Marcelo mais exigente que Cavaco na privatização da TAP
Decreto-lei de 2014, que lançou a privatização do ano seguinte à Atlantic Gateway, não previa a amplitude de ressalvas que o atual Presidente da República quer ver no diploma.
O Presidente da República avançou com um “veto construtivo” ao decreto-lei de privatização da TAP aprovado pelo Governo, para “salvaguardar um conjunto de condições” na operação. Exigências que não ficaram plasmadas no diploma que aprovou a venda do capital da companhia aérea em 2014, estava Cavaco Silva em Belém.
Marcelo Rebelo de Sousa devolveu ao Governo o diploma aprovado no final de setembro, pedindo a clarificação de três aspetos. O primeiro é a capacidade de acompanhamento e intervenção do Estado numa empresa estratégica como a TAP. Estando prevista a venda de uma qualquer percentagem acima de 51%, “não se prevê ou permite, expressamente, em decisões administrativas posteriores, qualquer papel para o Estado”, argumenta o Presidente.
Quando se olha para o diploma de reprivatização aprovado pelo Governo PSD/CDS em dezembro 2014, esse papel também não é “expressamente” previsto. Na altura, o Executivo avançou para a alienação de 61% do capital, uma posição maioritária, com a opção de vender mais 34% ao mesmo comprador no prazo de dois anos, com o restante reservado para os trabalhadores.
O diploma prevê nos critérios de seleção dos investidores “a apresentação de um adequado projeto estratégico, tendo em vista a promoção do crescimento da TAP, com respeito pelo cumprimento dos objetivos delineados pelo Governo para este processo de reprivatização”. Entre esses objetivos está o respeito pela “importância estratégica do chamado hub nacional”, isto é, o aeroporto de Lisboa. Nada diz sobre o papel futuro do Estado em decisões administrativas posteriores.
O decreto-lei de 2014 diz que o Conselho de Ministros pode “condicionar, se assim o entender, a aquisição das ações à celebração ou plena eficácia de quaisquer instrumentos jurídicos destinados a assegurar a concretização da venda direta de referência e o cumprimento dos objetivos decorrentes dos critérios enunciados”.
Marcelo parece querer algo mais concreto, defendendo na terça-feira que “a lei dê uns passos que não deixem ficar apenas no pacto social, no futuro, aquilo que pode já, de alguma maneira, ser protegido“. Ou seja, que a existência deste instrumento jurídico fique já consagrada.
Para alcançar esse objetivo, não é necessário ter 100% do capital ou sequer 51% do capital, depende de quem seja o sócio e depende de qual seja o pacto social entre os sócios.
O Presidente usou a formulação jurídica aludida no dia anterior pelo primeiro-ministro no Parlamento. No debate do Orçamento do Estado, António Costa disse que a privatização só se fará se for garantido o “estrito respeito pela vocação estratégica da TAP” e o hub e que alcançar esse objetivo “depende apenas do sócio e do pacto social entre os sócios”. O ministro das Finanças tem afirmado que o interesse público pode ser protegido através de uma participação no capital e a celebração de um acordo parassocial com o comprador.
No processo de venda que levou à entrada da Atlantic Gateway no capital, no final de 2015, só no caderno de encargos é prevista a criação de uma comissão de acompanhamento da privatização, com a missão de vigiar o cumprimento dos objetivos estratégicos, mas que nunca chegou a ser criada.
Comprar e vender ativos com a privatização em marcha
Marcelo Rebelo de Sousa está também preocupado com o facto de o diploma “admitir que a TAP possa alienar ou adquirir, antes mesmo da decisão de venda, quaisquer tipos de ativos, sem outra mínima precisão ou critério, o que vai muito para além da projetada integração da Portugália na TAP SA”.
No decreto de dezembro de 2014, logo no artigo 1.º, estabelece que o processo de reprivatização não impede que a TAP “inicie processos de alienação ou aquisição de bens móveis, imóveis, negócios, serviços, atividades ou participações sociais, quer respeitem ou não à TAP, até ao momento da publicação da resolução do Conselho de Ministros que aprove o caderno de encargos da venda direta a que se refere o presente diploma, mesmo que a conclusão desses processos só ocorra após essa data”. Ou seja, é dada à companhia uma grande latitude de atuação.
O diploma aprovado pelo Executivo de António Costa não é conhecido, mas dirá algo semelhante. A questão é levantada pelo Presidente porque o ministro das Finanças já afirmou que a Portugália SA, a Cateringpor e a Unidade de Cuidados de Saúde passarão da TAP SGPS para a TAP SA (dona da companhia aérea), sem, no entanto, explicar como. Nem tão pouco o que acontece à SGPS, que deixou de ter qualquer participação na SA com as injeções de capital nesta última.
Marcelo Rebelo de Sousa apontou ainda “a questão de não assegurar a total transparência, numa fase de contactos anteriores à elaboração do caderno de encargos, ou seja, das regras que nortearão a escolha de eventual comprador, no mínimo tornando claro que não serão negociações vinculativas e que desses contactos ficará registo, fundamental para garantir a prova da cabal isenção dos procedimentos, se for levantada, em momento ulterior, a questão da acima mencionada transparência do processo e da escolha do comprador”.
“De modo a reforçar a absoluta transparência e concorrência do processo de reprivatização, o Governo decidiu colocar à disposição do Tribunal de Contas todos os elementos informativos respeitantes aos procedimentos adotados no âmbito da referida operação”, lê-se no preâmbulo do diploma que abriu caminho à privatização no final de 2015, com a venda de 61% do capital à Atlantic Gateway. O articulado prevê que seja o Executivo a determinar o número de fases para a seleção do investidor, mas é omisso quanto a contactos ou negociações prévias ao caderno de encargos.
Governo ou muda decreto ou leva-o ao Parlamento
Esta é a fase em que o Presidente da República pode intervir de forma direta no processo de reprivatização da TAP, uma vez que o caderno de encargos, a peça legislativa que seguirá, já assume a forma de uma resolução do Conselho de Ministros e não de um decreto-lei. “Em consciência, só podia assinar e só assinarei se salvaguardar um conjunto de condições que ninguém perdoaria no futuro que eu não tivesse salvaguardado“, afirmou esta semana Marcelo Rebelo de Sousa.
No caso de um decreto-lei do Governo, o veto do Presidente é absoluto. O que significa que o Executivo tem de alterar o diploma no sentido de responder às dúvidas de Marcelo Rebelo de Sousa e aprovar a nova versão. Na terça-feira Marcelo considerou que o Governo “está com vontade” de ir ao encontro das suas preocupações.
Em consciência, só podia assinar e só assinarei se salvaguardar um conjunto de condições que ninguém perdoaria no futuro que eu não tivesse salvaguardado.
Se não quiser alterar o diploma, o Governo terá de apresentá-lo na Assembleia da República e usar a maioria absoluta para o viabilizar. Depois do provável chumbo de Marcelo, o decreto teria de ser novamente aprovado no Parlamento, tornando obrigatória a sua promulgação. O conflito político não cairia bem junto dos potenciais interessados na companhia aérea.
Em 2014, Cavaco Silva esgotou os 40 dias ao dispor do Presidente da República no caso de um decreto do Governo. A privatização anterior era também muito contestada pela esquerda, incluindo pelo PS, e os sindicatos. Mas não tinha o histórico recente desta, como Marcelo Rebelo de Sousa não deixou de frisar, lembrando o histórico recente, “incluindo o avultado montante que os contribuintes nacionais tiveram de desembolsar para salvar a TAP, na sequência da pandemia Covid-19, e a intervenção da própria Assembleia da República, através da comissão parlamentar de inquérito”.
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