No ano em que celebra o 130.º aniversário, a líder em exportações de vinho do Porto quer deixar claro que o caminho a seguir é o da inovação. Na calha estão, entre outros, dois projetos hoteleiros.
A história do vinho do Porto cruza-se com a história da identidade portuguesa. A produção de vinhos na região do Douro terá começado ainda nos tempos da ocupação romana, mas terá sido só em 1675 que os vinhos licorosos que apresentavam determinadas características ganharam a denominação Porto, uma referência à cidade portuária de onde saiam as expedições um pouco para todo o mundo.
Já no último terço do século XVII, o interesse dos ingleses pelos vinhos portugueses aumenta e Inglaterra começa a importar grandes quantidades de Porto. Em 1703, Portugal e Inglaterra assinam o Tratado de Methuen que, não só consolida a aliança já estabelecida entre as duas nações como aumenta os fluxos mercantis entre elas. França, Holanda, Bélgica e tantos outros países juntam-se à lista de apreciadores de vinho do Porto.
Trezentos anos e muitos altos e baixos depois, cruza-se com estas a história da Gran Cruz. “Em 1975, comprámos a empresa Manuel R. de Assunção & Filhos, que tinha sido fundada em 74. Nesse ano, a empresa foi renomeada Gran Cruz Porto e a grande expansão deu-se a partir daí”, conta ao ECO Jorge Dias, presidente executivo da mesma.
Atualmente, a Gran Cruz estabelece-se como a maior exportadora de vinho do Porto, vendendo cerca de 30 milhões de garrafas, entre marcas próprias, marcas de supermercado e marcas premium, que têm como destino mais de 50 países espalhados por todo o mundo. “Há muitos anos que estávamos a par com as maiores empresas, mas tornámo-nos o maior exportador pelo investimento na marca Cruz e pelo investimento que fizemos em aquisições de outras empresas ou ativos de outras empresas, stocks e clientela“, detalha Jorge Cruz.
Debaixo da terra (e da estrada) corre o vinho
Sob da chancela Gran Cruz, que comemora este ano o seu 130.º aniversário, encontram-se oito marcas, sendo seis delas de vinhos do Douro — C. da Silva, Companhia União dos Vinhos do Porto e da Madeira, Gran Cruz Porto, Vale São Martinho, Gran Cruz Turismo e Quinta do Ventozelo — e duas de vinho da Madeira — Justinos e Henriques & Henriques. No edifício central do grupo, em Vila Nova de Gaia, estão concentrados os serviços administrativos e a maior parte do armazenamento.
Ao contrário de muitas outras empresas de vinho do Porto, que têm as suas caves na margem do rio Douro, as caves da Gran Cruz situam-se neste edifício central, mais no centro da cidade. É aí que, entre as marcas Porto Cruz, C. da Silva e Companhia União de Vinho Porto, estão a envelhecer os milhões de litros de vinho do Porto que constituem os stocks da empresa. Seja em garrafa, em balseiros ou em cubas, a Gran Cruz terá nesta condição cerca de 55 milhões de litros.
Mais recentemente, a empresa investiu na instalação de uma nova linha de engarrafamento e embalamento, que ainda está em fase de teste. Esta unidade de Vila Nova de Gaia conta agora com três linhas de montagem automatizadas e com uma manual, onde são processadas as encomendas mais delicadas.
Ainda assim, o equipamento que suscita mais surpresa em quem visita as instalações da produtora não é de armazenamento, mas sim de transporte. Confrontada com a existência de uma estrada que separa os seus armazéns, a Gran Cruz construiu um túnel, digno de resistir a um cenário apocalíptico, que a atravessa e permite a passagem do vinho entre armazéns.
Uma empresa em contraciclo
Ainda que a Gran Cruz esteja a passar por um período de bonança, não acontece o mesmo com o mercado dos vinhos licorosos. Os valores de exportação tanto de vinho do Porto como de vinho da Madeira — ambos produtos comercializados pela empresa de Jorge Dias — estão estagnados há vários anos, ainda que com ligeiras variações. Segundo os dados do Instituto da Vinha e do Vinho relativo ao período de 2010 a 2016, no mercado do vinho do Porto os 300 milhões de euros em vendas estabelecem-se como uma resistência difícil de ultrapassar.
Evolução do mercado dos vinhos licorosos (Porto e Madeira)
Fonte: Instituto da Vinha e do Vinho
Por sua vez, no caso do vinho da Madeira, a resistência encontra-se bem mais abaixo — nos 15 milhões. Ainda assim, o ano de 2016 tem sido o mais positivo desta década, com o valor das exportações de vinho do Porto a localizar-se nos 314,9 milhões de euros e o das exportações de vinho da Madeira a atingir os 15,4 milhões de euros.
Em termos dos países que mais apreciam vinho do Porto, os números não deixam dúvidas:
Os dez países que mais vinho do Porto importaram em 2016 (valor)
Fonte: Instituto da Vinha e do Vinho
França é o país que mais vinho do Porto importa, em termos de valor, sendo que, no ano de 2016, os franceses investiram 79,5 milhões de euros neste produto português. Segue-se o Reino Unido, que mantém a velha aliança e importou vinho no valor de 47,3 milhões de euros, e os Países Baixos, que importaram 43,1 milhões de euros. Nesta lista dos dez países que mais vinho do Porto importam, destaca-se também os Estados Unidos da América e o Canadá, dois mercados em expansão.
A importância do investimento para que esta resistência seja ultrapassada é afirmada por Jorge Dias, que assume também alguma culpa na própria existência dessa: “Provavelmente é culpa nossa. Tinha amigos que me diziam que estávamos a matar o vinho do Porto, porque haviam tantos códigos associados ao seu consumo”. Para o gestor, a mudança de paradigmas e as exigências dos novos consumidores apresentam-se assim como aspetos a ter em conta.
A resistência dos jovens ao vinho do Porto e a falta de investimento na formação de sommeliers e bartenders são problemas que, para Jorge Dias, podem ditar o fim da longa vida do vinho do Porto. “Podemos sofrer aqui uma embolia geracional que, como qualquer embolia, traz um corte. De repente ficamos com metade dos consumidores”, confessa o gestor. “Compete-nos fazer um trabalho grande de formação junto das pessoas, dos sommeliers e dos restaurantes.”
Quanto mais velho melhor?
Para colmatar a ausência de um edifício histórico no Cais de Gaia — e para não perder a oportunidade de receber os tantos turistas que vão povoando as margens do rio Douro –, a Gran Cruz optou por marcar a diferença e inaugurou, em junho de 2012, o Espaço Porto Cruz, um edifício de quatro pisos que funde o que de mais tradicional e puro constitui a sua história com as linhas modernas, as novas tecnologias e as exigências dos novos públicos.
As linhas antigas e o revestimento em azulejo foram mantidos mas os turistas, em vez de fazerem a convencional visita às caves, podem ter uma experiência que Jorge Dias define como “multissensorial”. Esta começa por uma sala de provas, continua por um auditório onde é mostrada a história do vinho do Porto através de materiais audiovisuais, por uma sala de exposições que dá oportunidade aos novos criadores de exporem o seu trabalho e termina no de Castro Gaia: é aí que se servem as novidades que a marca oferece.
Este restaurante, que funciona no terceiro andar do edifício, conta com pratos de assinatura do renomeado chef Miguel Castro e Silva e um menu que privilegia não só a ligação entre esses pratos e os vinhos da marca Gran Cruz, mas também a partilha de petiscos entre amigos, num ambiente informal. Quer seja perna de pato com cogumelos e Porto ou pica-pau de vitela Maronesa, a acompanhar estará sempre uma vista panorâmica sobre o rio Douro e a cidade do Porto.
Por fim, no topo do edifício, a empresa utilizou da melhor maneira a localização e oferece aos seus clientes um terraço com uma vista de 360º, onde não faltam os petiscos e os cocktails. E se a velha máxima diz que ‘é como o vinho do Porto, quanto mais velho melhor’, para Jorge Dias a primazia da idade só se aplica a algumas coisas: “Os produtos têm de se reinventar porque se ficam amarrados ao passado acaba por ser um plano inclinado para a morte.”
No Espaço Porto Cruz podem provar-se as mais recentes reinvenções do produto estrela da empresa, que vêm em diversos formatos, desde cocktails a chocolates, não esquecendo os gelados. No campo das bebidas, o Porto Rosé e os cocktails ‘Spicy Pink’ e ‘Rosemary’ dão uma roupagem improvável ao vinho, que passa assim a ser a companhia ideal para um pôr-do-sol. Nos doces, a Gran Cruz oferece não só chocolates com recheio de vinho do Porto, mas também sorvetes.
O último aspeto em que não só a Gran Cruz, mas também outros produtores de vinho do Porto querem inovar diz respeito ao teor alcoólico, sendo que, para ser considerado autêntico, o vinho tem de ter entre 19 a 20 graus.
"Defendemos que o vinho do Porto devia poder baixar um grau para os 18 graus acompanhando as modernas tendências de consumo.”
“Não contem connosco para ficar presos ao passado, a coisas que às vezes não fazem muito sentido, dado até a excessiva regulamentação que o vinho do Porto tem”, remata Jorge Dias.
Novidades para os “aventureiros do sabor”
O ano de 2015 foi um ano de grande expansão para a Gran Cruz. A empresa comprou a Quinta de Ventozelo, situada em São João da Pesqueira. Fundada por volta de 1500 pelos monges cistercienses, é uma das propriedades vinícolas mais antigas do Douro e estende-se por 400 hectares. Desde 2011 que a Gran Cruz comprava já toda a produção da quinta: ainda assim, a aquisição da propriedade permitiu um melhor controlo de todo o processo produtivo e um investimento em novos projetos. E é exatamente isso que vai acontecer em 2019.
A quinta vai receber o primeiro projeto enoturístico da empresa, que contará não só com acomodações hoteleiras e equipamentos lúdicos, mas também com um Centro Interpretativo, trilhos temáticos e postos de observação. “Vista a espessura histórica que a quinta tem e a sua dimensão patrimonial, quase que seria um crime não a abrirmos a quem nos visita”, reitera Jorge Dias. “Naqueles 400 hectares temos ‘o Douro numa quinta’ em termos da flora e da fauna mediterrânica.”
Para além disso, a Gran Cruz quer que os visitantes também ‘ponham a mão na massa’ e propõe que participem ativamente em tarefas variadas como a vindima, a apanha da azeitona, da fruta ou dos legumes. “Costumo chamar ‘aventureiros do gosto’ aos novos turistas. Querem um produto compósito, querem ter experiências à volta do produto”, justifica.
O objetivo final é conseguir preservar ao máximo o conceito rural da quinta, para que a autenticidade não se perca. Em termos gastronómicos, o caminho é o mesmo: “Comida feita pela caseira, tanto quanto possível do quilómetro zero, será aquilo que podemos oferecer de mais autêntico do Douro”, garante Jorge Dias.
Com um conceito bem mais citadino e a seguir a explosão de popularidade do Porto como destino turístico, surge o segundo projeto que marca o 130º aniversário, uma guest house na zona da Ribeira, na cidade Invicta. Com sete quartos e uma decoração temática, este será dirigido a “um público mais sofisticado, que quer um ambiente mais requintado”, como explica o presidente. A sua conclusão está prevista para a primavera do próximo ano.
Estes dois projetos traduzem-se num investimento que rondará os seis milhões de euros e que criará cerca de duas dezenas de postos de trabalhos entre o Porto e São João da Pesqueira. Ainda assim, Jorge Dias prefere manter os pés bem assentes na terra, afirmando que este não pode ser só um investimento pontual: “Não podemos esquecer que isto é o sonho e que depois há a realidade. E aí é preciso investir permanentemente.”
Preservar, envelhecer e estar atento
Permanente é também a responsabilidade que a marca acarreta, não só aquela que diz respeito à tradição do vinho do Porto, mas também a que a liga aos seus produtores. “Vendemos um terço do total da produção de vinho do Porto. São milhares e milhares de famílias que dependem das vendas que fazemos”, adianta o presidente da Gran Cruz.
No primeiro campo, a prioridade é preservar e envelhecer. Com a compra da C. da Silva, em 2007, a Gran Cruz conseguiu preservar os stocks da empresa e que contavam com vinhos que remontam ao século XIX. Alguns desses, em conjunto com outros que foram comprados a outros produtores, foram utilizados para criar uma edição especial de aniversário, muito exclusiva, cuja idade ultrapassa os 100 anos.
A tradição não é garantia de nada, pode ser até algo poeirento.
Em relação aos produtores, a fasquia é bem alta. A Gran Cruz vende vinho do Porto equivalente a 12,5 mil hectares de vinha, uma extensão de terreno que, nem de perto, possui. Assim, Jorge Dias afirma estar “umbilicalmente” ligado a todos aqueles que produzem uvas nos terrenos do Douro.
Ainda assim, e como mostram as inovações e produtos apresentados até então, a Gran Cruz não quer descansar à sombra da tradição, sendo que para o gestor da empresa, “a tradição não é garantia de nada, pode ser até algo poeirento”. Jorge Dias e os cerca de 70 trabalhadores que constituem a empresa garantem que o seu compromisso é manter a chama viva, estando sempre atentos àquilo que o Douro traz na sua corrente.
A jornalista viajou a convite da empresa.
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Gran Cruz: 130 anos a limpar o pó do vinho do Porto
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