Mais de 5.000 referências, pessoas e marcas que a gigante espanhola traz para território nacional. Primeira loja abre em julho. A Pessoas esteve nos bastidores da Mercadona em Portugal.
Logo no primeiro dia começa-se a aprender um dicionário novo. Ali o “chefe” não é o patrão mas o cliente. Básico: é ele que manda. E João sabe isso do cor. Há três anos que repete o motto como uma oração.
“O que quer dizer prescrição? Quando vamos ao médico, o médico prescreve-nos uma receita. A Mercadona prescreve os melhores produtos para cobrir as necessidades dos nossos clientes. Nós assumimos a responsabilidade”, explica João Miranda, responsável do Centro de Coinovação de Matosinhos, enquanto serve dois cafés na enorme bancada da cozinha duplicada – sim, já lá vamos – do primeiro centro de coinovação em território nacional.
João coloca as duas chávenas lado a lado e, de seguida, retira dois paus de canela de dentro de duas embalagens diferentes, mergulhando-os um em cada uma. Enquanto conversa não antecipa nada. O café fumega, e cheira a cozinha de casa na cozinha industrial da Mercadona. Dois microondas, dois fornos, duas placas de indução, dois frigoríficos e duas fritadeiras. “Está tudo duplicado porque, ao fazer uma prova, se há mudanças que seja só o produto e não por fatores externos. Temos de testar os produtos com o mesmo tipo de cozedura, o mesmo tacho, a mesma quantidade de água. Tudo igual, para ser algo científico”, explica o responsável.
As mãos de João aproximam-se das chávenas de café. Com cuidado, retira os dois paus de canela e encosta-os à chávena, ainda quente. Um deles mantém-se igual. O outro desfaz-se. “Testámos canela nossa e de Espanha. À partida, iríamos usar a canela das lojas de Espanha e apenas traduzir a embalagem para português. Só que percebemos que usamos a canela para fins diferentes, e que o tipo de canela usada pelos chefes espanhóis não cumpre as necessidades do chefe português. O espanhol usa muito nos bolos, mas cá temos uma utilização muito importante: pôr o pau de canela no café. O pau espanhol amolece todo, desfaz-se. Não é que seja de má qualidade, mas é diferente”, explica o responsável. Este é o nível de detalhe a que vai a equipa fundadora da Mercadona em Portugal. “Para isso temos de ter uma equipa por trás que estuda, analisa, faz testes. Aqui trabalhamos 45 ‘especialistas’”.
Os especialistas são pessoas que se dedicam a uma área específica e a Mercadona tem vários em Portugal: em azeite, em refrescos, em atum. São eles os responsáveis pela prescrição das mais de 5.000 referências que as lojas da marca vão ter em Portugal, a partir de 2 de julho, dia previsto para a inauguração da primeira loja da rede, em Gaia. A partir daí e, até final do ano, a marca espanhola quer abrir mais nove lojas em Matosinhos, Vila Nova de Gaia, Maia, Gondomar, São João da Madeira, Porto, Barcelos, Ovar e Braga, que vêm juntar-se às 1.636 com que a empresa fechou 2018. Mas os números não ficam por aqui.
Fundada em 1977 por Juan Roig Alfonso – CEO da empresa desde 1981 -, a Mercadona conta atualmente com 85.800 trabalhadores, 300 dos quais são portugueses. O aumento no volume de compras a fornecedores portugueses também disparou no ano passado, em vésperas da estreia da cadeia de distribuição no mercado nacional. Em 2018, a Mercadona atingiu os 88 milhões de euros, uma subida em volume de compras de 40% em comparação com o ano anterior, totalizando desde o início do projeto 203 milhões de euros.
Quase três anos de testes para chegar às mais de 5.000 referências significam mais do que trabalho diário no centro de coinovação. Representam até convites mais… estranhos. João esqueceu-se do número de vezes em que perguntou: “Posso ir jantar a tua casa e levo o atum?” ou “o que achas deste tomate em cubos?”. O responsável garante que, nas redondezas do centro de coinovação, que fica nas traseiras da antiga conserveira Vasco da Gama onde, nos próximos meses, abrirá a loja da Mercadona de Matosinhos, não há ninguém que não tenha servido de “cobaia” em testes de produtos. Os testes foram tão comuns que nem o ginásio das redondezas escapou: o especialista do atum encontrou três atletas, consumidores habituais de atum em água, que fizeram as provas de bom grado. “Vamos captar clientes que achamos que são os enamorados, os apaixonados, pessoas que consomem muito o produto. E são essas as pessoas que vão dar-nos o melhor input. Se vamos escolher os produtos com base na maioria? Nem sempre. Se eu faço provas com 30 clientes mas, desses, os clientes que consomem de vez em quando não importam tanto. Quero alguém que consuma muito”, explica João. É na opinião desses “chefes apaixonados” que resultam os dados para a prescrição do especialista.
“O normal de um distribuidor é colocar, para uma solução, várias opções de um mesmo tipo de produto. Na Mercadona é diferente: o conceito de prescrição integra o prescrever o melhor produto”, descreve João. Mas não é só nisto que a Mercadona é diferente: é que a prescrição tem subjacente uma inversão do que as cadeias de distribuição fazem habitualmente. A escolha dos produtos é feita pelos responsáveis do departamento, com base numa lista de produtos pré-definida. Por outro lado, a Mercadona faz o processo inverso: analisa primeiro os gostos do “chefe” para depois, mediante as características pré-definidas como sendo “o melhor produto”, o especialista prescrever o “produto recomendado” e procurar um fornecedor que o produza, tal e qual as características definidas pelo chefe, senhor e dono das decisões.
“O que fizemos aqui? Este centro de coinovação é uma ferramenta, não é só o foco. Isto serve para eles poderem trabalhar, mas há muito trabalho fora daqui também. Onde é que vou captar hábitos e costumes de café? Bolos? A pastelarias, restaurantes. Esta malta está constantemente em trabalho fora daqui, e aqui”, descreve João.
Por cada trabalhador que a Mercadona recruta, a empresa faz um investimento de aproximadamente 50 mil euros. E não estamos a falar de salário mas de uma formação de aproximadamente 18 meses, desde a data em que entram até serem inseridos no trabalho para o qual foram contratados. “Como estratégia de desenvolvimento interno, a Mercadona investe muito na formação dos seus colaboradores, sendo um dos principais atributos oferecidos aos colaboradores nos sistemas de Compensações e Benefícios. Temos um modelo próprio de gestão, o Modelo de Qualidade Total e, por esse motivo, consideramos basilar que todos os colaboradores o conheçam, o interiorizem e o saibam aplicar no seu dia a dia”, explica Maria João Ferreira, diretora de recursos humanos da Mercadona em Portugal.
Mas, em que se baseia esse modelo? A ideia é que os colaboradores da Mercadona possam conhecer a empresa na totalidade, passando por todos os departamentos. “O nosso plano de formação inicial contempla um período de imersão em loja, para um contacto direto com o “Chefe” e, posteriormente, passam pelos diferentes departamentos da empresa”, descreve a responsável. Este caminho é feito, em paralelo, com um tutor, “uma espécie de coach, alguém com conhecimento mais alargado na função que o colaborador vai desempenhar”, acrescenta Maria João.
No caso de João, passou pelo “curso de diretivos”, que integra masterclasses com todos os diretores gerais da empresa e, a última, com o próprio presidente. “Faz com que uma pessoa da prescrição tenha contacto com os recursos humanos da empresa, com a logística e com todos os outros departamentos. Passo a estar dentro dos processos e a ter mais conhecimento do que tenho de fazer e o que tenho de ter em conta”, explica o responsável pelo centro de coinovação.
A empresa encontra-se, atualmente, a recrutar diferentes perfil, sobretudo direcionados para lojas e para o bloco logístico da Póvoa de Varzim. “Por outro lado, e conforme avança o projeto de expansão em Portugal, recrutamos igualmente para outros departamentos, como por exemplo Obras e Expansão, para o qual já começamos a lançar as ofertas de emprego para a zona centro do país”, anuncia.
A qualidade num pacote de guardanapos
Como responsável do único centro de coinovação em Portugal, João passou seis dos 18 meses de formação em loja. Tudo para saber como agradar ao “chefe”.
“Porque é que se chama chefe? Porque todos têm um poder de decisão da vida ou da morte da empresa. O velho conceito de que quem nos paga o salário é o chefe é totalmente verdade. Se ele decide ir à concorrência, perdemos um cliente. E esse conceito é mesmo importante. Normalmente, um distribuidor vai do fornecedor ao cliente. A grande diferença é que vamos do chefe ao fornecedor, o nosso modelo de inovação é o inverso”, esclarece João. A mensagem é semelhante, quer falemos com um funcionário de loja ou com o CEO.
"A qualidade é como um comboio a atravessar um túnel: o túnel nunca pode ser mais baixo ou mais alto em determinado momento, ou seja, a qualidade tem de ser sempre constante.”
Além de querer garantir a satisfação dos “chefes” – os clientes -, Juan Roig, presidente da Mercadona, assinalava na apresentação dos resultados da empresa a continuação dos esforços no projeto de transformação disruptiva iniciado há dois anos. “Todos nós, que formamos a Mercadona, estabelecemos para 2019 um desafio claro: perseguir um crescimento sustentável baseado na eficiência, diferenciação, sustentabilidade e inovação, com a determinação e humildade necessárias para corrigir os erros que cometeremos no caminho e para continuar a construir um projeto que as pessoas queiram que exista e que aposte no crescimento partilhado. Porque, como tive a oportunidade de ler no livro Capitalismo Consciente, ‘Da mesma forma que as pessoas não vivem só para comer, as empresas não existem apenas para fazer lucros; agora, as pessoas não podem viver sem comer e as empresas não podem viver sem lucros.’”
André Silva, diretor de comunicação da Mercadona em Portugal, dá como exemplo a metáfora usada muitas vezes pelo espanhol. “Costuma dizer que a qualidade é como um comboio a atravessar um túnel: o túnel nunca pode ser mais baixo ou mais alto em determinado momento, ou seja, a qualidade tem de ser sempre constante.
Somos obcecados pela qualidade e, se um pacote de guardanapos diz que tem 100 guardanapos, tem de ter os 100 guardanapos”, refere.
Como funciona o modelo de coinovação?
O primeiro passo para o modelo é fazer os “especialistas” compreenderem a importância dos “chefes”. São estes primeiros os responsáveis pelas funções mais importantes na hora de desenhar o “sortido” dos portugueses. As mais de 5.000 referências que estarão à venda nas lojas da Mercadona em Portugal, a partir de 2 de julho, são resultado da prescrição feita pelos especialistas com base nos perfis e gostos dos chefes, os clientes.
“A prescrição define os atributos do produto que queremos, passamos ao gerente de compras que vai trabalhar com o fornecedor para inovar e fabricar. Esta é que é a diferença”, explica João, responsável pelo centro de coinovação de Matosinhos, o único que existe em Portugal.
“O que fazemos aqui”, detalha João, “o grande trabalho de pesquisa a que cada um se dedicou vai dar origem ao sortido de Portugal, que reflete as necessidades dos portugueses que é o que temos realmente de ter nas nossas lojas. Nervosos? Que ideia”, brinca.
Uma coisa é certa: apesar da ansiedade, em Espanha, no ano passado, a taxa de inovação era de 80%, Ou seja, oito em cada dez produtos que entram para as lojas a partir deste processo de coinovação ficam pelo menos um ano na prateleira. E isso é considerado sucesso pela empresa, não fosse a média do setor de 24%. “O fator de sucesso das nossas marcas é que efetivamente trabalhamo-las muito antes de entrar no mercado. Hacia atrás”, justifica João Miranda.
Transparência salarial
O processo de recrutamento para a Mercadona em Portugal começou em junho de 2016, em simultâneo com o anúncio da entrada da cadeia de supermercados em Portugal. “Nessa primeira semana e, com um foco no recrutamento de quadros superiores, recebemos um elevado número de candidaturas que nos surpreendeu pelo impacto positivo que causámos na dinâmica do mercado de trabalho”, confessa Maria João Ferreira, diretora de recursos humanos da Mercadona em Portugal.
Se, numa primeira fase, os perfis procurados deveriam preencher cerca de 150 vagas nos departamentos de recursos humanos, compras, obras e expansão, relações externas ou coordenação de loja.
Além da contratação para os cargos de direção média – que, no caso, se focam em pessoas que tenham habilitações superiores – a empresa tem dedicado esforços às políticas de igualdade de género. A Mercadona definiu um Plano de Igualdade, também aplicado em Portugal, que assume a premissa “a mesma responsabilidade, o mesmo salário”, na mesma linha da nova lei de igualdade salarial que entrou em vigor a 21 de fevereiro. Além de salários iguais para a mesma função, a Mercadona tem uma política salarial transparente que permite a todos os colaboradores conhecerem os salários de todos. “Este mesmo Plano de Igualdade prevê que, independentemente do género, todos tenham acesso às mesmas oportunidades, quer de formação, quer de promoção interna. Eu própria sou um exemplo disso, uma vez que me incorporei na empresa nos primeiros processos de recrutamento e, posteriormente, foi-me dada a oportunidade de promoção para ascender ao cargo de diretora de recursos humanos”, explica Maria João Ferreira.
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Mercadona: Como o gigante espanhol está a montar operação em Portugal
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