O triunfo da sociedade da desinformação
Os manifestantes que gritam contra as vacinas são o primeiro produto da destruição do espaço público. O próximo será pior.
O triste espetáculo a que se assistiu esta semana não nasceu de geração espontânea. Nasceu de um processo continuado de desinformação que tem muitos responsáveis – e em que as recompensas são óbvias para quem é superficial no conhecimento e no discurso.
Aquilo que em tempos foi conhecido com o espaço público é hoje um campo de batalha anárquico em que redes sociais, meios de comunicação e entidades públicas e privadas se digladiam para conquistar atenção: essa atenção justifica tudo, incluindo o nível seguinte na escalada do discurso que se afasta cada vez mais da realidade. Num espaço onde ganha quem grita mais alto, perdem todos – incluindo os que estão a gritar. As bolhas digitais em que nos metemos acabam por facilitar muito o aumento da confiança nas teorias que construímos, especialmente se formos ignorantes no que toca ao assunto em causa. Um dos principais sintomas da doença informativa é o prazer que temos em ver e ler os tudólogos, que não percebem verdadeiramente de nada mas lá simulam que sabem um bocadinho de quase tudo. Confiamos demasiado em quem faz de conta que sabe de tudo e de menos em quem assume que não pode falar de todos os temas, porque não os estudou.
E sim, as redes sociais têm muita culpa na forma como facilitam a amplificação do discurso extremista. Os seus algoritmos só prestam responsabilidades aos acionistas e por isso não se coíbem de estimular mecanismos de dependência e de manipulação para chegar o mais longe possível na amplificação de modelos demagógicos. O alcance e a velocidade que as mentiras alcançam não seriam um problema se não existissem estas redes sociais viradas exclusivamente para o lucro gerado pelos cliques.
Mas alguns meios de comunicação social são também responsáveis. A forma como procuram os mesmos cliques leva alguns a promover nas suas colunas de opinião ignorantes que acabam a contradizer o que os próprios espaços noticiosos assumem. E há muitos colunistas que ajudaram ao que se passou ontem. Quando estes especialistas em nada de nada levantam questões a que não sabem responder, atiram irritações contra quem procura soluções e questionam a ciência sem que sequer entendam o que está em causa, estão a contribuir decisivamente para minar a sociedade de informação.
A demissão das entidades públicas deste problema é outro fator gritante. A forma como o Estado entende que a destruição do espaço público não é um problema e como prefere abdicar da sua responsabilidade de educar para o espaço digital é também assustadora. Basta olhar para o caso da Finlândia, que não costuma propriamente ser mau exemplo nos temas educativos: desde 2014 que encetou um programa abrangente de educação para a sociedade digital que inclui conhecimentos de estatística e de discussão das verdades científicas na escola primária. O resultado é que já hoje a Finlândia é o país mais resistente a notícias falsas.
As teorias da conspiração dão respostas simples a problemas complexos. E nós gostamos demasiado de respostas simples. Sentimos mais confiança num mundo simples que se explica em poderes ocultos e mentiras do que no inesperado e no que é difícil explicar. A este nível primário, a crença nas teorias da conspiração não é diferente da adesão a bruxarias ou a discursos religiosos mais ou menos fundamentalistas. E, exatamente da mesma forma como essas crenças oprimiram o discurso científico, hoje as teorias da conspiração querem atacar a ciência – especialmente porque a construção do conhecimento científico é um processo com retrocessos e limitações assumidas. Mas o problema é individual e, como vimos ontem, coletivo. Uma sociedade que vive de teoria da conspiração em teoria da conspiração tem os seus alicerces corroídos. Nela será muito difícil construir uma qualquer experiência partilhada e manter algo que se pareça com um projeto comum. O que está em causa não é a crítica às vacinas: o que está em causa é o processo subtil de destruição do sistema democrático em que alguns de nós vão alegremente participando.
Ler mais: Este A Lot of People are Saying vai à raiz do problema, explicando como as novas teorias da conspiração visam minar a confiança no sistema democrático e retirar legitimidade ao sistema social em que vivemos. Embora viva muito do exemplo americano, as suas lições são (in)felizmente transponíveis para o que estamos a viver.
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