Miguel Lobo Antunes: “Podia ir para qualquer coisa, menos para medicina”
Jurista de formação, a cultura chegou para trilhar um percurso que acabou vasto e único na programação artística. Direito e Cultura. Miguel Lobo Antunes, hoje na reforma, conta a sua história.
Jurista de formação, a cultura chegou, não por acaso, mas sem esperar, a trilhar um percurso que acabou vasto e único na programação artística. Direito e Cultura. A biblioteca do Tribunal Constitucional como porto de abrigo. Os amigos — e os convites — pelo meio. Miguel Lobo Antunes, hoje na reforma, é os livros e os discos que enchem a sua sala, a sua própria biblioteca. É o estudar e o escrever, aquilo de que sempre gostou, em tudo o muito que sempre fez.
A luz vem da janela esquerda com vista alta para os meandros de Benfica, o bairro de sempre de Miguel Lobo Antunes, que fala do início, quando nos seus 15 anos teve de decidir o curso que seguiria. “O meu pai costumava dizer que não autorizava que filho dele fosse para Direito”, diz, relembrando a brincadeira, sobre um curso que naquele tempo tinha muitas saídas possíveis. Um pouco indeciso, e bom aluno tanto a letras como a ciências, tinha apenas uma certeza: “podia ir para qualquer coisa menos para medicina, para medicina não queria ir”. Então Direito tornou-se no caminho viável e a contradição numa família de médicos. “Como não tinha uma vocação definida, o curso dava-me a possibilidade de fazer diversas coisas na vida”.
Tive de ir para a tropa, interrompi o estágio e nunca mais acabei. Nunca cheguei a ir para a Ordem, a não ser como estagiário. Não queria ser advogado. Nunca quis exercer. Só a palavra “cliente” me fazia confusão, não me sentia à vontade.
E assim foi. Tirou-o entre 1965 e 1972, em pleno Estado Novo. A falta de liberdade pautava um ambiente que Lobo Antunes descreve como “austero, repressivo, autoritário e perigoso para quem contestava”, sob a constante vigília de informadores da PIDE e colegas que eram presos, por serem militantes de partidos políticos clandestinos, como o PCP. “Sentia-se permanentemente quer a presença do estado policial quer a enorme dificuldade em lutar-se contra um sistema de ensino que era completamente obsoleto. Havia um regime de disciplina abafante, que criava grande dificuldade na contestação sobre aquilo que estávamos a fazer, quer a nível pedagógico quer com a vida académica”, conta, que em jovem “não se limitou a estudar”, e esteve ligado a atividades fora das aulas, chegando mesmo a ser Presidente da Associação Académica.
Um percurso um pouco “esdrúxulo”
Findo o Direito e Miguel Lobo Antunes começa um percurso que viria a ser, segundo o próprio, um pouco esdrúxulo. Começou a trabalhar em 1970 num escritório de propriedade industrial, esteve depois na Caixa Nacional de Pensões. Chegou a começar um estágio em direito que nunca terminou. “Tive de ir para a tropa, interrompi o estágio e nunca mais acabei. Nunca cheguei a ir para a Ordem, a não ser como estagiário. Não queria ser advogado. Nunca quis exercer. Só a palavra “cliente” me fazia confusão, não me sentia à vontade”.
Aos 25 anos fez então a tropa. E foi durante a tropa que se deu o 25 de abril. Já estava casado. Na Constituição de 1976 ficou previsto um órgão chamado Comissão Constitucional, que funcionava junto do Conselho de Revolução. Seria aquilo que mais tarde se viria a chamar Tribunal Constitucional. “Era um órgão muito especial, porque era uma espécie de tribunal, havia recursos do tribunal para aquele órgão, e por outro lado era um órgão de aconselhamento do Conselho de Revolução para questões de constitucionalidade das leis. Era dirigido por Ernesto Melo Antunes, que era amigo do meu irmão António e por quem eu nutria uma enorme admiração e com quem gostava de trabalhar”, revela. O irmão António falou com Melo Antunes, que disse que não precisavam de ninguém, mas que iam começar ali uma biblioteca.
E foi assim, eu fui para a biblioteca da Comissão Constitucional. Na altura não tinha nada, fui formando a biblioteca. Ajudava os membros da Comissão Constitucional a fazer as suas decisões. Foi o meu lugar de sempre, o meu lugar mais estável. Quase toda a minha vida profissional partiu daí, fui fazendo outras coisas em paralelo, que ia acumulando com a biblioteca. Ou saía durante um período. Mas era sempre um porto de abrigo, digamos assim. Estive lá desde 1983 até 2004.
“E foi assim, eu fui para a biblioteca da Comissão Constitucional. Na altura não tinha nada, fui formando a biblioteca. Ajudava os membros da Comissão Constitucional a fazer as suas decisões. Foi o meu lugar de sempre, o meu lugar mais estável. Quase toda a minha vida profissional partiu daí, fui fazendo outras coisas em paralelo, que ia acumulando com a biblioteca. Ou saía durante um período. Mas era sempre um porto de abrigo, digamos assim. Estive lá desde 1983 até 2004”.
O direito como veículo para a cultura. O CCB e a Culturgest
Durante esse período, Lobo Antunes foi e fez muita coisa, que lhe abriu as portas para a área da cultura e a programação artística, mas sempre com direito pelo meio. Entre artigos académicos sobre ciência política, a dar os seus primeiros passos em Portugal na década de 80, passou pela direção do Instituto Português do Cinema entre 83 e 85, foi programador, pela primeira vez, de cinema e animação para a Europália de 1991 e assessor jurídico da Lisboa 94, a primeira capital da cultura europeia.
“Fora das horas de trabalho da biblioteca, fazia contratos, tudo e mais alguma coisa a nível jurídico. Foi muito bom para mim porque estive a absorver desde espetáculos de dança, música, teatro… Deu-me uma visão, a partir do direito e das conversas que tinha com as pessoas, e um conhecimento muito vasto de como era a atividade cultural”. Era chefe de gabinete do ministro da Ciência e da Tecnologia, Mariano Gago, entre 1995 e 1996, quando surgiu o convite para a direção do CCB.
“Quando Guterres ganha as eleições fui para chefe de gabinete de Mariano Gago, que era meu amigo. Aquele ministério não tinha secretário de Estado, então fui para chefe de gabinete ajudá-lo a fazer a lei orgânica do ministério. Entretanto o Manuel Carrilho, na altura ministro da Cultura, quis mexer no CCB e mudar a administração e convidou-me. E o Mariano disse “só sais depois de fazer a lei orgânica”. Portanto, os meus colegas entraram todos primeiro do que eu, que ainda estive um mês para entrar no CCB”, conta.
Gostei muito de estar no CCB como gostei muito de estar na Culturgest. Era um ritmo muito stressante, um trabalho muito intenso, que me preenchia, mas eu tinha um péssimo feitio. No sentido em que para os trabalhos que gosto de fazer fico nervosíssimo, e cheio de ansiedade. Mas são esses os que mais gozo me dão fazer, os que me realizam mais, porque tenho que me esforçar. Gostava muito, por um lado, e sofria muito, por outro.
Lobo Antunes aceitou e quatro anos depois, em 2000, levou a avante o festival Dias da Música, de conceção francesa e uma estreia em Portugal. “Foi uma produção muito arriscada na altura, era uma coisa completamente nova no país. Foram 70 e tal concertos e 30 mil bilhetes, tudo num fim de semana. Música clássica, Bach… Que não era propriamente um compositor romântico… Era preciso fazer uma promoção muito grande. Eu nunca dava entrevistas nem aparecia em parte nenhuma, mas aqui foi indispensável, por isso disse aos meus colegas: “olhem, agora eu vou ter que aparecer, porque isto é mesmo uma aposta muito grande”. E nessa altura é que apareci e ganhei visibilidade”.
Com uma saída em grande do Centro Cultural de Belém, que ainda o levou a dirigir o Festival Internacional de Música de Mafra, lança-se para a Culturgest, mais uma vez por convite, onde assume as mesmas funções do CCB: as de administrador e programador cultural, onde esteve até se reformar em setembro passado. “Gostei muito de estar no CCB como gostei muito de estar na Culturgest. Era um ritmo muito stressante, um trabalho muito intenso, que me preenchia, mas eu tinha um péssimo feitio. No sentido em que para os trabalhos que gosto de fazer fico nervosíssimo, e cheio de ansiedade. Mas são esses os que mais gozo me dão fazer, os que me realizam mais, porque tenho que me esforçar. Gostava muito, por um lado, e sofria muito, por outro”.
E o direito, foi um bom ponto de partida? “Ao longo desta vida toda, e refiro-me apenas ao meu percurso cultural, o facto de ser formado em direito ajudou-me por ter competências extra. Foi sempre uma vantagem nos sítios onde estive. Por isso, acabei por estar sempre ligado mais ou menos intensamente ao direito”. Um curso de que não gostou muito, mas que na prática lhe deu asas para fazer aquilo de que mais gostava: estudar e escrever.
Chegamos ao fim e o sol que irrompia na sala começa a esconder-se. Lobo Antunes fixa a janela de vez em quando. Com a reforma, os dias são mais calmos. Traçado o cronos de um percurso rico, quando questionado sobre se este o preencheu, encolhe os ombros e desvaloriza. “Sei lá. Fiz coisas que gostei de fazer. Olhando para trás, posso dizer que fiz muita coisa diferente. Nesse sentido, tenho uma vida cheia. Há pessoas que chegam ao fim e dizem ter tido uma vida do caraças. Eu não tenho essa convicção, esse convencimento. Não estou convencido de que aquilo que fiz fosse muito bom”.
A autocrítica é uma constante? “Que é que eu hei de fazer… Sou assim, nasci assim, nunca estou contente com o que faço. Acho sempre que poderia ter feito melhor, mas quando as pessoas me dizem: “Não! Foste bestial, fizeste bem”, então fico mais contente. Mas, por mim, não tenho a sensação de ter feito nada de especial”. Talvez agora? “Agora não, estou no final da vida. Agora o que é que eu tenho mais para fazer?”.
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