Brazilionários

O livro 'Brazillionaires. The Godfathers of Modern Brazil' fala-nos de um certo Brasil capturado pelos interesses, com um fio condutor, a ascensão e queda de Eike Batista.

A fome mata e não destrói.
Nelson Rodrigues, O Casamento, 1966

Quando o Brasil vivia inebriado pela promessa inscrita no título do livro de Stefan Zweig, ‘Brasil, País do Futuro’, um crítico estrangeiro desfez as ilusões tropicais de forma ácida e contundente: «o Brasil é e será sempre um país de futuro». Sem ser uma incursão por todo o Brasil, o livro ‘Brazillionaires. The Godfathers of Modern Brazil’, do norte-americano Alex Quadros, saído o ano passado com chancela da Profile Books, ajuda-nos a perceber um pouco, no que é possível perceber daquele estranho mosaico, os problemas de um país imenso e os dramas do seu povo sofrido.

Alex Quadros é um jornalista freelancer que escreveu para publicações prestigiadas como The New York Times, Boston Globe, Washington Post e que, ao serviço da agência Bloomberg, teve acesso privilegiado à nata dos mais privilegiados cariocas e paulistas. Passou seis anos em São Paulo, onde fez a cobertura da presidência de Dilma, dos alvores do mensalão, da epidemia do zika e da preparação desastrosa das Olimpíadas do Rio.

Como se disse, o cartão-de-visita da Bloomberg e da Forbes permitiu-lhe contactar de perto e entrevistar os homens mais ricos do Brasil – e, alguns, do mundo –, os brazilionários. À parte umas pinceladas fugazes pela favela do Complexo do Alemão e pelos fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, o livro pouco fala de pobres ou sequer da classe média, mas essa multidão está lá, na penumbra, atenta ao desfile das grandezas e misérias dos multimilionários, às suas extravagâncias surreais e aos sucessivos escândalos de corrupção que arrasaram por completo a confiança dos cidadãos nas instituições – e, pior ainda, em si próprios.

Como nos recorda Alex Quadros, nas eleições de 2010, Tiririca, o candidato-palhaço e anti-sistema, obteve 1,3 milhões de voto, a segunda melhor percentagem eleitoral que algum congressista obteve na história do Brasil.

‘Brazillionaires’ abre com uma história que, se não fosse real, pareceria uma metáfora: o brutal atropelamento de um pai de família de classe baixa pelo McLaren SLR do filho de Eike Batista, à época o oitavo homem mais rico do planeta (actualmente, encontra-se em prisão domiciliária, acusado dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro).

O filho de Batista, um rapaz de 20 anos com o bizarro nome Thor, vinha de Petrópolis a altíssima velocidade e o automóvel colheu Wanderson Pereira dos Santos, um carregador de camiões que regressava a casa de bicicleta ao final da tarde, dia de aniversário da sua mulher. O embate foi de tal forma violento que o corpo foi projectado 60 metros, e o cadáver desfeito aos pedaços. A polícia acabaria por encontrar o coração de Wanderson no interior do McLaren. O condutor e os seus guarda-costas abandonaram o local do acidente, só regressando várias horas depois.

Eike pagou o funeral e, menos de dois meses depois, Thor já competia numa corrida de automóveis no Rio, ao volante de um vermelho e reluzente Ferrari 458 Italia. Entretanto, na sua conta do Twitter, com mais de um milhão de seguidores, Eike Batista queixava-se da «imprudência» da vítima.

Batista era – e é – conhecido no Brasil inteiro. Por vezes, como marido ou ex-marido da modelo Luma de Oliveira. Outras vezes, pela dimensão colossal da sua fortuna e pela ostentação do seu estilo de vida, que os brasileiros invejavam numa altura de euforia e de festa, quando cerca de 40 milhões de pessoas haviam sido resgatadas da pobreza extrema e, nas altas esferas da economia, se sonhava com a miragem da exploração do petróleo marítimo e eram detidas por brasileiros quatro marcas icónicas da cultura de consumo norte-americana: a Budweiser, o Burger King, a Heinz e a Kraft.

A Standard & Poor’s colocava o Brasil nos mais altos índices como destino de investimento e, na capa da revista The Economist, surgia uma fotografia do Cristo Redentor do Corcovado e, a letras garrafais, «BRAZIL TAKES OFF». Viu-se.

Cada capítulo do livro vai falando de uma personagem e das muitas histórias geradas em seu redor: Abílio Diniz, Paulo Maluf, Roberto Marinho e os seus filhos, o bispo Edir Macedo, o discretíssimo Jorge Paulo Lemman, etc., etc., incluindo nomes que não conhecemos, como Ottaviano Pivetta, prefeito de uma cidadezinha de Mato Grosso e dono da Vanguarda Agro, uma empresa detentora de qualquer coisa como 323 mil hectares de terra.

No entanto, o fio condutor do livro é o processo de ascensão e queda de Eike Batista, descrito ao mesmo tempo que se contam os casos das construtoras Odebrecht e Camargo Corrêa e se fala de Lula e Dilma. Muito do que aqui é dito já conhecíamos, outras vezes os factos estão desactualizados pela velocidade vertiginosa a que tudo tem acontecido no Brasil, país de futuro incerto e prognóstico reservado.

A literatura sobre milionários e ultra-ricos foi um dos subprodutos culturais da crise económica iniciada em 2008. Por toda a parte, dos Estados Unidos à Europa ocidental, proliferaram livros sobre fortunas incalculáveis, a par de obras sobre desigualdade, disparidades salariais e fenómenos congéneres.

No caso brasileiro, porém, a riqueza mostra-se algo diferente, em frondosa exuberância e repulsivo contraste com as condições de vida de milhões de famílias. Belgíndia, expressão cunhada na década de 1980 pelo economista Edmar Bacha para definir o seu país, território que reúne, num caldeirão explosivo, áreas com níveis de desenvolvimento semelhantes aos da Bélgica e, em simultâneo, situações de miséria só comparáveis às da Índia.

Durante anos, anos que duraram décadas, dizia-se que no Brasil só havia duas formas de enriquecer: a política e os contratos públicos. Ninguém se incomodava que o país fosse chamado «república das empreiteiras».

Alex Quadros descreve, de forma fluida, informada e notável, o lento processo de captura do Estado pelas grandes construtoras, a promiscuidade iníqua entre a política e os negócios, fortemente impulsionada nos tempos da ditadura militar mas prolongada no Brasil democrático.

Há desigualdade para todos os gostos – social, rácica, de género – e números impressionantes: no mercado de trabalho, uma em cada seis mulheres é empregada doméstica; na lista dos mais ricos do país não consta um único negro ou mulato. Enquanto isso, só em São Paulo existem mais de 400 helicópteros registados, muito acima das 120 aeronaves desse género que sobrevoam Nova Iorque; a cada cinco minutos, pelo menos quatro helicópteros aterram ou descolam na capital paulista, transportando os que podem fugir às intermináveis filas de carros e ao trânsito caótico. País do Carnaval, até quando?

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