Subida dos apoios sociais obriga a retificativo? Só as Finanças sabem
É mais um braço de ferro entre o Governo e a AR por causa da polémica norma-travão da Constituição. Especialistas em finanças públicas dizem que só os Finanças sabem se viola ou não teto da despesa.
A norma-travão da Constituição da República Portuguesa é dos pedaços de legislação que mais fricção causa entre o Governo e o Parlamento. O tema ganhou importância nos últimos anos uma vez que o Governo é minoritário e que se formam geometrias variáveis da Assembleia da República quando a esquerda e a direita se unem contra o PS. O tema voltou outra vez a estar em cima da mesa com a aprovação de alterações aos apoios sociais que vão implicar mais despesa pública. Os especialistas em finanças públicas dizem ao ECO que só o Ministério das Finanças tem a informação necessária para dizer se há ou não cabimento orçamental e que, no final das contas, a decisão é política.
“Não há seguramente uma resposta económica objetiva para a questão que colocou“, responde Rui Nuno Baleiras, coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), ao ECO, quando questionado sobre se a alteração dos três diplomas — a principal mudança é a fórmula de cálculo do apoio dirigido aos trabalhadores independentes, o qual aumentaria — por parte dos deputados viola a norma-travão e se, violando, obrigará a um Orçamento Retificativo. O especialista em finanças públicas considera que a “chave” para esta questão está na interpretação da palavra “previstas” definida na norma-travão.
Já Paulo Trigo Pereira, ex-deputado do PS e especialista em finanças públicas, diz ao ECO que se trata de uma “clara violação da norma-travão”, a qual “não tem sido levada a sério em Portugal, nomeadamente pelos parlamentares”, e que é um dos fatores que explica as sucessivas crises das finanças públicas no país. Para o professor do ISEG, há inconstitucionalidade independentemente de ter ou não cabimento orçamental. Quanto a isso, “poderá haver margem, mas tem de ser visto com a globalidade do Orçamento” pelo Ministério das Finanças. “O exercício orçamental é sempre muito complexo e muito abrangente”, argumenta.
A Constituição define que “os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento“. As previsões são feitas logo quando o Governo entrega a proposta de Orçamento no Parlamento e, mesmo com a introdução de novas alterações durante a fase de especialidade, os tetos de despesa não costumam ser aumentados ou reduzidos.
Ou seja, presume-se que o Executivo parte para o processo com uma folga, apesar de esta não ser pública. “Saber se a norma-travão é violada ou não ex ante [antes da aplicação do que é aprovado pela AR] exige um domínio de informação que não está disponível“, argumenta Rui Nuno Baleiras, assinalando que só as Finanças podem chegar à resposta — o Expresso noticiou que o Governo estima um custo mensal de 38 milhões de euros com as alterações relativas ao apoio dos trabalhadores independentes. Além disso, em última análise, o coordenador da UTAO considera que a questão é se existe ou não “vontade política” para executar estas medidas de política, admitindo que existem custos de oportunidade, seja descartar outras despesas ou ter um défice maior do que o estimado.
Porém, Trigo Pereira considera que não há dúvidas de que se trata de uma violação da norma-travão dado que a alteração à lei vai aumentar a despesa pública face ao legislado no OE 2021, tal como o Presidente da República admite na justificação da promulgação. A interpretação de Marcelo “é muito criativa”, adjetiva o professor de finanças públicas, referindo-se à frase em que o Presidente diz que “os diplomas podem ser aplicados, na medida em que respeitem os limites resultantes do Orçamento do Estado vigente”. Para o ex-deputado do PS a questão deve ser resolvida em sede orçamental, ou seja, com um Orçamento Retificativo — altura em que a AR é “soberana em termos orçamentais” –, o qual considera inevitável dada a alteração do cenário macroeconómico.
Tanto há razões que podem levar o Governo a dizer que não tem como acomodar esta despesa adicional como há argumentos para se dizer que tem. Por um lado, o Executivo já teve de disponibilizar mais apoios à economia do que o previsto por causa do segundo confinamento (que tem impacto no PIB e, por isso, na receita pública), o qual não estava nos planos do OE 2021, como já admitiu o ministro das Finanças. Acresce que há bastante incerteza sobre a evolução da pandemia e, por isso, sobre quanto tempo irão durar as medidas atuais e qual o universo de beneficiários abrangidos, o que tem impacto no nível de despesa a executar.
Por outro lado, o Ministério das Finanças até tem um ponto de partida mais favorável uma vez que o défice de 2020 ficou em 5,7%, em vez dos 7,3% estimados em outubro do ano passado, o que facilita a redução para 4,3% como previsto no OE2021. Acontece que estes números já estão desatualizados por causa do segundo confinamento e João Leão já admitiu que o défice a apresentar no Programa de Estabilidade até 15 de abril será maior (e, portanto, a sua redução face a 2020 será menor), pelo que essa folga foi “consumida” pela realidade.
Mas Leão ainda tem uns trunfos que o próprio controla: além das cativações (ainda tem de publicar o decreto de execução orçamental que define a proporção destas), o ministro mais do que duplicou as dotações centralizadas (mais 796 milhões face a 2020) no OE2021, entre as quais estão 500 milhões apenas para despesas imprevistas com a pandemia, à qual pode recorrer, para lá da dotação provisional e reserva orçamental que tem todos os anos num total de mil milhões de euros. Estes são “amortecedores” que podem evitar que esta despesa adicional signifique uma violação do teto de despesa previsto no OE 2021, mas tal depende da gestão orçamental do Governo.
Se se confirmar que a despesa adicional é de 34 milhões por mês, esta poderá ser uma “gota” no “oceano” de despesa pública prevista para 2021 de um total de 100 mil milhões de euros. Até ao momento, o ministro das Finanças tem recusado a ideia de que é necessário um Orçamento Retificativo, apesar de não excluir esse cenário. A evolução da pandemia e o ritmo de recuperação económica, assim como as dúvidas relativas à injeção no Novo Banco sem recorrer a uma retificação do OE, deverão ditar se haverá ou não uma segunda versão do OE 2021, a qual implicará uma nova ronda de negociação parlamentar.
O ECO questionou o Ministério das Finanças sobre este tema, mas não obteve uma resposta até à publicação deste artigo.
Recorde-se que as discussões sobre a norma-travão têm sido frequentes com o Governo a ameaçar enviar decretos do Parlamento para o Constitucional, tal como acontece neste caso. No ano passado, o Executivo disse o mesmo relativo ao Orçamento Suplementar, dizendo, na prática, que apenas o poder executivo poderia aumentar a despesa ou reduzir a receita. Contudo, entre os constitucionalistas a questão criou divisão e o Suplementar acabou por ser aprovado com várias medidas dos partidos (e não do Governo) com impacto orçamental, sem o Executivo concretizar a ameaça de recorrer ao Palácio Ratton.
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