A Cristina e o Jerónimo
O Jerónimo da Cristina tem o dom da humildade perpétua e genuína, nada da rigidez ascética e estalinista.
Jerónimo conversa no Programa da Cristina. O cenário asséptico do programa da manhã recomenda-se para donas de casa fechadas em prédios suburbanos. Fala-se de tudo como se podia falar de nada. A presença de Jerónimo de Sousa desvia a natureza do programa para uma espécie de talk show em que a política se abre ao comum dos mortais — superficial, sensível, simplesmente humana. É como se o político no seu ambiente natural fosse um predador insaciável, um mentiroso compulsivo, mas que se transforma numa criatura afável e transparente, razoável e humana como todos os espectadores. O fenómeno é comum no mundo anglo-saxónico, mas raro em Portugal, e o discurso liberta o cheiro das flores no paraíso.
O Jerónimo da Cristina tem o dom da humildade perpétua e genuína, nada da rigidez ascética e estalinista. A política é uma infecção que desperta o bom da natureza humana e o bem da acção política, tudo condensado numa atmosfera que eleva o charme discreto da esquerda. Aliás, a esquerda contemporânea é só o charme de quem perdeu toda a memória histórica. O comunista que conversa com a rainha das manhãs é o camarada humilde e cheio de sonhos, que passou fome, esteve na Guiné, trabalhou numa fábrica, saía de casa com a lancheira e os livros para enfrentar a exploração do capitão da indústria e o preconceito do professor vindo de Coimbra. O único deputado que vem ainda da Constituinte, o único deputado que ainda se diz operário e que guarda o salário de metalúrgico para entregar o restante ao Partido. Num comício encontra uma criança com febre e como que por milagre a doença passa subitamente. A história de Jerónimo dava um filme. Para a Cristina o convidado é hoje o relicário de uma instituição. E a palavra da Cristina é a voz da nação.
Interessante que a conversa não é entre o comunista e a vedeta milionária, mas entre duas pessoas que têm como origem social e comum o povo. Cristina segue o evangelho da sociedade comercial e da lógica do mercado. Jerónimo segue a catequese do marxismo contra o grande capital monopolista e explorador. No mundo de Jerónimo, Cristina é a representação fetichista do apelo da mercadoria, do lucro, do defeito moral da ganância dos que mais têm e dos que mais podem. No mundo de Cristina, Jerónimo é o regresso à pureza original da dignidade do povo, o regresso à gramática da necessidade que um homem incorporou como fonte de luta e inspiração para uma vida política. Na margem oposta aos holofotes, Cristina vê em Jerónimo um passado para sempre perdido para a rainha das manhãs. A inocência tem por vezes estas atribulações da nostalgia.
A entrevista a Jerónimo de Sousa representa mais do que a urgência comercial do alinhamento de um programa de televisão. Cristina Ferreira está a ganhar uma importância e uma influência muito para além da circunstância de um programa da manhã. Subitamente, a rainha das manhãs tem o papel e a projecção de um apresentador conceituado de um talk show em que a importância das individualidades nacionais começa a ser assinalada com a presença no programa. Tal prática é comum em Portugal, mas o que é decididamente novidade e excepção é que a política começa a entrar neste círculo mediático dos programas populares de grande audiência. Na América todos os candidatos à Presidência fazem o circuito dos talk shows como parte fundamental da campanha. Até que ponto o Programa da Cristina não se está a transformar numa realidade nacional inesperada e em explosão de novidade, afastando-se do trivial e entrando sem hesitações ou preconceitos na trivialização da política e do discurso cultural. Não há memória de um programa matinal que na estreia tenha tido em directo um telefonema do Presidente da República. E a palavra do Presidente é a voz da nação.
Se em Portugal os debates políticos funcionam em circuito fechado, com recados de baptismo e uma linguagem de madeira; se em Portugal os debates culturais funcionam para um ínfima minoria porque o conhecimento sério, profundo, verdadeiro é um culto epigramático distante da ignorância e inalcançável para o espectro de atenção do povo; se em Portugal a política e a cultura são faces diferentes de moedas distintas, é natural que possa surgir um eixo de divulgação política e cultural que se dirija à face da nação sem pruridos elitistas e falado na linguagem dos portugueses. Para alguns tal pode representar a degradação da fabulosa erudição nacional; para outros este pode ser apenas o sintoma de uma verdadeira e espontânea democratização de uma comunidade de destino designada por Portugal.
Os candidatos à liderança do PSD deviam ter ido ao Programa da Cristina. No mundo oculto da política PSD, um candidato representa a força da desordem e do optimismo; o outro candidato representa a paranóia da ordem e do pessimismo. Refundar a direita, ganhar ao centro, recuperar o poder, deixem as sílabas básicas numa qualquer sede limitada pela freguesia dominante, encontrem o tesouro das palavras simples, curtas e directas, sentem-se no cenário nórdico que chega a todos os portugueses e falem, e riam-se e digam ao que vêm e expliquem o que querem para Portugal. Longe da paróquia deixem entrar o Sol.
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