A história de como os banqueiros usaram o nosso dinheiro, contada por Helena Garrido

Em entrevista ao ECO, Helena Garrido fala sobre o novo livro, onde avalia o uso que os banqueiros fizeram do nosso dinheiro. E como ele desapareceu.

Helena Garrido lança, esta terça-feira, o livro A Vida e a Morte dos Nossos Bancos, onde conta o percurso da banca portuguesa desde o final da década de 90 do século XX, para explicar a forma como os banqueiros fizeram uso do dinheiro dos seus clientes — e como esse dinheiro desapareceu.

Antes do lançamento, às 18h00, no El Corte Inglés, a jornalista, antiga diretora do Jornal de Negócios e agora colaboradora do ECO, antecipa algumas da questões abordadas no livro: a forma como o crédito produziu falsos milionários e poderosos e os responsáveis da última crise bancária que Portugal atravessou são duas delas.

A vida e a Morte dos Nossos Bancos, de Helena Garrido.
A Vida e a Morte dos Nossos Bancos, de Helena Garrido.

Olhar o passado com os olhos do passado

O desafio foi lançado a Helena Garrido por Francisco José Viegas, algures na primavera, e o objetivo era claro: escrever um livro sobre a banca onde se explicasse como é que os banqueiros usaram o nosso dinheiro, para onde foi esse dinheiro e como é que ele se perdeu. Lançado o mote, a jornalista fechou-se em casa e escreveu em tempo recorde para, em agosto, entregar o livro à editora. Pelo meio, muitas conversas com banqueiros — de quem, garante, houve abertura para falar –, gestores, economistas e estatísticos que ajudaram a perceber este caminho do dinheiro.

Helena Garrido, jornalista e autora do livro A Vida e a Morte dos Nossos Bancos.
Helena Garrido, jornalista e autora do livro A Vida e a Morte dos Nossos Bancos.Paula Nunes / ECO

“Cada um tem a sua perspetiva e o seu ponto de observação, todos eles válidos. Cada um, no sítio onde esteve, tem a sua maneira de ver aquilo que aconteceu. O meu objetivo com este livro foi cruzar as diversas visões daquilo que aconteceu na banca portuguesa”, explica ao ECO.

"Tentei não cometer o erro de olhar para o passado com os olhos do presente. No presente, temos informação que não tínhamos.”

Helena Garrido

Jornalista

Com uma restrição autoimposta: “Tentei não cometer o erro de olhar para o passado com os olhos do presente, porque, no presente, temos informação que não tínhamos quando foram tomadas aquelas decisões”.

Mas é verdade, também, que muitas dessas decisões foram contestadas e não faltaram alertas sobre os erros — sobretudo na concessão de crédito — que se estavam a cometer. “Foram erros levados ao exagero naquilo que designo como a fase da Grande Farra da dívida, que ocorre em finais da década de 90 do século passado, até à crise financeira. Só em plena crise financeira, em 2007, é que vemos que os banqueiros não tinham ainda a noção do maremoto financeiro que se avizinhava. Nessa altura, ainda não nos tínhamos apercebido que a era do crédito fácil e barato tinha acabado”.

O resultado? “Portugal e os banqueiros criaram milionários artificiais e banqueiros sem capital. O que nós tínhamos era um grupo de banqueiros, milionários, empresários, poderosos e políticos fabricados com crédito bancário“.

Primeiro, os banqueiros. Depois, todos nós

A hierarquia da responsabilidade das crises bancárias tem rei incontestável: os banqueiros. “Os primeiros de todos os responsáveis são os gestores da banca. São eles que têm de garantir a segurança dos nossos depósitos. Quando vamos a um restaurante e nos servem comida estragada, o primeiro responsável é o dono do restaurante. O primeiro responsável dos crimes que se cometem são os bandidos, não são os polícias, nem somos nós, cidadãos”, sublinha Helena Garrido.

Mas não são os únicos. Logo a seguir, vimos nós todos, cidadãos, “que nos desresponsabilizamos com alguma frequência”, uma ideia que a jornalista resume com uma citação de Jacob Scoll, em Ajuste de Contas: “para se alcançar a responsabilização financeira, tem de haver não só vontade política, mas também uma população atuante e financeiramente versada”. E a verdade é que “os próprios clientes pediram coisas impossíveis, e os banqueiros deram: crédito ou remunerações que não deveriam ter concedido”.

Terceiro, os governos, que “exigem coisas impossíveis” e envolvem os bancos em “projetos totalmente inviáveis, como parcerias público-privadas totalmente baseadas em financiamento e em crédito”.

Helena Garrido falou com banqueiros, economistas e estatísticos para escrever o livro A Vida e a Morte dos Nossos Bancos.
Helena Garrido falou com banqueiros, economistas e estatísticos para escrever o livro A Vida e a Morte dos Nossos Bancos.Paula Nunes / ECO

Quarto, a supervisão. “Os nossos supervisores fecharam os olhos a muitas coisas, ou tiveram de tomar decisões em função das circunstâncias. Ou, como aconteceu com todos os supervisores, mentiram-lhes e eles não foram capazes de identificar a mentira”. Qualquer que tenha sido a situação, a autora não acredita que tenhamos estado perante corrupção generalizada. “Obviamente que terão existido casos de corrupção. Houve casos de pessoas a ganhar milhões porque conseguiram, por exemplo, comprar um terreno que era reserva ecológica e depois, através de uma qualquer autarquia, convertê-lo em terreno urbano e os preços disparam”.

Mas isso não explica tudo. “As crises bancárias têm muito a ver, ao longo da história, com fases de euforia em que praticamente toda a gente fica cega e deslumbrada, em que se cria uma dinâmica de ambição, uma dinâmica de poderes, que desencadeia um conjunto de decisões que acabam por conduzir ao colapso bancário. É a ambição de dinheiro, ambição de poder, ganância e, no meio disto tudo, corrupção. Ninguém é imune”.

A responsabilidade dos jornalistas e o poder persuasivo de Salgado

Há um quinto e último “pilar de responsabilidade” que não é abordado no livro, mas que Helena Garrido reconhece que, em alguns momentos, também falhou: os jornalistas, sobretudo em Portugal, onde a “tradição de autocrítica” é pouca.

Muitas vezes, houve tentativas de alertar para os problemas, nomeadamente, ainda no final do século passado, com a subida muito acentuada da dívida. “Temos duas fases. Uma que vai até meados dos anos 90 do século XX, em que o crédito bancário sobe mas a economia também cresce. Ou seja, o financiamento estava a servir para se fazerem investimentos que tinham retorno e que se refletiam no crescimento da economia. A outra fase, a partir da passagem do milénio, é quando vemos o crédito a subir e a economia a estagnar”.

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Nesta altura, muitas peças jornalísticas alertaram para essa “dinâmica de endividamento”, mas a teoria vigente na altura determinava que não havia problema nesse tipo de endividamento, porque o país estava a endividar-se na própria moeda (já era a altura do euro) e porque “aquela dívida tinha como contrapartida a aquisição de imóveis, de casas, havia património, isto é, esperava-se que existisse retorno”. Assim, de um lado, “os jornalistas alertavam para a existência dessa dívida e, do outro, ouviam estas justificações”.

"Ricardo Salgado teve o poder de fazer acreditar que os cofres internacionais se abriam para ele”

Helena Garrido

Jornalista

Outros momentos houve em que os jornalistas falharam, e o Banco Espírito Santo pode ser exemplo disso. Mas há uma justificação: “Ricardo Salgado teve o poder de fazer acreditar que os cofres internacionais se abriam para ele. Teve esse poder junto dos jornalistas e junto do supervisor”.

No fim, “foram poucos os que detetaram os problemas, até porque havia muita poeira no ar, havia, paralelamente, uma guerra familiar e era difícil identificar se os problemas eram só financeiros, se eram de uma guerra familiar, se eram com a batalha que teve também na frente angolana”. Só que “a credibilidade [de Salgado] sobrepunha-se a isso tudo. Ricardo Salgado tinha uma capacidade de persuasão muito grande“, reconhece Helena Garrido.

Caixa, BCP, BES: o trio explosivo

Na análise feita ao longo do livro, é possível concluir que há um trio de bancos que se destacam sempre quando se fala de indicadores risco. Caixa Geral de Depósitos (CGD), Banco Espírito Santo (BES, agora Novo Banco) e BCP.

Os resultados de uma análise feita pelo Banco de Portugal em 2013, divulgados pela primeira vez no livro de Helena Garrido, revelam a exposição de milhares de milhões de euros que o BES, a CGD e o BCP tinham em crédito. A análise incide sobre a exposição dos oito maiores bancos portugueses a 12 grandes grupos empresariais, que tinham, em conjunto, 9 mil milhões de euros de créditos.

Nessa altura, o BES tinha uma exposição total de 2,8 mil milhões de euros, dos quais 1,2 mil milhões tinham sido emprestados a si próprio: ao Grupo Espírito Santo, para se ser mais preciso.

O BCP tinha uma exposição de 2,6 mil milhões aos 12 grandes, sendo a maior fatia, de 612 milhões, à Controlinveste (agora Global Media Group). E a CGD tinha um total de 2,5 mil milhões, dos quais 465 milhões à Artlant. Só depois vem o BPI, com uma exposição de 802 milhões de euros a estes 12 grupos empresariais.

Mais à frente, um gráfico das perdas dos bancos com os investimentos feitos em ativos financeiros, entre 2008 e 2015, volta a colocar o trio CGD-BES-BCP no topo. O banco público destaca-se, de longe, com perdas de 2,8 mil milhões; segue-se o BES, com perdas de 1,5 mil milhões, e o BCP, que já perdeu 1,1 mil milhões com os investimentos que fez na Bolsa.

Outra análise, às imparidades com crédito, mostra ainda que o BCP já perdeu 7,6 mil milhões desta forma; o BES 6,8 mil milhões (estas imparidades passam para o Novo Banco); e a CGD 5,3 mil milhões.

A estabilização do sistema financeiro?

São “tempos improváveis”, aqueles que a banca vive. A CGD vai passar por um processo de recapitalização, o BPI passa por uma OPA, o BCP está em plena recomposição acionista, o Novo Banco vai (tem de) ser vendido. O que espera Helena Garrido para os próximos tempos?

“O que me parece é que estamos mais perto de estabilizar o sistema financeiro do que estivemos no passado recente“, diz. O BPI, por exemplo, já está “em processo de resolução”.

O BCP, por seu lado, “que tem uma herança muito pesada dos erros que foram cometidos no passado”, poderá “encontrar acionistas com dinheiro, que possam capitalizar o banco”, o que é “muito positivo”.

E a CGD, apesar de um processo de nomeação da nova administração que correu “politicamente tão mal”, tem um presidente “com provas dadas”, que já desenhou “um modelo de capitalização que não entra nos processos de ajudas de Estado e que, por isso, a protege da Direção Geral da Concorrência”.

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