Falta de credibilidade e “irrealismo”. As razões de Marcelo para vetar o Mais Habitação
Chefe de Estado elenca sete riscos nas medidas e diz ter dúvidas de que iriam aumentar a oferta de casas, sublinhando a falta de acordo e de consenso entre os partidos.
Antes de partir para a Polónia, o Presidente da República deixou uma nota que arrasa com o diploma Mais Habitação – vetado esta segunda-feira -, sublinhando que, mesmo após as alterações do PS ao diploma do Governo, considera ter sido desenhado com “possível irrealismo”, apontando a falta de acordo de regime entre os partidos, a falta de credibilidade de que as medidas fossem aumentar “com rapidez” e “eficácia” a oferta de casas, salientando que este é “um mau arranque de resposta a uma carência que o tempo tornou dramática, crucial e muito urgente”.
“Não é fácil de ver de onde virá a prometida oferta de casa para habitação com eficácia e rapidez”, lê-se na nota do Presidente da República, que analisa o diploma onde constam as várias medidas de um dos programas bandeira do Governo.
No mesmo texto, que foi enviado em forma de carta ao Presidente da Assembleia da República, o chefe de Estado elenca sete riscos das medidas que assentam num “discurso excessivamente otimista, de expectativas elevadas para o prazo, os meios e a máquina administrativa disponíveis e, portanto, de possível irrealismo nos resultados projetados”.
O Governo tinha anunciado que até 2024 haveria no mercado 26 mil novas casas de oferta pública. Mas, desde logo, o Presidente critica a falta de construção de habitação pública. “Salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai assumir responsabilidade direta na construção de habitação”, lê-se no texto publicado no site da Presidência.
Além disso, alerta Marcelo, o apoio “dado a cooperativas ou o uso de edifícios públicos devolutos, ou prédios privados adquiridos ou contratados para arrendamento acessível, implicam uma burocracia lenta e o recurso a entidades assoberbadas com outras tarefas, como o Banco de Fomento, ou sem meios à altura do exigido, como o IHRU”.
Sobre o arrendamento coercivo – uma das medidas mais polémicas do diploma – depois das alterações e do recuo do PS, que passou a ser aplicado pelos municípios de forma apenas “excecional” – o Presidente da República considera que “fica tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente simbólico, com custo político superior ao benefício social palpável”.
E sobre as restrições ao alojamento local, outra das medidas que mais protestos provocou, Marcelo Rebelo de Sousa considera que as medias previstas no diploma ignoram a “complexidade” do setor, e tornam “duvidoso que permita alcançar com rapidez os efeitos pretendidos”.
Mesmo com as “correções no arrendamento forçado e no alojamento local, dificilmente permite recuperar alguma confiança perdida por parte do investimento privado, sendo certo que o investimento público e social, nele previsto, é contido e lento”, frisa o Presidente da República.
Na decisão do Chefe de Estado pesou ainda que “não se vislumbram novas medidas, de efeito imediato, de resposta ao sufoco de muitas famílias em face do peso dos aumentos nos juros e, em inúmeras situações, nas rendas”
Falta de acordo entre partidos teve peso na decisão
Por fim, a falta de abertura do PS para chegar a um consenso com os partidos da oposição, sobretudo com o PSD, também foi tida em conta no veto. “Acordo de regime não existe e, sem mudança de percurso, porventura, não existirá até 2026″, frisa o Presidente da República, lembrando que a “maioria absoluta quase isolada”, “apagou outras propostas e medidas e tornou muito difícil um desejável acordo de regime sobre Habitação, fora e dentro da Assembleia da República”.
Isto porque apesar do leque de várias propostas que os partidos apresentaram sobre Habitação, a bancada socialista, que tem a maioria no Parlamento, acabou por chumbar todas as iniciativas.
Desta forma, o pacote legislativo Mais Habitação que sofreu bastantes alterações face aos documentos iniciais, foi aprovado pelo Parlamento a 19 de julho, apenas com o voto favorável do PS. PSD, BE, PCP, Iniciativa Liberal e Chega votaram contra. Livre e PAN abstiveram-se.
Apesar de encontrar algumas “ideias positivas” que estão “diluídas pelo essencial das soluções encontradas”, o Chefe de Estado considera que “tudo somado, nem no arrendamento forçado, nem no alojamento local, nem no envolvimento do Estado, nem no seu apoio às cooperativas, nem nos meios concretos e prazos de atuação, nem na total ausência de acordo de regime ou de mínimo consenso partidário”, o diploma “é suficientemente credível quanto à sua execução a curto prazo“, e, por isso, “mobilizador para o desafio a enfrentar por todos os seus imprescindíveis protagonistas – públicos, privados, sociais, e, sobretudo, portugueses em geral”.
Durante a semana passada, em declarações às televisões desde a praia de Monte Gordo, Marcelo Rebelo de Sousa disse que a sua decisão seria “política” e em declarações à RTP3, o Presidente admitiu que, em caso de veto, “não é dramático”, tendo em conta que existe uma maioria absoluta no Parlamento, que “pode repetir, em escassas semanas, a aprovação acabada de votar”.
No entanto, o chefe de Estado diz que “não é isso que pode ou deve impedir a expressão de uma funda convicção e de um sereno juízo analítico negativos”.
Na semana passada, em declarações à RTP3, Marcelo disse que a sua decisão foi tomada “em consciência” e “adequada” ao seu “juízo sobre essas matérias, sempre pensando nos portugueses”.
Dois diplomas promulgados com reservas
Além do diploma vetado, esta segunda-feira, o Chefe de Estado promulgou com reservas um segundo decreto do Parlamento incluído no pacote Mais Habitação.
Trata-se do diploma que autoriza o Governo a simplificar os licenciamentos e os procedimentos urbanísticos e de ordenamento do território. Apesar da luz verde, o Presidente da República “não deixará de ter presente, na futura apreciação do Decreto-Lei autorizado, a necessidade de compatibilização entre a simplificação urbanística e outros valores a preservar, como é a segurança e qualidade das edificações, a responsabilização dos intervenientes no processo de construção e o importante papel da Administração Local em matéria de habitação e de ordenamento do território”.
Na nota, Marcelo Rebelo de Sousa escreve ainda que espera que “o Governo, se possível, aproveite o ensejo para ponderar a reunião num único diploma de toda a legislação dispersa (imensa e, em alguns casos, contraditória), eliminando contradições e normas obsoletas e melhorando a acessibilidade da legislação do setor, num passo fundamental para a desejável simplificação urbanística. Assim, prefigurando algo que aponte para um Código da Edificação”, sublinha.
Já em maio, o ECO avançou que o Presidente da República promulgou também com reservas o diploma que reforça os poderes dos municípios e do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), no que toca à gestão do arrendamento de habitação pública e que altera as regras ao “Porta 65” com a criação do “Porta 65 Mais”.
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