Calais é há 30 anos “uma autoestrada” para alcançar o Reino Unido
Neste momento, segundo as estimativas oficiais, há entre 700 a 1.000 migrantes à espera de atravessar o canal, mas as associações de apoio no terreno dizem haver cerca de 1.500 pessoas.
A morte de 27 migrantes no Canal da Mancha em novembro fez dirigir novamente os holofotes para Calais, cidade costeira francesa que lida há 30 anos com os problemas gerados pelos mecanismos migratórios europeus, sem soluções à vista.
“Mesmo antes do ‘Brexit’ a situação já era assim. Há 30 anos que Calais é uma autoestrada para quem quer passar para Inglaterra. (…) a migração é um fenómeno social e Calais encontra-se na encruzilhada do extremo da Europa e o que é importante saber é se vamos insistir nos erros ou tentamos uma outra estratégia”, afirmou William Feuillard, coordenador-geral da associação Auberge des Migrants (Albergue dos Migrantes), em declarações à agência Lusa.
Para este ativista, sem novas soluções, os migrantes vão continuar a chegar a Calais para passar para o Reino Unido. Neste momento, segundo as estimativas oficiais, há entre 700 a 1.000 migrantes à espera de atravessar o canal, mas as associações de apoio no terreno dizem haver cerca de 1.500 pessoas nessas condições.
A maior parte destes migrantes vêm de países como o Sudão, Síria, Eritreia, Etiópia, Iraque, Irão ou Egito, alguns estão apenas há duas ou três semanas em Calais, outros estão na cidade há anos. Muitos entram na Europa através de Itália ou da Grécia e ingressam no sistema de Dublin (convenção da União Europeia para agilizar o processo de pedido de asilo) quando são identificados nesses países.
Mesmo sem saberem, ao darem as suas impressões digitais nos países de entrada, os migrantes geram um processo automático de pedido de asilo nesses Estados o que impede que o façam noutros da UE, como a França. Ficam bloqueados. “O sistema de Dublin é completamente enviesado. Os países do Sul, com maior número de chegadas, têm muito mais migrantes que os países do Norte”, criticou William Feuillard.
O ativista disse que muitos migrantes até prefeririam ficar em França, mas as questões administrativas e burocráticas fazem com que seja difícil concluir um processo de pedido de asilo de forma rápida. “As pessoas querem só começar a sua vida. (…) chegam aqui com percursos muito longos e duros e querem trabalhar, ter amigos, ser autónomos sem depender da generosidade de ninguém”, explicou Feuillard, cuja associação apoia centenas de migrantes com alimentos e lenha para se aquecerem.
O Reino Unido, onde não existem controlos de identidade pois não há formalmente um documento para tal, torna-se assim a “única” saída viável para muitos destes migrantes que se encontram num vazio administrativo na Europa, adiantou.
“Enquanto a Grã-Bretanha conservar uma legislação atrativa, as pessoas vão continuar a tentar passar. Podemos dizer o que quisermos, mas quando temos um migrante que nos diz que aqui ele não é nada, porque não tem direitos e não pode trabalhar ou encontrar uma casa até o processo de asilo estar concluído, se ele passar para o Reino Unido, mesmo em situação ilegal, ele pode fazer isso tudo”, explicou à Lusa Véronique Deprez-Boudier, subprefeita de Calais.
A imigração é mais uma acha na complexa fogueira das relações franco-britânicas pós-‘Brexit’ e, do lado francês, as dezenas de organizações não-governamentais que dão apoio aos migrantes e as autoridades estão de costas voltadas. As associações acusam a polícia francesa de violência contra os migrantes, falam de agressões e, especialmente, do desmantelamento constante dos campos construídos precariamente com tendas.
“Temos testemunhos horríveis. Pessoas que estão na rua e são gaseadas pela polícia por nada. Obrigar as pessoas a viverem na rua é uma violência monstruosa. As pessoas são insultadas pela polícia”, relatou William Feuillard. As autoridades refutam as acusações. “Temos um objetivo comum que é salvar pessoas, mas temos dificuldades em ver as coisas da mesma maneira”, declarou a subprefeita.
Calais, com cerca de 75 mil habitantes, sofre há décadas o impacto da pressão migratória em todos os setores de atividade. “Numa determinada altura, o centro de Calais era muito frequentado pelos ingleses, hoje em dia dizer a um inglês para vir aqui de férias é difícil, já que tudo que se vê de Calais são as imagens que sabemos, as notícias sobre a imigração e isso não atrai ninguém para o nosso território”, explicou Eric Lelieur, primeiro vice-presidente da Câmara de Comércio Litoral Hauts-de-France. A Agência Lusa tentou, sem sucesso, entrevistar a presidente da Câmara de Calais, Natacha Bouchart.
Sendo o ponto mais próximo do Reino Unido, Calais é um dos portos mais importantes da Europa. É aquele por onde passam mais pessoas em França e o segundo porto europeu em termos de veículos, com cerca de 1,8 milhões de camiões todos os anos. No entanto, nas reuniões com investidores, clientes ou fornecedores, as perguntas sobre as condições empresariais em Calais recaem sempre sobre o mesmo tema: a imigração.
Eric Lelieur considera que os migrantes não são sinónimo de criminalidade, mas que perturbam a atividade económica da região. Tentam infiltrar-se nos camiões ou trepar para cima deles, causam bloqueios nas estradas e já se registaram acidentes mortais, assustando os condutores e as grandes empresas de camionagem que hoje preferem levar os seus veículos até aos portos belgas ou holandeses.
“Acolher novas empresas (…) não é algo simples, já que instalar-se aqui representa maiores problemas de segurança do que noutros sítios e custos suplementares que não são irrelevantes. Há uma dificuldade evidente em todos os setores, portanto a vida de todos é afetada”, disse Lelieur. O empresário considerou que a cidade enfrenta atualmente o “apogeu” da crise migratória e que não tem maneira de lidar com questões geopolíticas que a ultrapassam, gerando-se um cansaço entre os habitantes, que é reconhecido pelas autoridades.
“É sempre complicado ver pessoas que todos os dias fazem a escolha de partir, arriscando as suas vidas. Ninguém é insensível a isto, mas a presença contínua e constante destes migrantes leva a consequências no dia-a-dia dos habitantes. Torna-se difícil viver com esta situação”, declarou Véronique Deprez-Boudier.
As associações também reconhecem que não há soluções fáceis, mas esperam que agora a situação seja considerada suficientemente grave para se rever a política europeia e britânica de migração. “Pedimos o fim do desmantelamento de campos durante o inverno e a abertura do diálogo entre as associações e as autoridades. E não falo de uma reunião a cada três meses com os jornalistas. Queremos formas legais de as pessoas poderem verdadeiramente escolher se querem pedir asilo no Reino Unido ou em França”, afirmou William Feuillard.
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