-americana. Nem sinal das quatro vacinas chinesas ou das duas russas.
No total, segundo a Comissão Europeia, os 27 terão acesso a 2,3 mil milhões de doses de vacinas, para uma população de 450 milhões de pessoas. Na maioria dos casos, cada vacina implica duas doses, o que significa que as compras já negociadas chegam para vacinar 2,5 vezes toda a população da União. A questão não é se a quantidade de vacinas já contratadas chega – a questão é quando chegam.
A decisão de negociar e comprar conjuntamente as vacinas visa evitar que os países da União entrem em competição, o que privilegiaria países ricos como a Alemanha e relegaria para o fim da fila estados-membros mais pobres, como Portugal. Assim, todos vão recebendo à medida dos fornecimentos, e de acordo com a dimensão da população.
Apesar disso, Portugal, que nas primeiras semanas de vacinação comparava bem com os restantes estados-membros, e estava a vacinar mais do que a média da UE, está a deslizar nos rankings. É o quarto pior país da UE no número de vacinas administradas diariamente por cada cem habitantes (primeiro quadro em baixo), e também está atrás da média comunitária no total do número de vacinas por cem habitantes (segundo quadro em baixo).
No Expresso da Meia Noite, na SIC Notícias, o secretário de Estado da Saúde, Diogo Serras Lopes, revelou os últimos números, mais atualizados do que esta informação reportada no site Our World in Data: 500 mil doses já foram administradas em Portugal, o correspondente a 5% da população (a correlação não é direta, porque cerca de 170 mil foram segundas doses – é mais correto dizer que foram administradas 5 vacinas por cada cem habitantes). Das 694 mil vacinas que Portugal recebeu, cerca de 120 mil estão em stock para a segunda dose e cerca de 70 mil foram para as regiões autónomas e são contabilizadas à parte.
A lentidão no fornecimento de doses à UE fez com que o ritmo da vacinação nos 27 esteja bastante atrás dos EUA, mas também do Reino Unido, que ainda agora deixou o espaço comum, e até de um pequeno país como Israel. No caso de Portugal, o incumprimento dos calendários de fornecimento por parte dos laboratórios já empurrou o final da primeira fase de vacinação para abril. Mais de um milhão de portugueses não será vacinado até ao fim de março, ao contrário do que estava planeado.
Perante a pressão das populações e a ineficiência de Bruxelas, há quem tenha perdido a paciência. A Hungria foi o primeiro país a furar o acordo de negociação e compra conjunta, virando-se para a Rússia. Podia ser só mais um número do bad boy Viktor Orbán. Mas também a Alemanha – cuja chanceler tudo tem feito para segurar a abordagem comunitária – anda a namorar a ideia de comprar vacinas russas, e até a possibilidade de comprar à China, outro fornecedor proscrito por Bruxelas.
O passo não foi dado, e o ministro da Saúde alemão fez questão de frisar que tal nunca seria feito de forma unilateral – apenas se, e quando, a EMA validar as vacinas russas e chinesas. Mas Jens Spahn acrescentou que a resposta à escassez pode ser a diversificação de fornecedores. “Não importa o país onde a vacina foi desenvolvida se ela é segura e eficaz”, disse Spahn.
Esta sexta-feira, Von der Leyen admitiu que poderá acelerar a introdução de novas vacinas na UE. Mas não disse quais… Ora, a questão é mesmo essa: há razões para que as vacinas produzidas na Rússia e na China estejam fora do radar de Bruxelas? Não dão garantias de eficácia e segurança? Ou será, mais do que uma questão científica, um problema político?
O Sputnik disparado por Putin
Na melhor tradição da competição Leste/Oeste do século XX, a Rússia foi o primeiro país a anunciar uma vacina contra a covid – e chamou-lhe Sputnik V, invocando os gloriosos tempos em que o Kremlin marcava pontos na corrida ao espaço (o V é abreviatura de vacina). Em agosto, quando Vladimir Putin declarou ao mundo que a primeira vacina contra a covid era russa, Kirill Dmitriev, diretor do fundo soberano que financiou a investigação, não hesitou em fazer a comparação com os tempos da Guerra Fria. Tal como em 1957, quando a URSS lançou o primeiro satélite artificial, “os americanos ficaram surpreendidos ao ouvirem o bip do Sputnik – é a mesma coisa com a vacina: a Rússia vai chegar lá primeiro”, garantiu o homem que batizou o medicamento.
A proclamação de Putin chegou com muita fanfarrice e pouca informação científica – e isso terá ditado a enorme desconfiança com que a UE, os EUA e outros países “ocidentais” passaram a olhar a Sputnik V. Ainda nada se sabia sobre os resultados das fases 1 e 2 dos testes científicos, e ainda nem tinha arrancado a fase 3, com testagem em larga escala em milhares de cobaias humanas (supostamente voluntários) – mas, mesmo assim, o czar de Moscovo anunciou que uma das suas filhas já tinha sido vacinada. Apesar de umas dores de cabeça, “ela sente-se bem”.
Nessa altura, as razões para desconfiar da proeza russa eram muitas. Tudo tinha acontecido demasiado depressa, com demasiada opacidade, e nem o currículo do laboratório onde a vacina fora desenvolvida inspirava confiança. O Instituto Gamaleya é uma relíquia da União Soviética, e tinha como estrelas do seu portfolio duas vacinas que nunca receberam autorização para uso fora da Rússia, nem foram validadas por qualquer organismo regulatório internacional – uma contra o ébola e outra contra o MERS (síndrome respiratória do Médio Oriente, um coronavírus que surgiu na Arábia Saudita em 2012).
A descrença face à façanha russa foi verbalizada, à época, por Anthony Fauci, o epidemiologista norte-americano: “Espero que os russos tenham provado mesmo que a vacina é segura e eficaz. Mas duvido seriamente.” Por essa altura, Fauci já tinha de conter a bazófia e precipitação de Donald Trump, e dispensava bem a pressão que vinha de Moscovo.
A Sputnik V utiliza a tecnologia de vetor viral – não é tão vanguardista como a tecnologia de RNA mensageiro, mas também é uma técnica relativamente recente (começou a ser explorada nos anos 90 do século passado), e bastante menos comum do que os métodos clássicos de inoculação com versões inativadas ou atenuadas do vírus que se quer combater. As vacinas de vetor viral funcionam como um Cavalo de Troia: usam um vírus inofensivo (normalmente um adenovírus) como portador, para introduzir nas células humanas material genético do vírus que pretende combater – com isso simulando uma infeção. Assim, o sistema imunológico passa a conhecer aquela ameça, tornando-se capaz de produzir defesas se o vírus atacar. No caso, o organismo aprende a identificar a proteína espícula (spike), que permite ao vírus agarrar-se ao recetor humano. É a mesma tecnologia das vacinas contra a covid desenvolvidas pela AstraZeneca e pela Johnson&Jonhson.
Há duas semanas a revista New Yorker publicou uma reportagem sobre como os russos geriram esta corrida, não com um plano de cinco anos, mas em cinco meses. O autor conta como, ao visitar a sede do Instituto Gamaleya, em dezembro, encontrou “um mundo que eu quase já não era capaz de imaginar. As pessoas iam de um gabinete para outro, paravam para conversar, e quase ninguém usava máscara.” A explicação: “Na primavera, quando a pandemia estava a atingir a Rússia, os investigadores tinham chegado ao protótipo da sua vacina e começaram a vacinar-se a si próprios; quando eu visitei o instituto, a maioria dos seus 1200 funcionários já tinha sido vacinada.”
O facto de a China ter divulgado bastante cedo a sequenciação do genoma do SARS-CoV2 facilitou o trabalho; e a experiência prévia do laboratório russo com duas vacinas de vetor viral revelou-se decisiva. Nunca salvaram ninguém em surtos de ébola ou de MERS, mas deram o conhecimento que lhes permitiu adaptar rapidamente a mesma tecnologia contra o vírus responsável pela covid. O vetor viral “é como um foguetão”, pode “transportar qualquer carga que seja preciso entregar”, explicou o líder da equipa que desenvolveu a vacina-com-nome-de-foguetão.
Em março, os cientistas russos estavam a cultivar o SARS-CoV2 a partir de material recolhido de um cidadão russo que chegou doente a Moscovo, oriundo de Roma. Para evitar que o organismo reconheça o adenovírus usado como vetor (e o identifique como uma ameaça, e o combata – rejeitando também a informação que o vetor transporta), optaram por usar adenovírus diferentes para a primeira toma e para a segunda. Tal como já haviam feito nas vacinas contra o ébola e o MERS.
O trabalho foi tão rápido que logo em março estavam a ser feitas experiências em animais – os níveis de anticorpos gerados pareciam mais do que suficientes para prevenir doença provocada pelo novo coronavírus. O protótipo ficou pronto antes sequer do primeiro confinamento ser decretado em Moscovo. Em abril, a confiança da equipa de investigadores era tal que decidiram inocular-se. O diretor do instituto, Alexander Gintsburg, revelou à New Yorker que não só administrou o protótipo a si próprio e à sua equipa, mas também à mulher, à filha e à neta. Em abril.
Mas o Instituto Gamaleya não foi o único laboratório russo a lançar-se na corrida à vacina. Várias instituições diferentes foram mobilizadas, e numa certa altura estavam em análise vinte potenciais vacinas de produção russa, envolvendo alguns dos laboratórios estatais mais reputados. O segundo a cortar a meta deverá ser o Instituto Vector, localizado na Sibéria (não seria uma verdadeira história de Guerra Fria se não houvesse cenas na Sibéria…).
De acordo com uma notícia de janeiro da TASS, a agência de notícias estatal russa, os testes laboratoriais da EpiVacCorona começaram em novembro e os resultados são para lá de animadores: “100% de eficácia” a prevenir doença, segundo os dados preliminares. Mas esta é informação com base em dados que não foram partilhados com a comunidade científica nem validados por investigadores independentes.
A primeira informação oficial sobre a Sputnik V dava conta de uma eficácia mais “modesta”, de 92%. Esse valor foi olhado de lado, porque não estava validado pelos pares. E, de facto, até janeiro a informação sobre a primeira vacina russa era muito pouca, e pouco fiável. Mas desde o início de fevereiro que já não é assim.
Um artigo publicado este mês na prestigiada revista científica Lancet veio confirmar os bons indicadores das análises preliminares que eram propagandeados pelas autoridades russas. A revisão por pares confirmou uma eficácia de 91,6% da Sputnik V, com bons padrões de segurança e resposta imunitária muito robusta por parte dos vacinados.
Mais: a análise em relação aos maiores de 65 anos sugere os mesmos níveis de eficácia que para as outras faixas etárias (só ainda não foi estudada a eficácia em relação às novas variantes do Reino Unido, África do Sul e Brasil). Ou seja, sendo uma vacina de vetor viral, como a da AstraZeneca, parece ter melhor desempenho do que a vacina anglo-sueca, nomeadamente em relação aos mais idosos.
Na verdade, ainda não houve qualquer pedido oficial para aprovação da Sputnik V pela EMA. E Bruxelas também não parece ter pressa, depois do arranque atribulado do processo russo. “A Rússia é que prejudicou a sua vacina pela forma apressada e politizada como a lançou”, e “houve ricochete”, dizia há dias uma especialista europeia citada pelo Público.
Por ironia, a AstraZeneca parece não partilhar do ceticismo de Bruxelas em relação à Sputnik V. Em dezembro, a farmacêutica anglo-sueca e o laboratório estatal russo decidiram unir esforços e testar um mix das duas vacinas, para averiguar se o efeito combinado poderá ser mais eficaz. Os ensaios começaram este mês, e ainda não há fumo branco. Outra ironia: quando, no verão, Moscovo anunciou o sucesso da sua vacina, o dirigente do fundo soberano russo que financiou a operação referiu-se à vacina da AstraZeneca como a “vacina de macacos”, por utilizar como vetor um adenovirus de chimpazé geneticamente manipulado. Alguns media russos chegaram a passar a ideia de que essa vacina poderia dar caraterísticas simiescas a quem a tomasse…
Esta semana, a EMA vincou as distâncias em relação à Sputnik V, confirmando que deu “aconselhamento científico” ao laboratório de Moscovo, mas desmentindo rumores (supostamente lançados pelo Kremlin) de que estaria em curso a aprovação do medicamento russo. Num momento em que é cada vez maior a pressão de várias capitais europeias para que a EMA valide mais vacinas, aquele organismo jura estar “empenhado em aplicar a mesma abordagem regulamentar e rigor científico a todas as candidaturas de vacinas que satisfaçam os requisitos europeus de segurança, eficácia e qualidade”.
O tom seco da EMA não é só a resposta às fake news e à impaciência de alguns Estados, mas também à pressão de membros da Comissão Europeia. É o caso do Alto Representante da UE para a política externa, Josep Borrell, que esteve na semana passada em Moscovo, numa visita que se saldou num desastre diplomático (sobre isso, leia isto) e incluiu um rasgado elogio à Rússia pelo sucesso da Sputnik V. “Agora espero que a Agência Europeia do Medicamento possa certificar a eficiência da vacina, de modo a que esta também possa ser usada na UE. Será uma boa notícia, pois, como sabem, estamos confrontados com uma escassez de vacinas e problemas de fornecimento“, declarou o Alto Representante da UE.
O exemplo sérvio: pragmatismo e multilateralismo
No outono de 2020, quando o governo de Budapeste anunciou que estava a pensar ir às compras a Moscovo, a Comissão Europeia tentou travar esse movimento. Os argumentos utilizados tinham a ver com os efeitos da decisão húngara sobre a confiança dos europeus no processo de vacinação. “Se os nossos cidadãos começarem a questionar a segurança de uma vacina, caso não tenha passado por rigorosa análise científica que prove a sua segurança e eficácia, será muito mais difícil vacinar uma proporção suficiente da população”, avisou a CE.
Apesar das advertências da Comissão, qualquer Estado-membro tem autonomia para tomar decisões na área da saúde, em que a UE não tem competências próprias. Mesmo em relação a medicamentos, qualquer um dos 27 pode “autorizar temporariamente a distribuição de produtos médicos não autorizados em resposta a surtos” como a atual pandemia. E a Hungria avançou mesmo com a compra de vacinas russas, e este sábado começou a administrá-las. Também a República Checa está a pensar fazer o mesmo.
Húngaros e checos têm por perto uma excelente motivação para o fazerem. A Sérvia, que não integra a UE e tem negociado bilateralmente a compra de vacinas a vários fornecedores, já administrou a primeira dose a mais de 8% da população, o triplo dos húngaros e da média europeia (é eloquente a comparação abaixo, entre Sérvia, Hungria, República Checa, Portugal e UE).
Apesar de serem um pequeno país, os sérvios não estão condicionados por negociações de blocos e não foram esquisitos. “Para nós, a vacinação não é uma questão de geopolítica. É uma questão de saúde”, disse a primeira-ministra Ana Brnabic à BBC. “Não nos importa que [as vacinas] venham da China, dos Estados Unidos ou da UE, desde que sejam seguras e as recebamos o mais depressa possível”.
Foi um trabalho de equipa em várias frentes. A primeira-ministra, que estudou nos Estados Unidos, antecipou-se nas negociações com os EUA; o ministro dos Assuntos Internos, que é russófilo, acelerou o acordo com Moscovo; e o ministro da saúde posou para a foto a levar a vacina da Sinopharm. O objetivo de vacinar 10% da população em meados de fevereiro está ao alcance.
Apesar do interesse crescente pela Sputnik V em várias partes do mundo – sobretudo desde a publicação dos resultados na Lancet -, na Rússia há muitos que olham de lado para a prata da casa. O executivo russo lançou em novembro uma campanha massiva de vacinação interna, mas tem sido difícil superar o ceticismo dos seus cidadãos… Em dezembro, 59% diziam que não queriam receber a vacina russa. Os últimos dados relativos à Rússia no contador da Bloomberg que acompanha a evolução da vacinação a nível global indicam que apenas 1,5% da população recebeu pelo menos uma dose.
Diplomacia das vacinas
Agora que até a Alemanha está de olho nas façanhas farmacêuticas de Moscovo, Viktor Orbán já não é olhado como um fura-filas. A Rússia garante que tem capacidade para fornecer milhões de unidades à UE – no ano passado, o laboratório dizia ter capacidade para produzir mil milhões de doses ao longo de 2021. Mas o Kremlin não se esquece do ceticismo com que a sua vacina começou por ser encarada no Ocidente.
Sergei Lavrov, o experiente ministro dos Negócios Estrangeiros russo, não perdeu a oportunidade para lembrar isso mesmo ao lado de Josep Borrell, evidenciando a fragilidade da posição europeia. “Muitos países estão interessados em comprar e fabricar nos seus territórios esta vacina”, lembrou Lavrov. A Alemanha é um dos casos – há conversações entre o Instituto Gamaleya e a farmacêutica alemã IDT Biologika, adiantou o MNE russo.
Neste momento, para além da produção na Rússia, já há produção da Sputnik V no Brasil, no Cazaquistão, na Coreia do Sul e na Índia. Por todo o mundo já há 23 países ou territórios a administrar a vacina russa, de Myanmar ao México, passando pela Autoridade Palestiniana ou os Emiratos Árabes Unidos.
Com a UE a lidar mal com o seu próprio processo de vacinação, e os Estados Unidos a tentar recompor-se na frente covid após as atribulações da Administração Trump – e ambos os blocos a fazer tudo o que podem para açambarcar um bem escasso – a Rússia e a China estão em plena operação de charme global graças às vacinas desenvolvidas nos seus laboratórios. É a chamada “diplomacia das vacinas”, para projetar o soft power de duas capitais a precisar de relançar a sua imagem global.
A China já o havia feito em 2020, com o fornecimento massivo a nível global de materiais de proteção individual e outros equipamentos de saúde. Agora, volta a fazê-lo com as vacinas. O dano reputacional de ter sido a origem da pandemia é difícil de superar, mas o fornecimento generoso de vacinas a países com pouca capacidade negocial junto da big pharma ocidental é um primeiro passo para limpar a imagem.
Made in China
Neste momento já há quatro vacinas made in China a ser administradas no país de origem e em outros territórios. Todas recorrem à técnica tradicional de inocular o paciente com uma versão inativada do vírus que quer combater. As duas principais são da Sinopharm, um laboratório estatal, e da Sinovac, uma farmacêutica privada.
Sinopharm
- Eficácia alegada: 79%
- Armazenamento: refrigeração entre 2ºC e 8ºC
- Produção prevista: mais de mil milhões de doses em 2021
- Publicados os resultados das fases 1 e 2 de ensaios, mas não da fase 3
- Os ensaios da fase 3 foram desenvolvidos nos Emiratos Árabes Unidos, Marrocos e Peru. A vacina começou a ser administrada na China no verão. Em setembro os EAU anunciaram que a eficácia da vacina seria de 86%, deram a respetiva autorização de emergência e começaram a administrá-la a responsáveis do Governo, como sinal de confiança. Tudo indica que a eficácia é menor, mas isso não abrandou o processo de vacinação nos Emiratos, que têm uma das mais altas taxas de vacinação do mundo (44 doses por cada 100 habitantes).
- Este mês a Sinopharm anunciou que testou a vacina contra a variante sul-africana, assegurando que a eficácia é praticamente a mesma que em relação às estirpes originais. Mas esses dados não foram verificados pelos pares.
Sinovac
- Eficácia alegada: 50%
- Armazenamento: refrigeração entre 2ºC e 8ºC
- Produção prevista: mais de milhões de doses em 2021
- Os ensaios clínicos da fase 3 conduzidos no Brasil, Indonésia e Turquia apontaram para alguma eficácia na proteção contra o SARS-CoV2. Quanta? Hum… Depende do país onde os ensaios foram feitos – os resultados foram bastante divergentes, mas como os dados da fase 3 ainda não foram publicados, a comunidade científica sabe apenas o que a empresa diz nos seus comunicados.
- Entretanto, a China e outros oito países aprovaram a sua administração à população. Outros três países têm acordos de compra. Na Indonésia e na Turquia, a vacina da Sinovac foi a escolhida para vacinar os respetivos presidentes.
Há outras duas vacinas made in China. Uma, da Sinopharm, desenvolvida com o Instituto de Produtos Biológicos de Wuhan. Está na fase 3 de ensaios mas há pouca informação sobre a sua eficácia. Não é garantido que este trabalho prossiga, tendo em conta o sucesso do outro medicamento da Sinopharm.
Por fim, a vacina da CanSino tem uma história ainda mais peculiar. Foi desenvolvida com laboratórios militares, e começou a ser administrada logo em junho do ano passado às Forças Armadas. Os dados das fases 1 e 2 de testes foram publicados na Lancet, e eram promissores, mas só em agosto começou a fase 3 dos ensaios, cujos resultados ainda não foram divulgados. Em novembro, cerca de 50 pessoas já teriam levado esta vacina…
Como é bom de ver, a situação das vacinas chinesas é bastante diferente da situação da Sputnik V. Os criadores da vacina russa já partilharam dados, estes já foram revistos pelos pares, e tudo indica que passaram no teste. Nada disso aconteceu com qualquer das vacinas da China.
A opacidade é total, nenhum dos laboratórios publicou os dados relativos à fase 3 de ensaios, e há contradições evidentes. O mais gritante é o caso da CoronaVac, a vacina da Sinovac Biotech. A empresa garante que, apesar das discrepâncias, todos os ensaios demonstram algum nível de eficácia. A questão é se é de 50% ou de 91%…
- Os ensaios conduzidos pelos investigadores brasileiros indicavam em dezembro uma eficácia acima de 50%, mas os mesmos investigadores apontaram em janeiro para uma eficácia de 78%. Porém, soube-se depois que esses valores eram referentes apenas a um subgrupo de voluntários – os resultados gerais ficavam mesmo pelos 50%…
- Pelo meio, os testes feitos por cientistas turcos concluíram por uma eficácia de 91% – mas ainda está por explicar por que razão, nos testes turcos, de entre 7.371 voluntários, só foram divulgados os resultados relativos a 10%…
- Entretanto, em janeiro, as autoridades indonésias anunciaram uma eficácia de 65% nos ensaios feitos no seu país…
Por outro lado, há enormes dúvidas sobre os “voluntários” chineses para estas vacinas. Para além dos militares a quem foi administrada a vacina da CanSino, parece haver uma tendência para se “voluntariarem” funcionários de grandes empresas estatais, como a PetroChina. Última nota: nenhuma das vacinas made in China é recomendada para pessoas acima dos 60 anos. Nem na China…
Um pesadelo geopolítico
Apesar destas dúvidas, estas vacinas são, para já, a única esperança de países que não são do clube dos ricos. Alguma vacina é melhor do que vacina nenhuma. E tanto a China como a Rússia estão a cavalgar a onda. Ambos estão a usar a vacinas para “aumentar a sua influência” em diversas geografias. Na hora de agradecer a solidariedade, esses países não olharão para as democracias ocidentais, mas para regimes autoritários, avisava há dias o Washington Post.
“Um pesadelo geopolítico”, nas palavras de um especialista em relações internacionais. “É a moeda de troca mais poderosa que existe no momento”, acrescentou outro observador em declarações ao diário de Washington.
No total, a China já vende vacinas para mais de vinte países. A Rússia idem. Há encomendas para 1,2 mil milhões de doses da Sputnik V. Para a China, é a oportunidade de corrigir o problema do “vírus chinês”. “A ideia de que a vacina chinesa vai ser um bem público global é muito importante para a China agora”, disse ao The Guardian Maurício Santoro, professor da Universidade Estadual de Rio de Janeiro e especialista nas relações China-Brasil.
Já a Rússia, aproveita a oportunidade para sacudir a imagem de Estado-pária, de que não se livra desde a anexação da Crimeia, e apostar numa “narrativa mais positiva, de fornecedor de vacinas e libertador da pandemia”, como se lê nesta análise do Financial Times. Que, à boleia disso, consiga perturbar a União Europeia e surgir como uma possível boia de salvação dos 27 é a cereja no topo do bolo.
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Rússia e China têm milhões de vacinas contra a covid. Porque é que a UE não as quer?
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