Isabel dos Santos, nós e 1.001 formas de assaltar o Estado
O caso de Isabel dos Santos configura a transferência ilegítima de recursos avultados do Estado para benefício pessoal. Não é nada de novo também em Portugal.
Não me recordo de um escândalo económico ou financeiro que tenha provocado reacções tão rápidas, tão generalizadas e tão efectivas como as que ocorreram esta semana depois dos Luanda Leaks. Repare-se no que ocorreu em sete dias:
- Entidades reguladoras deram explicações públicas rápidas. O Banco de Portugal anunciou que está a investigar (não é normal o banco central dizer publicamente, com esta celeridade, o que faz) e a CMVM disse que já iniciou a análise do assunto no que se refere às empresas cotadas;
- O corte de relações comerciais do Eurobic com a sua principal accionista;
- Foi anunciado que a posição de 42,5% do Eurobic detida por Isabel dos Santos estava à venda;
- Foi anunciado que a posição de 75% do capital da Efacec detida por Isabel dos Santos estava à venda;
- Os membros dos órgãos sociais do Eurobic nomeados pela maior accionista sairam de imediato;
- Os membros dos órgãos sociais da NOS nomeados por Isabel dos Santos renunciaram;
- Mário Leite da Silva e Jorge Brito Pereira renunciaram aos cargos na Efacec;
- Jorge Brito Pereira, advogado da empresária angolana, deixou cargos empresariais, a sociedade de advogados de Proença de Carvalho, onde exercia e aconselhava a empresária angolana, e mesmo a actividade de advocacia;
- À saída imediata do líder da área fiscal da PwC em Portugal, Jaime Esteves, e as explicações do líder mundial da consultora em Davos, anunciando que deixavam de trabalhar de imediato com Isabel dos Santos;
- O Boston Consulting Group anunciou que também deixará de trabalhar com Isabel dos Santos;
- O World Economic Forum desconvidou Isabel dos Santos para o encontro de Davos, que estava prestes a começar;
- Os PGR de Angola e Portugal reuniram com invulgar rapidez e prestaram declarações públicas.
Isto tudo com a divulgação de documentos que são importantes, que podem até ser fundamentais para as investigações judiciais e regulatórias, mas que não nos contam uma história nova e desconhecida.
Quando se conheceram os primeiros títulos, no domingo dia 19 às 18h00, alguém abriu a boca de espanto? Alguém pensou alguma coisa do género: “O quê? A Isabel dos Santos desviou dinheiro do Estado angolano? Foi favorecida pelo pai presidente? Como é possível?”
Agora há documentos, quantias, datas, circuito de algum dinheiro – não esquecer que estamos a falar apenas de uma parte, relacionada com a Sonangol -, confirmação dos assessores e consultores que com ela trabalhavam – e todos eram conhecidos -, nomes e geografia de sociedades off-shore.
Mas, na essência, nada é novo ou surpreendente. E esta debandada geral a que assistimos, fugindo de tudo o que possa estar relacionado com a filha do ex-presidente de Angola, é apenas a defesa possível da reputação e o controlo de danos na imagem, agora que o assunto se tornou manchete e notícia de abertura em todo o mundo.
E esta é, em muitos casos, uma fuga carregada de hipocrisia, como também não surpreende.
Durante muitos anos o país aceitou, com raras excepções, o dinheiro trazido por Isabel dos Santos, sabendo todos qual era a sua proveniência. Todos: presidentes, governos, deputados, reguladores, órgãos judiciais, empresários e gestores.
Nalguns casos, até se suspirava por ela, como aconteceu quando a PT desmoronava arrastada pela implosão do Grupo Espírito Santo. O então comentador Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos que defenderam, ao lado dos sindicatos da empresa, que Isabel dos Santos era a melhor opção para a compra da empresa, por ser da lusofonia.
Sobre isso, já Pedro Sousa Carvalho, aqui no Eco, e José Manuel Fernandes, no Observador, escreveram. Vale a pena lê-los.
De facto, um país que acolhe com satisfação a Guiné Equatorial de Teodoro Obiang para a CPLP não pode reclamar para si critérios éticos e morais exigentes. Se amanhã aparecerem umas Obiang Leaks também vamos fingir que é uma surpresa e vamos a correr tentar expulsá-lo?
Não se pode praticar a realpolitik às segunda, quartas e sextas e armar-se em virgem ofendida às terças, quintas e sábados.
O caso de Isabel dos Santos configura a transferência ilegítima de recursos avultados do Estado para benefício pessoal.
Não é nada de novo também em Portugal. O caso angolano é mais óbvio e impressiona por ser feito de forma despudorada, sem qualquer vergonha ou mesmo tentativa de disfarce, por beneficiar directamente a família e amigos do ex-presidente José Eduardo dos Santos e por acontecer num dos países mais pobres do mundo, o que é duplamente chocante.
Em Portugal, os muitos casos que conhecemos são menos óbvios, mais elaborados e nalguns casos podem nem ter tido esse golpe como objectivo inicial. Mas todos acabaram na tal transferência ilegítima, muitas vezes criminosa, de recursos do Estado – leia-se, de todos os cidadãos – para contas pessoais.
Os perdões de dívida a empresários e empresas dados por bancos que foram resgatados pelos contribuintes não são mais do que isso mesmo. As listas de malparado do BPN, BES e seu herdeiro, Novo Banco, ou Banif que ficaram por pagar significam que os contribuintes foram chamados a pagar os créditos que empresários receberam e que não quiseram ou não puderam pagar. Quantas destes ficaram na pobreza por terem honrado os seus compromissos? Quantos Nuno de Vasconcelos não há por aí?
O mesmo se passa com a lista dos negócios ruinosos em que a Caixa Geral de Depósitos se meteu na década passada, que já foram alvo de duas Comissões de Inquérito Parlamentares. Joe Berardo também não é o único com razões para se rir na cara dos contribuintes. O dinheiro não se perde, não se evapora. E se faltou nas contas da Caixa é porque sobrou noutro lado e a explicação mais digna é que se perdeu em negócios que correram mesmo mal por razões económicas e não por práticas criminosas.
E podemos, nos grandes negócios mas a outro nível, olhar para contratos do Estado como os que se fizeram com as parcerias público-privadas rodoviárias, que se revelaram ruinosas porque deixaram o risco com os contribuintes e as taxas de rentabilidades elevadas e garantidas com os privados. Mais uma vez, a explicação benevolente é que se tratou de incompetência. Mas uma incompetência muito cara.
No fundo, há tantas formas de apropriação ilegítima dos recursos do Estado como há de cozinhar bacalhau. É tudo uma questão de ingredientes disponíveis, criatividade e complexidade.
Mas, a esta escala, todas elas requerem uma condição de partida: o acesso e proximidade de decisores públicos.
O caso de Isabel dos Santos é mais linear, óbvio e fácil de entender do que a generalidade. Que sirva, pelo menos, para fazer a pedagogia que todos os assaltos ao Estado são igualmente perversos, por mais elaborados e sinuosos que sejam.
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