Costa podia legalmente pôr um Decreto na gaveta?
O primeiro-ministro diz que negociações com a Comissão Europeia atrasaram a publicação do Decreto-lei já promulgado. Mas um Governo pode atrasar ou impedir a publicação após a promulgação pelo PR?
O Decreto-lei que altera o estatuto do gestor público e que serviria para isentar António Domingues e a sua equipa de entregar declarações de rendimentos ao Tribunal Constitucional foi promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa a 21 de junho, mas só foi publicado a 28 de julho, mais de um mês depois.
No seu espaço de comentário de domingo à noite na SIC, Luís Marques Mendes afirmou que o Governo adiara a publicação para coincidir com o início das férias da Assembleia da República, para “diminuir o risco de os deputados se aperceberem”. António Costa rejeita essa acusação, que considera resultado de “um espírito criativo de ficção policial”, e oferece outra explicação: as negociações com a Comissão Europeia acerca da Caixa Geral de Depósitos obrigaram a atrasar a publicação do diploma.
“Estávamos na altura em plena fase de conclusão das negociações com a Comissão Europeia sobre o processo de recapitalização. Havia várias parcelas, uma tinha a ver com o estatuto do gestor público, outra com a possibilidade de capitalização. Em julho chegámos a uma fase decisiva em que houve acordo quanto ao desenho do sistema”, afirmou.
Mas será que o primeiro-ministro tem o poder de atrasar a publicação de um Decreto-lei que já foi promulgado pelo Presidente da República? E se as negociações com a Comissão Europeia não tivessem chegado a bom porto, poderia o Governo impedir a publicação do Decreto-lei?
Os constitucionalistas consultados pelo ECO não estão de acordo acerca das respostas a esta questão. De um lado, Tiago Duarte, da PLMJ, que afirma que “a Constituição não dá resposta”. Do outro, Domingos Farinho, que considera que a resposta “é bastante clara”.
O que diz afinal a Constituição?
“Não está previsto um período de tempo definido para o Governo enviar para publicação um Decreto que já tenha sido promulgado pelo Presidente. Até porque desde logo há uma parte do processo que o Governo não controla, que é o tempo que a Imprensa Nacional Casa da Moeda leva para publicar”, afirma Tiago Duarte. “Depois de o Presidente promulgar, o Governo ainda tem de referendar”, ou seja, é necessária uma espécie de visto do primeiro-ministro, para o Decreto-lei poder ser enviado para publicação, e a Constituição “é omissa” em relação à existência de uma janela de tempo para o fazer.
“Não é vulgar demorar um mês, mas não afeta a validade do decreto-lei”, explica o constitucionalista ao ECO. “Contudo podem retirar-se ilações políticas do facto”. E o Governo pode impedir completamente a publicação de um Decreto-lei após ele já ter sido promulgado? Para o constitucionalista, é possível porque a Constituição “não dá resposta”. E se o Decreto-lei é do Governo, “é o Governo que tem o controlo. Ninguém o poderia obrigar a publicar se não o quisesse”.
Para Domingos Farinho, constitucionalista na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a resposta é a contrária. O Governo pode atrasar ou impedir a publicação de um Decreto-lei promulgado? “A resposta é negativa em ambos os casos. Isso é bastante claro”, esclarece ao ECO.
O perito admite, como Tiago Duarte, a possibilidade de um atraso “por razões técnicas, o que é muito comum”, no processo da publicação em Diário da República. Mas sublinha que é preciso distinguir este atraso técnico de uma motivação política. Para Domingos Farinho, o Governo não pode atrasar a publicação de um Decreto-lei que o Presidente da República já promulgou. “Não há nenhum ato de controlo político do primeiro-ministro” sobre a publicação de um Decreto-lei, assinala.
Então e a referenda ministerial de que falava Tiago Duarte — o “visto” do primeiro-ministro? Para Domingos Farinho, a Constituição refere-a como um “pro forma“, numa norma “muito lacónica”. Trata-se apenas de validar que o processo legislativo correu normalmente, de acordo com os procedimentos legais previstos, e não pode deixar de ser feita a não ser que haja algo no Decreto-lei que seja “manifestamente contra a Constituição”. O constitucionalista reconheceu, no entanto, não se lembrar de nenhum caso em que tal tenha acontecido.
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