Alegadas demolições ilegais obrigam a proteger prédio de Nadir Afonso
É um dos poucos edifícios projetados pelo transmontano e a Direção-Geral da Cultura e Património abriu hoje o processo de classificação, mas muitos elementos distintivos foram já destruídos.
Foi através das redes sociais que a Câmara Municipal de Vila Real tomou conhecimento das denúncias de alegadas demolições que estariam a acontecer na Panificadora, um dos únicos edifícios projetados pelo artista transmontano Nadir Afonso.
Devoluto há décadas, o edifício estava a ser usado por toxicodependentes e pessoas sem-abrigo, mas estava em curso uma proposta para o proteger junto da Direção-Geral do Património e Cultura (DGPC), quando a partir de sábado começaram a chegar relatos da destruição de alguns dos seus elementos mais característicos. Esta terça-feira, a DGPC decidiu iniciar o processo de classificação “atendendo às denúncias recentes de destruição do edifício”, mas ainda vai a tempo?
A história é mais bem contada pela vila realense Ana Luísa Morgado, cuja tese de mestrado na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa teve como tema a Panificadora de Vila Real, e deu origem à candidatura para que o edifício passasse a ser um Imóvel de Interesse Público.
Nadir Afonso, que morreu em 2013, focou-se mais na pintura mas era arquiteto de formação e, além de outros projetos, é o pai de duas panificadoras, uma em Chaves, a sua terra natal, e outra em Vila Real. Enquanto arquiteto, estagiou com Oscar Niemeyer e Le Corbusier, dois dos mais influentes da época. Ana Luísa Morgado, ao estudar a Panificadora de Vila Real juntamente com os seus orientadores na Universidade de Lisboa, decidiu criar uma candidatura a Imóvel de Interesse Público, a entregar à DGPC, que recolheu assinaturas que incluem a de Álvaro Siza Vieira.
Desde que entregou essa candidatura, a 12 de maio de 2016, Ana Luísa Morgado tem visto uma degradação crescente da Panificadora. “Em novembro tive de voltar lá”, conta ao ECO. “Tinham demolido uma parte da fachada nordeste. Onde havia uma porta, estava toda destruída, e parecia mesmo que tinha sido com uma retroescavadora”. E algumas das partes mais icónicas do edifício tinham desaparecido. “O forno estava lá, mas o painel de azulejo e o tijolo de burro que revestiam estavam no chão”, recorda. E a cobertura abobadada “que, em março estava em condições, estava destruída”.
Os relatos deste fim de semana, porém, são os mais flagrantes. Grande parte da fachada da Panificadora, que era uma das facetas mais importantes e mais marcantes do edifício, tinha sido demolida. “Desapareceu todo o envidraçado da fachada principal”, incluindo as suas caixilharias de betão armado, refere Ana Luísa Morgado. O quadriculado vermelho e branco faz parte do rosto da Panificadora, mesmo nos anos em que tem estado devoluta, e os caixilhos de betão são específicos deste edifício.
Para Ana Luísa Morgado, o momento do desaparecimento destas características especiais do edifício, que o favoreceriam para uma classificação como Imóvel de Interesse Público e o protegeriam de ser demolido ou alterado, é suspeito. “Coincidir com as semanas da decisão final” da DGCP sobre se iria considerar o processo faz a jovem pensar que “as coisas não acontecem por acaso”.
A Panificadora é um edifício privado, que já é detido há 17 anos por José Meireles. O ECO tentou contactar o proprietário, mas não obteve resposta. À agência Lusa, José Meireles disse não ser responsável pelas demolições. “O meu conhecimento é que já não é a primeira vez que entram lá máquinas e que destruíram já tudo, também por dentro, e roubaram tudo o que havia lá de valor”, disse à agência noticiosa. “Já há três anos que não entro lá e não faço a mínima ideia de como aquilo está”.
DGPC abriu hoje processo de classificação
Em comunicado, a Direção-Geral do Património Cultural anunciou que abriu esta terça-feira, o procedimento de classificação da Panificadora. “Atendendo às denúncias recentes de destruição do edifício, a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, avocou a decisão por forma a impedir danos continuados no imóvel em vias de classificação”, lê-se nesse comunicado.
De acordo com a DGPC, cabe agora à Câmara Municipal certificar-se de que não são feitas mais intervenções no edifício enquanto não houver um parecer da DGPC. Ao ECO, o vereador Adriano Sousa, que entre outros pelouros detém o do urbanismo, explicou que a Câmara Municipal de Vila Real ainda não foi notificada pelo órgão, mas que quando tomou conhecimento das denúncias de demolições enviou ao local uma equipa de fiscalização.
“Ainda não me chegou o relatório da fiscalização, e não sei o que a fiscalização apurou: se foi um aluimento, se alguém fez lá uma intervenção…”, disse o vereador. Reconheceu, porém, que qualquer demolição seria ilegal sem autorização municipal. “Nenhum proprietário pode demolir o que quer que seja sem autorização da Câmara Municipal de Vila Real”, afirmou, “e não tivemos qualquer pedido de demolição para aquele imóvel”.
Mas porque vale a pena manter a Panificadora de Vila Real? O arquiteto vila realense Vitório Leite, da Merooficina, explicou ao ECO que “tem algum poder simbólico, o edifício, por ser um dos poucos projetados por Nadir Afonso. É um dos mais importantes artistas do país, e daquela região então é possível que seja o mais importante”.
O escritório de arquitetos Merooficina, de Vitório Leite e Catarina Ribeiro, foi o vencedor de um concurso de ideias lançado pela Câmara Municipal de Vila Real para uma reabilitação da Panificadora. “As características mais peculiares são as coberturas abobadadas e as entradas de luz que permitem, e alguns elementos como a caixilharia em betão”, afirmou. O concursos de ideias do município, sabe o ECO, serviria apenas para atrair a atenção de possíveis compradores para o edifício que o pudessem reabilitar aproveitando algum dos projetos submetidos, um dos quais era o de Vitório Leite e Catarina Ribeiro.
“A ideia da recuperação do edifício era tentar preservar ao máximo as suas características, mesmo aplicando materiais que existiam, recuperar caixilharias e coberturas, e introduzir algumas estruturas para um mercado gastronómico para aquela zona da cidade, que tem habitação e outros pontos de interesse, mas não tem nenhum mercado”, explica Vitório Leite ao ECO. Contudo, a proposta nunca passou disso mesmo: uma proposta.
Questionado sobre se o desaparecimento, alegadamente através de demolição ilegal, de algumas das características mais emblemáticas do edifício poderia pôr em risco a recuperação da Panificadora ou a sua classificação como Imóvel de Interesse Público, Vitório Leite não hesita: “Isso era o que eles queriam”. Há muitas características que se mantêm, afirma, além de haver esboços e registos de como o edifício era anteriormente. “Ainda vamos a tempo, e não será difícil”, reconhece, até porque “não são materiais muito caros, nem muito trabalhados, nem são coisas que não se possam facilmente repetir”.
Falta saber se o edifício ficará em pé. “A nossa questão agora tem sido quando é que a torre vai abaixo”, teme Ana Luísa Morgado. “Se vai ser hoje, se vai ser amanhã…”. A decisão atempada da DGCP poderá ser o travão que fazia falta.
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