Salário mínimo volta a subir. Afinal, para que serve?
Instituído em Portugal em 1974, o salário mínimo é atualizado por determinação do Governo, depois de serem ouvidos os parceiros sociais. A partir de janeiro, passará a corresponder a 705 euros brutos.
O salário mínimo nacional (SMN) vai voltar a subir em janeiro de 2022, fixando-se em 705 euros brutos. Nem sempre os trabalhadores portugueses tiveram garantida uma remuneração mínima mensal, tendo tal sido uma conquista da Revolução dos Cravos. Mais de quatro décadas depois, ainda faz sentido? “É importante enquanto país não atinge [o nível de] riqueza que permita aos empresários pagar salários com valores dignos e justos“, sublinha Carmo Sousa Machado, da Abreu Advogados. E João Cerejeira, economista na Universidade do Minho, frisa: “A prova de que faz sentido é termos uma percentagem muito grande de trabalhadores a recebê-lo”.
Foi em maio de 1974 que foi criado o salário mínimo em Portugal, através de um decreto-lei assinado por Adelino da Palma Carlos, primeiro-ministro do I Governo Provisório. Nesse diploma, conforme lembra a sócia co-coordenadora da área de Direito do Trabalho da Abreu Advogados, a retribuição mínima mensal garantida aparecia como uma das disposições previstas para, por um lado, “abrir caminho para a satisfação de justas e prementes aspirações das classes trabalhadores” e, por outro, dinamizar a atividade económica.
Mas nessa altura nem todos os trabalhadores portugueses conseguiram beneficiar da fixação desse valor mínimo. “A decisão de garantir remuneração mensal não inferior a 3.300 [escudos] aos trabalhadores por conta de outrem beneficiará cerca de 50% da população ativa“, indicava o Executivo de então, no referido decreto-lei. Estavam, pois, abrangidos apenas os trabalhadores por conta de outrem com 20 ou mais anos e que trabalhassem a tempo completo na indústria, nos serviços ou na Administração Pública. De fora ficavam, assim, as Forças Armadas, os trabalhadores agrícolas, os trabalhadores a tempo parcial, os trabalhadores domésticos e os trabalhadores com menos de 20 anos.
O Governo de Adelino da Palma Carlos garantia, contudo, que essas exceções seriam meramente temporárias, prometendo decisões nesse campo para breve. Foi por isso que em 1977 foi criado um salário mínimo para os trabalhadores agrícolas permanentes, valor que, na altura, era, no entanto, inferior ao praticado para os demais trabalhadores.
A unificação e uniformização desses montantes viria a acontecer só em 1991, conta Carmo Sousa Machado, mantendo-se, contudo, de fora os mais jovens e os trabalhadores domésticos. Os trabalhadores com menos de 20 anos só passariam a ser cobertos pela retribuição mínima mensal garantida a partir de 1998 e os trabalhadores domésticos apenas a partir de 2004.
Só em 1991 salário mínimo agrícola deixou de ser mais baixo que o geral
Fonte: PORDATA
Hoje, cerca de 880 mil trabalhadores recebem o SMN, em Portugal, de acordo com os dados oficiais, estando esse mínimo fixado no Código do Trabalho. “Não fomos os primeiros [a criar o salário mínimo nacional], mas fomos bastante pioneiros“, nota a advogada da Abreu, referindo que, por exemplo, em França tal foi implementado em 1950, em Espanha em 1963, mas na Alemanha somente em 2015 e no Reino Unido apenas em 1999.
Nesses países, as regras são distintas das que são aplicadas por cá. Por exemplo, na Alemanha, o valor do salário mínimo é horário (em vez de mensal) e, durante a pandemia, tem sido atualizado duas vezes por ano. Já em França, o valor da retribuição mínima está indexado, nalguns casos, à inflação. E no Reino Unido, o montante mínimo garantido é diferenciado em função da idade (e, por conseguinte, da experiência) do trabalhador.
Há, depois, outros países europeus que não têm fixado qualquer salário mínimo nacional, deixando essa matéria para a negociação entre os trabalhadores e os empregadores. É o caso de Itália, Áustria e Suécia. Portugal poderia seguir esse exemplo? “No nosso país, a negociação coletiva tem estado, nos últimos anos, bastante adormecida. Não vejo que esse fosse o caminho que obtivesse os melhores resultados”, defende Carmo Sousa Machado.
A advogada lembra, por outro lado, que a Comissão Europeia tem em discussão uma diretiva para estabelecer “salários mínimos adequados” em todos os Estados-membros. Ainda no início de dezembro, os países adotaram um mandato nesse sentido. O objetivo é que os salários mínimos correspondam, pelo menos, a 50% da média dos salários de cada país ou a 60% do salário mediano, orientações que Portugal já cumpre, confirmou a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, recentemente.
Por cá, as confederações patronais têm também defendido, ano após ano, que a evolução da retribuição mínima mensal seja ligada a indicadores económicos objetivos, como a produtividade. “Para uma efetiva discussão da atualização da remuneração mínima mensal garantida para 2022 é fundamental que o Governo apresente os fundamentos económicos que suportam a referida proposta, designadamente os cálculos relativos à inflação e aos ganhos de produtividade“, apelavam a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) e a Confederação do Turismo de Portugal (CTP), ainda antes da apresentação em Concertação Social do valor do SMN para o próximo ano.
O Governo acabou, porém, por não demonstrar a pedida correlação desses indicadores ao valor escolhido para o próximo ano, os referidos 705 euros. Em 2022, haverá, portanto, um salto, em termos absolutos, de 6% do salário mínimo nacional face ao valor que vigorou em 2021. Em contraste, a inflação andará em torno de 1%, segundo a projeção do Executivo para esse mesmo ano.
“Há sempre alguém disposto a receber valor mais baixo”
Mas mais de quatro décadas depois de ter sido criado o salário mínimo nacional, faz ainda sequer sentido fixar esse limite? “Gostava imenso que não fosse preciso um salário mínimo“, começa por dizer Carmo Sousa Machado. Mas atira: “Há sempre alguém disposto a receber um valor mais baixo para ingressar no mercado de trabalho”. Por isso, a advogada considera que é importante continuar a ter na legislação laboral a retribuição mínima mensal garantida, pelo menos “enquanto país não atinge [o nível de] riqueza que permita aos empresários pagar salários com valores dignos e justos”. “Parece-me importante que esta obrigação legal exista“, salienta.
João Cerejeira concorda. O economista explica que há trabalhadores que “têm um poder de negociação mais baixo por várias circunstâncias” (nomeadamente, por terem qualificações inferiores ou por precisarem de um emprego mais perto de casa) e o salário mínimo nacional “compensa” essa situação, “protegendo” esses portugueses. “A prova de que faz sentido é termos uma percentagem muito grande de trabalhadores a recebê-lo”, salienta João Cerejeira.
De acordo com os dados do Ministério do Trabalho, cerca de um quarto dos trabalhadores recebe hoje em Portugal a retribuição mínima garantida. Em causa estão 880 mil portugueses. A incidência do salário mínimo é especialmente expressiva entre as trabalhadoras (27% ganham o SMN contra 22,6% dos homens). Além disso, é no Alentejo (31,7%) e no Algarve (30,8%) que se encontram mais trabalhadores com esse nível remuneratório.
Já sobre o valor escolhido pelo Governo para o próximo ano, João Cerejeira antecipa que terá “essencialmente impacto nos preços“. “Na restauração e na construção civil, por exemplo”, aponta o economista, sublinhando que tal poderá significar uma perda de poder de compra de real, se os demais rendimentos não subirem de forma proporcional.
E a propósito, numa altura em que, à boleia da subida, ano após ano, da retribuição mínima garantida, esse valor se aproxima do salário médio, o professor da Universidade do Minho faz questão de notar que tal é explicado pela “subida limitada” dos restantes ordenados, o que é justificado, por sua vez, pela estagnação da economia portuguesa. João Cerejeira avisa, além disso, que a crescente aproximação do salário mínimo ao mediano pode acabar por funcionar como um “desincentivo” e dificultar a gestão de pessoal nas empresas.
Ainda assim, em comparação com os demais países europeus, o salário mínimo nacional praticado em Portugal tende a ficar a meio da tabela, longe dos valores aplicado aos trabalhadores luxemburgueses (é no Luxemburgo que a retribuição mínima é mais elevada, na Europa, situando-se em 2.202 euros em 2021), mas também do montante em vigor na Bulgária (332 euros em 2021).
Os sindicatos portugueses têm insistido em subidas mais expressivas do que as que têm sido determinadas pelo Governo e o PCP, no debate parlamentar do Orçamento do Estado para 2022 (que acabou por ser chumbado), fez mesmo questão de, repetidamente, reivindicar um aumento mais generoso do que o proposto pelo Executivo de António Costa, tendo em conta a recuperação da economia, mas também os fundos que as empresas virão a receber no âmbito da chamada bazuca europeia.
Salário mínimo sobe, mas empresas são compensadas
Embora as atualizações recentes do salário mínimo não tenham tido, conforme salienta João Cerejeira, efeitos negativos no emprego, em 2022, a subida desse valor vai voltar a ser acompanhada por uma compensação para as empresas. Desta vez, a ajuda será de 112 euros por cada trabalhador que passe da atual retribuição mínima (665 euros) para a nova (705 euros), devendo ser pedida pelos empregadores até 1 de março através da plataforma disponibilizada para esse fim pelo IAPMEI e Turismo de Portugal.
Para as empresas cujos trabalhadores já recebem mais de 665 euros, mas menos de 705 euros e passem, a partir de janeiro, a ganhar o novo salário mínimo, a ajuda será de 56 euros por trabalhador. O pagamento deste subsídio, em ambas as modalidades, será efetuado no prazo máximo de 30 dias contados do término do prazo.
No total, a medida deverá custar aos cofres do Estado 100 milhões de euros, quase o triplo do valor gasto com a compensação colocada no terreno em 2021, ano em que também foi paga às empresas um apoio por cada trabalhador equivalente a cerca de 85% do acréscimo da Taxa Social Única (TSU) resultante da atualização da retribuição mínima mensal garantida.
Da parte das confederações patronais, não se fizeram ouvir elogios a este subsídio. Em vez disso, os empregadores sublinharam que preferiam, por exemplo, ver diminuída a pressão fiscal e a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) chegou mesmo a sugerir um desconto temporário na TSU, apesar dessa medida ter sido chumbada, de modo polémico, no Parlamento, na legislatura passada.
Em 2021, 80.407 mil empresas receberam a compensação pela subida do salário mínimo, que variou entre 42,25 euros e 84,5 euros por trabalhador.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Salário mínimo volta a subir. Afinal, para que serve?
{{ noCommentsLabel }}