‘O Governador’ e o fim dos segredos
Portugal é um país de segredos, os políticos gostam de evitar o escrutínio. ‘O Governador’ é um bom exemplo para mudar de hábitos.
O jornalista Luís Rosa vai apresentar hoje ao final da tarde na Gulbenkian um livro que relata os dois mandatos de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal. Não é exatamente uma biografia, é mais um livro de memórias, umas mais antigas, mas sobretudo outras, recentes, de uma década à frente do Banco de Portugal e do país marcada por acontecimentos extraordinários (e não são no bom sentido): Tinha havido a crise internacional do subprime, depois a falência do país em 2011, a falência do BES em 2014, a geringonça no Governo e, logo depois, a falência do Banif no final de 2015, a venda do Novobanco em 2017 e a tentativa de destituição do governador entre 2019 e 2020, até à sua saída, em meados do ano.
O livro ainda não foi apresentado e já há muita gente nervosa, porque teme fazer parte das memórias do antigo governador. Faz contas de cabeça sobre o que disse, e não disse, a Carlos Costa. E já teve consequências. A pré-publicação de um capítulo em que Carlos Costa revela as pressões que sofreu de António Costa para não ‘tocar’ em Isabel dos Santos levou o primeiro-ministro a anunciar que vai processar o ex-governador, enquanto o atual governador, Mário Centeno, pediu “respeito pelas instituições”. E Francisco Assis, socialista crítico de Costa e presidente do CES, já cancelou a sua presença na apresentação do livro ao lado de Luís Marques Mendes.
Carlos Costa faz bem ou faz mal em promover este livro, quando saiu há pouco mais de dois anos do Banco de Portugal?
Em primeiro lugar, o antigo governador está, obviamente, a fazer um ajuste de contas com o passado, a deixar em letra de imprensa a sua verdade sobre estes dez anos e sobre os momentos mais difíceis que viveu, muitas vezes sozinho, e pressionado por um Governo e por um primeiro-ministro que não lhe deram descanso. É por isso legítimo que tenha chegado a sua hora de se defender. E quem já leu o livro percebe que Carlos Costa o preparou com tempo, há muitos detalhes, muitas datas, pormenores que não eram conhecidos sobre os bastidores de processos tão difíceis e complexos como a entrada da Troika em Portugal, a falência do BES e a relação com Ricardo Salgado, as tensões com António Costa e os confrontos com Mário Centeno.
Há, em segundo lugar, uma razão maior para aplaudir este livro. O país precisa de transparência, e isso só poderá ser assegurado com a participação de quem esteve no processo de decisão dos momentos políticos e económicos mais críticos da última década. Mesmo admitindo que a visão de Carlos Costa pode ser contrariada por outras ‘verdades’, o livro ‘O Governador’ contribui para esclarecer o que se passou, traz até uma certa salubridade à discussão política quando o país — ou alguns líderes políticos — preferem guardar a história a sete chaves, como se os portugueses não tivessem capacidade para avaliar e fazer os seus juízos.
Um exemplo: Carlos Costa acusa António Costa de pressão para manter Isabel dos Santos no Banco BIC, ao que o primeiro-ministro respondeu com um processo. António Lobo Xavier veio revelar, no programa O Princípio da Incerteza, que o primeiro-ministro promoveu até um decreto que facilitou a entrada do CaixaBank no BPI, contra os interesses da filha do antigo presidente angolano, e censurou Carlos Costa pelas acusações. Ora, se é verdade que António Costa fez mesmo um decreto à medida dos espanhóis, também é verdade que se envolveu diretamente a abrir a porta do BCP a Isabel dos Santos, uma espécie de compensação de negócio. Ou seja, um facto não contraria o outro e é absolutamente plausível que, mais tarde, tenha pressionado o governador no caso BIC. Certo é que a revelação de Carlos Costa permite a discussão da relação do Governo com o poder angolano à luz de nova informação, e sobre isso todos ganhámos. Ou é preferível esconder o que realmente se passou?
Carlos Costa também cometeu erros, como é óbvio. Mas não foi Carlos Costa a mandar o grupo GES/BES para a falência, e por arrasto a PT, não foi Carlos Costa o responsável pela falência do país em 2011, não foi o governador a levar o Banif a uma resolução, também ela, muita cara aos contribuintes. E às vezes, nesta discussão sobre o livro ‘O Governador’, há também nas reações uma espécie de ajuste de contas com Carlos Costa, quando deveria haver, antes, uma discussão sobre o que lá está escrito.
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