Jaipur e a inocência

Se só puderem visitar um sítio no Rajastão, façam como Príncipe de Gales e venham cá. Apanhem um tuk tuk ao calhas e descubram a vossa primeira Índia, seja ela onde for. Não há nada igual no mundo.

É preciso vir à Índia duas vezes. A primeira é para o choque, o assombro, a surpresa, a maravilha. Para o “Ai eles são tão lindos, tão porcos, tão exóticos, tão iguais a nós”. A primeira vez é para a fotografar à National Geographic, perder o dinheiro todo, sofrer 26 horas dentro de uma jaula num autocarro, rapar frio, suar de calor, perder cinco quilos, queimar a língua, dizer nunca mais! E a segunda é para flutuar sobre isso tudo e cheirar as flores.

Mas primeiro há que perder a inocência e aprender a jogar o jogo. E a Cidade Rosa é um daqueles níveis onde convém não perder.

Jaipur é um dos vértices do famoso “Triângulo Dourado”, a Índia de pacote à venda em qualquer agência de viagens, onde dez dias custam um mês à grande e à indiana. Sendo que os outros vértices são Delhi e Agra, não aconselho esta Índia a ninguém que se dê à dor de levar as vacinas da praxe.

Ainda assim, e se por qualquer acaso do Karma se virem em Jaipur — e se, nesse dia, tiverem que apanhar um tuk tuk –, preparem-se para o ritual de passagem cá do sítio, uma espécie de Kinder Surpresa sem chocolate.

Tudo começa quando a pessoa quer ir do ponto A ao ponto B, e o sorridente motorista — que vive estacionado em frente ao hotel –, lhe apresenta um preço honesto. Fascinado com a familiar mistura entre simpatia e sinceridade, o visitante acha que fez um amigo e baixa as armas da desconfiança. O problema é que, em vez de ir diretamente ao City Palace, o turista dá por si às escuras, numa garagem dos subúrbios.

Momentos de pânico fazem um prefácio inútil ao que há de ser a ourivesaria do primo do trafulha sobre rodas. Já mais descansado e, com uma Coca-Cola em punho, o ingénuo visitante tenta agora dizer que não, em todas as línguas que conhece. O motorista perde o sorriso e, meia hora depois, lá estão eles a caminho do que será a loja de tapetes do cunhado e, por aí fora, até ao infinito.

Ora, na minha primeira vinda a Jaipur, eu consegui completar a caderneta dos cromos: foram fábricas de tecidos, lojas de saris e de lenços, foi o guru das pedras preciosas, o tipo que lê a sina, o centro comercial de luxo… Enfim, todo o sítio e mais nenhum!

Mas, desta vez, aprendi a dança. E a conversa começa com as mãos no colarinho destes rapazinhos, a tentar explicar que não há letras entre A e B. Claro que mesmo que apanhemos um tuk tuk direto, há sempre a possibilidade de irem o caminho todo em contramão. Perdoem a rima fácil mas aqui, até para ir ao café é preciso fé.

Jaipur é a gigante capital do Rajastão e tem um centrinho antigo em tons de rosa velho (eufemismo para rosa poluído), com centenas de lojistas de tudo: palácios, observatórios astronómicos incríveis, fortes, jardins e três milhões de vizinhos.

O Rosa de Jaipur não tem o mistério do Azul de Jodhpur, não espanta mosquitos, nem arrefece paredes, não tem o luxo do Branco de Udaipur ou a magia do Amarelo-deserto de Jaisalmer. Foi simplesmente mandada pintar dessa cor pelo marajá da altura, para receber o Príncipe Eduardo de Gales, em 1876.

Ainda assim, Jaipur tem o caótico pitoresco de Jodhpur, um palácio no lago como Udaipur, fortalezas como Jaisalmer e centenas de templos como Pushkar. Se só puderem visitar um sítio no Rajastão, façam como Príncipe de Gales e venham cá. Apanhem um tuk tuk ao calhas e descubram a vossa primeira Índia, seja ela onde for. Não há nada igual no mundo.

Crónicas indianas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO publica as melhores histórias da viagem à Índia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui.

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