BRANDS' ADVOCATUS Os deveres de prevenção do branqueamento, os advogados e a autorregulação da advocacia
Ana Rita Duarte Campos, advogada e sócia da Abreu Advogados, explica o contexto do cumprimento dos deveres de prevenção do branqueamento de capitais.
A inclusão dos advogados no círculo de entidades sujeitas aos deveres de prevenção do branqueamento remonta à Lei n.º 11/2004, de 27 de março, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva n.º 2001/97/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de dezembro.
Apesar de tal Diretiva não ter qualificado expressamente as Ordens Profissionais – designadamente, as Ordens dos Advogados europeias – como “entidades competentes” para efeitos de “luta contra o branqueamento”, o que é certo é que, materialmente, não deixou de tratá-las como tal, em razão da função auto-reguladora que reconheceu a tais organismos, incluindo em matéria de prevenção do branqueamento.
A Diretiva n.º 2001/97/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de dezembro, na segunda parte do seu considerando (20) deixou, todavia, uma ampla margem de discricionariedade aos Estados-Membros, no que dizia respeito à forma como as Ordens dos Advogados deveriam gerir as notificações às autoridades responsáveis pela luta contra o branqueamento, na sequência do que apurassem, fosse no exercício dos seus poderes de fiscalização ou na sequência de reporte de situações de potencial risco de branqueamento por parte dos seus associados. Todavia, encontrava-se enfatizado, na primeira parte desse mesmo considerando, que as Ordens dos Advogados deveriam ser as entidades a quem, em primeira instância, os advogados deveriam reportar situações de suspeita de branqueamento.
A Lei n.º 11/2004, de 27 de março dispôs apenas sobre os poderes de fiscalização da Ordem dos Advogados, em matéria de cumprimento dos deveres de prevenção do branqueamento por parte dos advogados, nada tendo previsto relativamente ao procedimento a ser seguido nas situações em que os advogados tivessem de reportar uma suspeita de branqueamento.
"O Bastonário não pode ter o papel de mera correia de transmissão “imediata e sem filtragem” às autoridades judiciárias.”
Foi apenas com a entrada em vigor da Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho que tais questões foram objeto de previsão legal expressa, no seu artigo 35.º, n.º 1, onde passou a prever-se que: “[n]o cumprimento do dever de comunicação previsto no artigo 16.º, os advogados e os solicitadores comunicam as operações suspeitas, respetivamente, ao Bastonário da Ordem dos Advogados e ao presidente da Câmara dos Solicitadores, cabendo a estas entidades a comunicação, pronta e sem filtragem, ao Procurador-Geral da República e à Unidade de Informação Financeira, sem prejuízo do disposto no número seguinte.”
Tal solução legal foi adoptada sete anos após a Diretiva n.º 2001/97/CE, derivando diretamente do seu artigo 23.º, n.º 1, não obstante este último ter aplicação – de forma indiscriminada – a todos os organismos reguladores de entidades obrigadas e não, especificamente, às Ordens dos Advogados, tendo passado, posteriormente, para o artigo 79.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 83/2017, de 18 de Agosto.
De acordo com a Proposta de Lei n.º 16/XIV, da Presidência do Conselho de Ministros, que já foi aprovada na generalidade, serão introduzidas algumas alterações ao artigo 79.º, da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, sendo uma delas da maior relevância: passará a prever-se, no artigo 79.º, n.º 3, que “[a]s obrigações de comunicação ou de prestação de informação, de forma pronta e sem filtragem, a que se referem os números anteriores, não prejudicam a verificação, pela respetiva ordem profissional, de que as comunicações a efetuar ou as informações a prestar estão fora das situações previstas no n.º 1 e se enquadram nas operações constantes do n.º 2 do artigo 4.º.”
Esta alteração legislativa, sendo de saudar em tempos em que tudo parece estar confundido, não introduz, em meu entender, uma solução legal inovatória, vindo apenas esclarecer aquilo que, pelo menos para mim, já era óbvio em face do disposto no artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, da Directiva 2005/60/CE: é que o Bastonário não pode ter o papel de mera correia de transmissão “imediata e sem filtragem” às autoridades judiciárias, precisamente porque dessas disposições da Directiva decorre que tal dever de cooperação não prescinde da observância das regras vigentes em cada Estado-Membro, em matéria de segredo profissional, observância essa que integra um poder auto-regulado e privativo da Ordem dos Advogados.
No dia 6 de dezembro de 2012, e numa altura em que os Tribunais Comunitários já tinham proferido inúmeras decisões acerca da relação entre o segredo profissional e os deveres de cooperação dos advogados em matéria de prevenção do branqueamento, afastando a violação dos artigos 6.º e 8.º, da Convenção, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (então, do Homem) proferiu decisão no célebre caso Michaud v. France, onde, replicando as alegações do Estado Francês, concluiu que: “(…) the legislation has introduced a filter which protects professional privilege: lawyers do not transmit reports directly to the FIU but, as appropriate, to the President of the Bar Council of the Conseil d’Etat and the Court of Cassation or to the Chairman of the Bar of which the lawyer is a member. It can be considered that at this stage, when a lawyer shares information with a fellow professional who is not only subject to the same rules of conduct but also elected by his or her peers to uphold them, professional privilege has not been breached. The fellow professional concerned, who is better placed than anybody to determine which information is covered by lawyer-client privilege and which is not, transmits the report of suspicions to the FIU only after having ascertained that the conditions laid down by Article L. 561-3 of the Monetary and Financial Code have been met.”
Fica, a esta luz, claro o sentido dos considerandos (9) e (39) da Diretiva (UE) n.º 2015/849, especialmente deste último, onde se referia, entre o mais, que : “(…) um sistema de notificação em primeira instância a um organismo de autorregulação constitui uma salvaguarda importante de protecção dos direitos fundamentais no que diz respeito às obrigações de comunicação aplicáveis aos advogados”.
"A função autorreguladora das Ordens dos Advogados europeias é a marca de água da sua génese, traduzindo aquela que é uma condição essencial para que o exercício da advocacia seja independente dos poderes públicos e privados e cumpra a garantia constitucional a que está vinculada.”
Sendo a Ordem dos Advogados a entidade – única, sem prejuízo do disposto no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal – com competência legal para aferir da existência ou não de segredo profissional e para, excecionalmente, poder dispensar os advogados do mesmo, a intervenção do Bastonário da Ordem dos Advogados, mesmo em face do artigo 35.º, da Lei n.º 25/2008, de 26 de Junho, não podia ser reduzida à função de mera “correia de transmissão”, mas, outrossim, à de verdadeiro “gatekeeper”, na análise sobre se, num determinado caso concreto, as situações reportadas pelos advogados estavam ou não excluídas da tutela do segredo profissional.
A tutela do segredo profissional inscreve-se no espaço de auto-regulação da advocacia que é reservado à Ordem dos Advogados. Isto é, para além das normas estatutárias, que estão vertidas numa Lei Geral da República, compete à Ordem dos Advogados determinar o procedimento e as condições de aferição da existência de segredo profissional e da sua excepcional dispensa. E por muito boas razões isto é assim. Pense-se, por exemplo, que, após a intervenção do Bastonário num pedido de dispensa de segredo profissional, inexiste, em caso de indeferimento, recurso para os Tribunais, o que não pode deixar de significar que os segredos profissionais da advocacia, mesmo quando um advogado os queira revelar, seguindo para isso as regras para a sua dispensa, não saem dos muros da casa dela se o Bastonário se opuser à respetiva revelação.
A função autorreguladora das Ordens dos Advogados europeias é a marca de água da sua génese, traduzindo aquela que é uma condição essencial para que o exercício da advocacia seja independente dos poderes públicos e privados e cumpra a garantia constitucional a que está vinculada. É esta circunstância que, em meu entender, continua a justificar a existência da Ordem dos Advogados e a sua inclusão na administração indirecta do Estado, dotada de autonomia regulatória, a qual se exerce não só no plano do poder regulamentar do exercício da advocacia e das condições de acesso ao mesmo, mas, igualmente, no poder de punir disciplinarmente os seus associados.
Esta função da Ordem dos Advogados teve a 30 de junho de 2020 uma manifestação relevante, tendo sido que, no seu artigo 13.º, expressamente reconhece, na esteira do projecto de Regulamento publicado pelo anterior Conselho Geral, que o Bastonário da Ordem dos Advogados terá a função que a auto-regulação da advocacia e a sua função constitucional reclamam. Como dizem as Directivas, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e – parece – dirá em breve o legislador nacional.
Às vezes, é preciso dizer o óbvio. O que se andou para aqui se chegar.
Aprenda mais sobre esta matéria na formação online “Branqueamento de capitais e os deveres específicos dos advogados, agentes de execução e solicitadores”, no próximo dia 7 de julho.
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