Preservativos Amarelos

Muitos imaginavam um mar amarelo no Marquês, a estátua coberta de estandartes de todas as lutas políticas. Mas não. A manifestação dos coletes amarelos mais parecia a manifestação dos capacetes azuis.

Muitos imaginavam um mar amarelo no Marquês, a estátua coberta com faixas coloridas e com todos os estandartes de todas as lutas políticas. No topo, a figura do Marquês pintada de vermelho segurando uma tocha de luz como símbolo da liberdade. Na visão de um drone sobre a Avenida, colunas de fumo negro, carros transformados em chamas que aqueciam as montras partidas das lojas de luxo com o interior saqueado. Na confusão dos petardos e das bombas que rebentavam Avenida abaixo e Avenida acima, o povo oprimido tomava de assalto a Avenida enfim da Liberdade. Em São Bento, a polícia resistia num pequeno reduto entre colunas enquanto os poucos deputados fugiam pela residência oficial do primeiro-ministro. Nas paredes brancas do Parlamento as inscrições a vermelho e preto anunciavam o fim do regime, a expulsão dos políticos e a Nova Democracia finalmente Popular.

Mas não. A manifestação dos coletes amarelos mais parecia a manifestação dos capacetes azuis. A política tem de facto uma vertente em que a violência é um instrumento de acção e de mudança. As acções de rua com ou sem violência não se confundem com a organização de uma claque em dia de derby. O protesto político em Portugal segue demasiadas vezes sem espírito crítico ou sentido do ridículo aquilo que se passa na Europa. Resta o pormenor de uma cultura política nacional periférica, provinciana, paroquial, em que a solução para a ausência de ideias é a importação de comportamentos observados à distância sem conhecimento dos contextos e das causas. Quando a política cai na rua, a violência favorece os profissionais da política da rua, não os ingénuos curiosos que deslizam pelas redes sociais.

Parece fútil percorrer a plataforma de reivindicações. Não parece fútil referir que as mudanças que chegam da Europa implicam a extinção e o enterro de uma certa ideia de Portugal. Os portugueses que não se conseguirem adaptar à nova economia vão ficar sem função, sem desígnio e sem destino – a angústia da inutilidade mais a estagnação de uma classe média pobre em termos europeus. Uma classe média educada no respeito pela segurança e pela estabilidade da obediência. Os portugueses não foram habituados à mudança radical e contínua, não prezam as revoluções, agem por inveja e mimetismo, para acabarem perdidos na confusão das rotundas das grandes cidades, que funcionam como enormes metáforas de um Mundo em revolução permanente.

A versão nacional dos coletes amarelos prometeu e ameaçou parar Portugal. Mas a pergunta politicamente impõe-se – Como se pára um país parado? A estabilidade garantida pelas Esquerdas Unidas são uma versão progressista e mentirosa de uma Nação em movimento. A observação do Portugal político resume-se à contemplação de uma parede branca a secar. Cambiantes, tonalidades, sombreados, uma sequência de gestos políticos entediantes a resvalar para um abcesso de fixação para incautos e distraídos. Que importa a retórica oficial virada para as novas gerações, aliás num país que não é para jovens. Que importa o discurso oficial orientado para os pensionistas, aliás num país que não é para velhos. Afinal para quem é este país? É o país dos “grandes” e dos “poderosos”; o país que se alimenta dos “dinheiros de Bruxelas”, da “pequena e da grande corrupção”, dos “pequenos e dos grandes interesses”, dos “pequenos e dos grandes negócios”; o país onde os infernais subúrbios de Lisboa e do Porto aparecem disfarçados em cenário de novela. Este é o diálogo de café que suporta a plataforma dos coletes amarelos, mas em nada se aproxima de uma revolta popular e política.

Mas este diálogo aponta para uma distinção essencial em política – a distinção entre “eles” e “nós”. Neste sentido a política portuguesa apresenta uma peculiar dissonância relativamente ao contexto da Europa, a saber, a ausência de um partido populista em Portugal. Face ao anúncio da manifestação dos coletes amarelos, por receio ou cobardia, a Esquerda em particular e o establishment em geral começou imediatamente a levantar o espectro do populismo e a fazer a pedagogia da cidadania responsável e democrática. Como se o fenómeno populista tivesse contemplações face às platitudes do politicamente conveniente. A ausência do populismo em Portugal é uma questão que merece a dignidade de uma discussão política mais aprofundada – prova de avanço ou marca de atraso?

Os coletes amarelos não transformaram a Avenida da Liberdade com as barricadas de um campo de batalha. Imaginem a noite sobre a cidade, entre os estilhaços e as chamas o reflexo das luzes de Natal – a beleza que se eleva quando a civilização choca com a barbárie.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico

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