Nivelando as regras do jogo
A acusação dos EUA à Google tem de ser a ponta de um icebergue, porque nunca foi tão urgente nivelar as regras do jogo no setor da tecnologia.
Em The Age of Surveillance Capitalism, Shoshana Zuboff argumenta que a era da vigilância como modelo de negócio foi uma invenção da Google.
Ao recolher cada vez mais dados pessoais dos cidadãos, a empresa conseguiu instituir aquilo que a autora chamou de “mercado de comportamentos futuros”, onde a manipulação das pessoas é “vendida” ao anunciante que pagar mais.
O modelo é agora seguido por uma série de outras empresas, como o Facebook e a Amazon. Em resultado, nós, os cidadãos digitais, deixámos de ter o controlo total da nossa vontade. Porque somos facilmente manipuláveis. E quanto mais acharmos que não o somos, mais manipuláveis seremos.
A teoria é um bom ponto de partida para entender a acusação que paira sobre a Google nos EUA. Esta semana, a justiça norte-americana acusou formalmente a multinacional de recorrer a estratégias ilegais para cimentar a sua posição dominante no mercado das pesquisas.
Há duas reações imediatas. A primeira é a de que o processo debruça-se sobre uma ínfima parte daquilo que é o negócio da multinacional. Pode ser positivo: um processo desta natureza já é complexo que baste e deverá arrastar-se por vários anos. Outros, certamente, estarão a caminho.
A segunda tem a ver com o impacto que o caso pode ter. Na Europa, a Google foi já alvo de três processos envolvendo as compras online, a publicidade e o Android. Os três resultaram numa multa total de cerca de oito mil milhões de euros, e muito pouco mudaram na estrutura da empresa. O pior que podia acontecer era assistir-se a outra mera “palmada na mão” da empresa, como dizem os ingleses.
Face a tudo isto, a Google argumenta que as pessoas usam os seus produtos porque querem. Não é totalmente verdade, como sabe qualquer um que tente evitar recorrer a serviços fornecidos pela empresa nos tempos que correm, desde o Gmail aos mapas, passando pelo próprio motor de busca.
Dou o meu exemplo. Ainda que decidisse deixar de usar os serviços da Google por completo (e devo admitir que o Bing, da Microsoft, está bem mais avançado do que eu pensava), nunca o poderia fazer com substância: é o fornecedor de correio eletrónico do meu empregador.
Se quisesse abandonar totalmente os serviços do Facebook, seria a mesma coisa: vejo-me obrigado a usar o WhatsApp por motivos profissionais.
Não sou fundamentalista, e acredito num mundo em que estas grandes empresas, que alcançaram bastante sucesso ao longo dos anos, podem operar livremente num mercado global.
Mas também defendo um mundo em que empresas de menores dimensões podem inovar e prosperar, num mercado livre de abusos e de players dominantes que não respeitam as mesmas regras, nem assumem responsabilidades do efeito que têm na sociedade.
Não é uma tomada de posição contra o capitalismo. É, como escreve Diogo Queiroz de Andrade, evitar que “estas práticas monopolistas das grandes empresas americanas” sirvam para “esmagar a inovação” num setor tão crítico como o da tecnologia.
A investigação dos EUA à Google deve ser a ponta do icebergue e outras tecnológicas deverão ser sujeitadas ao mesmo escrutínio: Facebook em primeiro, Amazon depois.
Estas ações da justiça devem ainda ser complementadas com regulamentação apertada, de forma uniforme na Europa e eventualmente em cooperação com os EUA, depois de promovida uma ampla discussão pública acerca do tema.
Curiosamente, esta quinta-feira, o Financial Times revelou como a Google desenhou uma estratégia para influenciar legislação que está a ser preparada pela Comissão Europeia para travar o poder das gigantes digitais, e que só deverá ser conhecida em dezembro.
O jornal cita partes de um documento interno, mostrando como a multinacional tenciona empregar argumentos populistas como o de que a lei “limita o potencial da internet numa altura em que ela é mais necessária para as pessoas”.
Posto isto, Alphabet (dona da Google), Facebook, Amazon e Apple são algumas das empresas que publicam os resultados do último trimestre esta quinta-feira. Mais uma vez, os números deverão mostrar aquilo que todos sabemos: nunca foi tão urgente nivelar as regras do jogo.
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