A anatomia de uma crise política em quatro episódios. Marcelo e Costa em discurso direto
De 2 a 5 de maio, o primeiro-ministro e o Presidente confrontaram poderes e visões opostos sobre a governação e a autoridade e credibilidade das instituições. Esta é a anatomia da crise.
No dia 2 de maio, António Costa faz uma comunicação ao país à hora dos telejornais, e surpreende tudo e todos, até o Presidente da República, com quem tinha estado horas antes e a quem criou a expectativa de que demitiria o ministro João Galamba, depois do caso recambolesco que resultou da demissão ao telefone de um adjunto, Frederico Pinheiro, por causa da TAP e da comissão de inquérito.
De dia 2 a dia 5 de maio, sucederam-se quatro intervenções públicas do primeiro-ministro e do Presidente da República, uma delas, de Marcelo, por escrito, em tom de ‘toma lá, dá cá’, de confronto no espaço mediático. São quatro dias alucinantes, que levaram à mais grave crise institucional e política, mas também pessoal, de uma coabitação que dura há mais de sete anos.
A demissão de João Galamba, a gravidade do que sucedeu dias antes no ministério das Infraestruturas, a intervenção do SIS e a necessidade de manutenção de uma estabilidade política são quatro pontos-chave deste crise, e servem de contexto para o que se vai seguir nos próximos dois anos e meio, exatamente o período em que o Presidente da República mantém o poder constitucional para dissolver o Parlamento ou para demitir o Governo.
Estes são quatro pontos que explicam a anatomia de uma crise institucional, política e pessoal:
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A demissão de João Galamba
“Trata-se de um gesto nobre que eu respeito, mas que em consciência não posso aceitar quando não lhe é imputável pessoalmente qualquer falha. Entre a facilidade e a minha consciência, lamento desiludir aqueles que vou desiludir, mas dou primazia à minha consciência”, António Costa, 2 de Maio de 2023
“O Presidente da República, que não pode exonerar um membro do Governo sem ser por proposta do Primeiro-Ministro, discorda da posição deste quanto à leitura política dos factos e quanto à percepção deles resultante por parte dos Portugueses, no que respeita ao prestígio das instituições que os regem” , Marcelo Rebelo de Sousa, 2 de Maio de 2023
“Um governante sabe que, ao aceitar sê-lo, aceita ser responsável por aquilo que faz e não faz. E também por aquilo fazem e não fazem aqueles que escolhe. E nos quais é suposto mandar. Como pode um ministro não ser responsável por um colaborador que escolhera manter na sua equipa mais próxima? No seu gabinete? A acompanhar, ainda que para efeitos de informação um dossier sensível como o TAP, onde os portugueses já meteram milhões de euros. E merecer tanta confiança que podia assistir a reuniões privadas, preparando outras reuniões, essas públicas, na Assembleia da República”, Marcelo Rebelo de Sousa, 4 de Maio de 2023
“As condições para cada um de nós exercer as suas funções medem-se desde logo pelos resultados. Ainda na quinta-feira o ministro das Infraestruturas teve ocasião de lograr um acordo que pôs termo a uma greve na CP, – uma greve que já se arrastava há bastante tempo, prejudicando a vida do dia a dia dos portugueses. E isso é a demonstração de que está a exercer as suas funções e com bons resultados”. António Costa, 5 de Maio de 2023
A primeira “divergência de fundo” que existe entre o primeiro-ministro e o Presidente da República passa pela responsabilidade do ministro das Infraestruturas no caso do ex-adjunto Frederico Pinheiro. Mesmo antes de reunir com o primeiro-ministro, o chefe de Estado fez saber, através do Expresso, que defendia a demissão de João Galamba. O mesmo não entendeu António Costa, que depois de reunir com o ministro das Infraestruturas e com o Presidente da República em Belém, para discutir o assunto numa reunião que se prolongou por mais de uma hora, acabou por desafiar a vontade de Marcelo Rebelo de Sousa, recusando o pedido de demissão de João Galamba. E enquanto o primeiro-ministro ainda anunciava a sua decisão, o chefe de Estado divulgou uma nota a fazer saber que discordava frontalmente da decisão de Costa. A discórdia subiu de tom um dois dias depois quando Marcelo Rebelo de Sousa comunicou ao país as razões que o opõem ao Executivo, num dos discursos mais duros por parte de um Presidente da República, arrasando o sentido de responsabilidade do Executivo e de João Galamba e a sublinhar a perda de confiança no Governo. No entanto, um dia depois das declarações do Presidente, António Costa assumiu a divergência e voltou a segurar Galamba, alegando que o ministro tem condições para continuar a exercer funções por mostrar resultados.
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O pedido de desculpas
“Houve um deplorável incidente e, em nome do Governo, apresento desculpas aos portugueses. Trata-se de um incidente de natureza excecional, mas que fere o dever do Governo de contribuir para o prestígio e credibilidade das instituições”, António Costa, 2 de Maio de 2023
“Não se resolve apenas pedindo desculpa pelo sucedido. A responsabilidade política é essencial para que os portugueses acreditem nos que governam e é mais do que pedir desculpa. Não se apaga dizendo que já passou. Não passou. Reaparece todos os dias, todos os meses e todos os anos. A responsabilidade é uma realidade objetiva, implica olhar para os custos objetivos daquilo que aconteceu: na credibilidade, na confiabilidade, na autoridade do ministro, do Governo e do Estado”, Marcelo rebelo de Sousa, 4 de maio de 2023
O primeiro-ministro atira as responsabilidades do que aconteceu no Ministério das Infraestruturas para o ex-adjunto Frederico Pinheiro mas, reconhece que o episódio foi “deplorável” e que afeta a credibilidade do Governo, pedindo desculpa aos portugueses. No oposto, Marcelo Rebelo de Sousa frisa que não chega pedir desculpa e sublinha que o Governo ao não assumir responsabilidade pela polémica, perde credibilidade e a confiança “que é irreversível” para o chefe de Estado.
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A atuação do SIS
“Não foi dada nenhuma ordem aos serviços de informações por nenhum membro do Governo. Foi feito o que devia ser feito quando é roubado um computador que contém informação classificada: ser comunicado às autoridades competentes. Não houve qualquer violação da legalidade dos serviços de informações“, António Costa 1 de maio de 2023
“Como pode esse ministro não ser responsável por situações rocambolescas, muito bizarras, inadmissíveis ou deploráveis – as palavras não são minhas – suscitadas por esse colaborador, levando a apelar aos serviços mais sensíveis da segurança nacional, que, aliás, por definição, estão ao serviço do Estado e não de governos?”, Marcelo Rebelo de Sousa 4 de Maio de 2023
Horas depois de ter ido buscar o computador ao Ministério das Infraestuturas, Frederico Pinheiro foi contactado pelo SIS para recuperar o computador, que terá sido entregue de forma voluntária na via pública. Mas o envolvimento do SIS neste caso tem contornos ainda por explicar. Em conferência de imprensa, o ministro das Infraestruturas disse que tinha ligado ao gabinete do primeiro-ministro para dar o alerta do que estava a acontecer, acusando o ex-adjunto de furto do computador que contém informações classificadas. Foi então que o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro deu a indicação para o gabinete de Galamba contactar com a ministra da Justiça. Envolvidos estes membros do Governo e com Costa a negar qualquer ordem ao SIS está ainda por esclarecer quem deu orientações às secretas para atuar e a legalidade desta operação, tendo em conta que é à PJ quem cabe resolver assuntos de natureza criminal. Este é um dos contornos da polémica que também desagradou a Marcelo Rebelo de Sousa, que sublinhou que o SIS não está ao serviço do Governo.
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Necessidade de estabilidade
“Tudo visto e ponderado, continuar a preferir a garantia da estabilidade institucional, não fazer aquilo que implica direta e indiretamente o apelo ao voto popular antecipado. Os portugueses dispensam esses sobressaltos, essas paragens, esses compassos de espera num tempo como este, em que o que querem é ver os governantes a resolverem os seus problemas do dia a dia, os preços dos bens alimentares, o funcionamento das escolas, a rapidez na justiça, o preço da aquisição da habitação.”, Marcelo Rebelo de Sousa, 4 de maio de 2023
“Estamos convergentes sobre o mais importante, que é a necessidade de garantir estabilidade e de como prosseguir a ação governativa nas políticas que permitem traduzir termos uma boa evolução económica – e que essa boa evolução económica se traduz progressivamente na melhoria das condições vida dos portugueses”, António Costa, 5 de maio de 2023
Com uma trajetória dos número económicos positiva e em plena execução dos fundos do PRR – ainda que com atraso – tanto o primeiro-ministro como o Presidente da República concordam que, pelo menos, no imediato o país precisa de estabilidade política. E esta é uma das razões para que o Presidente da República afaste, para já, o cenário de eleições antecipadas. No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa avisa que vai estar “ainda mais atento e mais interveniente no dia a dia” sobre as políticas seguidas pelo Governo “sinalizando de modo mais intenso tudo aquilo que possa afastar os portugueses da responsabilidade daqueles que governam”.
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