Planos do novo Presidente argentino para controlar a inflação em risco sem maioria no Congresso
A Argentina rompeu com o peronismo e optou por um ultraliberal para mudar economia. Mas os planos de privatizações e do fim do banco central de Milei esbarram na falta de apoio no Congresso.
Há uma semana, a Argentina entrou em terreno desconhecido com a eleição de Javier Milei como novo Presidente. O economista de 53 anos, que se autointitula como um “anarcocapitalista” e tem em Trump e Bolsonaro as suas referências políticas, vai herdar uma economia com uma inflação de três dígitos e uma moeda em desvalorização, além de uma enorme dívida ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Porém, com um partido em minoria no Congresso, terá dificuldades em levar a cabo a prometida revolução liberal, que inclui planos para acabar com o banco central e substituir o peso argentino pelo dólar norte-americano.
“Boa noite a todos os argentinos de bem. Hoje começa a reconstrução da Argentina”, começou por dizer Milei, no discurso de vitória na noite do passado domingo, agradecendo aos 14,5 milhões de eleitores que votaram em si o “milagre de terem um presidente liberal libertário”. Com 55,69% dos votos, o primeiro Presidente economista do país latino-americano derrotou Sergio Massa (44,30%), o ministro da Economia que até tinha sido o candidato mais votado na primeira volta das eleições.
Milei fez-se famoso com as suas participações em programas e noticiários televisivos, especialmente nas farandulas, como são conhecidos os talk-shows da TV argentina, sendo frequentes o uso de palavrões e insultos às figuras políticas. Foi como comentador que deu a conhecer várias das suas ideias radicais para resolver os problemas crónicos da economia argentina, tendo chegado a dizer que não se opunha à liberalização do mercado de venda de órgãos humanos.
Só em 2021 é que acabaria por entrar na cena política, quando criou o partido “La Libertad Avanza” (“A Liberdade Avança”, em português), com o qual garantiu o terceiro lugar na cidade de Buenos Aires, com 13,66% dos votos, nas eleições primárias em setembro desse ano.
Dois anos depois, conseguiu reunir o voto popular, descontente com o peronismo. “O que se votou foi uma mudança radical. Votou-se num outsider que ninguém consegue ainda definir com critério. Trata-se de uma rutura com o passado“, afirma o investigador argentino Marcelo Moriconi, do Centro de Estudos Internacionais da Universidade de Lisboa, em declarações ao ECO.
Mas o partido de Milei ocupa apenas 38 do total de 257 lugares na Câmara dos Deputados e sete dos 72 assentos no Senado, o que o deixa dependente de acordos com forças políticas mais moderadas para conseguir governar. Um dos apoios possíveis será o da coligação anti-peronista “Juntos por el Cambio” (“Juntos pela Mudança”, em português) que saiu derrotada na primeira volta das eleições.
Os principais líderes dessa coligação, Patricia Bullrich e o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), ajudaram ao triunfo do novo Chefe de Estado, já que declararam o seu apoio a Milei na segunda volta. Por isso, não será uma surpresa se se firmarem acordos entre ambos no Congresso. A imprensa argentina avança, aliás, que Bullrich será ministra da Segurança no próximo Governo, um cargo que já exerceu durante o executivo de Macri.
Ainda assim, dificilmente reunirá maioria em qualquer uma das câmaras do Congresso: mesmo juntando-se ao “Juntos pela Mudança”, Milei garante apenas 30% da Câmara dos Deputados, abaixo do mínimo necessário de 33% para evitar um impeachment; no Senado, seria apoiado por perto de 20% dos senadores, ainda muito longe dos 33%.
Por outro lado, é um Presidente sem raízes nas instituições de poder do país, pois em 24 governadores e 2.300 presidentes de câmara, nenhum é do partido de Milei. Ou seja, a Argentina corre o risco de um ficar num cenário de ingovernabilidade.
A Argentina tem um problema sério de gasto. Gasta muito mais do que entra, emite moeda sem parar (o que causa inflação) e teve fatores externos negativos muito significativos: a pandemia, primeiro, e, depois, uma das maiores secas de sempre, sendo que o campo é um dos motores económicos do país e uma das principais fontes de exportação e, portanto, de divisas.
Maioria peronista dificulta privatizações
Para evitar a destituição, Milei precisará de mais alianças frente aos peronistas que continuam em maioria e que deverão procurar bloquear a generalidade das suas propostas. Isso pode levá-lo a suavizar algumas das suas ideias mais controversas — o que já se verificou ao longo da campanha eleitoral para a segunda volta.
Nos comícios, a motosserra que costumava transportar, para simbolizar os cortes aos gastos do Estado que planeia fazer, deixou de ser vista, precisamente para ajudar a promover uma imagem mais moderada. E, logo no dia seguinte às eleições, recuou também na privatização dos setores de educação e saúde, lembrando que estes “são responsabilidade das províncias”, sendo a Argentina um Estado federal, pelo que não podem ser privatizados.
Não obstante, “tudo o que puder estar nas mãos do setor privado, estará“, reafirmou Milei, em entrevista à rádio Mitre, dando como exemplos a gigante petrolífera YPF, nacionalizada em 2012 sob a presidência de Cristina Kirchner, meios de comunicação social públicos como a agência noticiosa oficial Telam e a televisão TVP, “que se tornaram um mecanismo de propaganda”.
O encerramento do banco central, que acusa de ter imprimido dinheiro de forma desenfreada para financiar as despesas governamentais, mantém-se também como prioridade. “A moeda será aquela que os argentinos escolherem livremente. Basicamente, estaremos a dolarizar para nos livrar do banco central“, reiterou. Mas este processo implicaria uma mudança constitucional, para a qual não existe maioria parlamentar, além de que o ex-presidente Macri, que apoiou Milei, é contra a ideia.
Andrés Malamud, investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), explica ao ECO que a dolarização só seria possível “se a Argentina emitisse dólares, tivesse reservas dessa moeda ou recebesse remessas”. “Mas nada disso acontece”, assinala o politólogo argentino, apontando que contrasta com outros países latino-americanos — como o Equador, El Salvador e Panamá — que têm muitos emigrantes no estrangeiro e, por isso, usam o dólar como moeda.
Assumindo a necessidade de o país corrigir o seu rumo “o mais rapidamente possível”, Javier Milei quer começar por pôr “as contas públicas em ordem muito rapidamente”, cortando na despesa em 15 pontos percentuais do PIB. Logo no dia seguinte às eleições, adiantou que a sua equipa está já a trabalhar “com as linhas de orientação” do FMI, com quem a Argentina tem uma dívida de cerca de 42.000 milhões de euros, enquanto a diretora-geral da instituição, Kristalina Georgieva, manifestou vontade de trabalhar “em estreita colaboração” com Milei para desenvolver um plano que “garanta a estabilidade macroeconómica” do país.
Tweet from @KGeorgieva
Foi em 2022 que a Argentina selou um acordo com o FMI para refinanciar a dívida de 45 mil milhões de dólares (cerca de 41.000 milhões de euros) que o país sul-americano tinha contraído quatro anos antes e que, com juros acumulados, ronda agora os 46 mil milhões de dólares (cerca de 42.000 milhões de euros). O programa de financiamento contempla o cumprimento de metas trimestrais — deficit primário, reservas internacionais e emissão monetária para financiar o Tesouro — que a Argentina está a caminho de não cumprir no final deste ano.
A terceira maior economia da América Latina tem atualmente uma inflação anual de cerca de 143%, que o Presidente eleito prevê que demore “entre 18 e 24 meses” a controlar. Esta crise do custo de vida deixa mais de 40% da população a viver em condição de pobreza. Além disso, a situação de seca no país levou a uma quebra nas receitas com as exportações de cereais.
Marcelo Moriconi fala do “problema sério de despesa” que a Argentina tem. “Gasta muito mais do que entra, emite moeda sem parar (o que causa inflação) e teve fatores externos negativos muito significativos: a pandemia, primeiro, e, depois, uma das maiores secas de sempre, sendo que o campo é um dos motores económicos do país e uma das principais fontes de exportação e, portanto, de divisas“, nota.
A situação de seca não prejudicou apenas o lado da produção, seja na agricultura ou no gado, como também o transporte de toda a maquinaria necessária. Como afirmou o também investigador no ISCTE, “as secas foram cereais e legumes que não cresceram, mas também foram camiões para as transportar que não circularam, aldeias inteiras que vivem desse movimento que não receberam clientes“.
Em agosto deste ano, altura em que foi aprovado um novo desembolso de 7,5 mil milhões de dólares para a Argentina — que, no total, ascendem a cerca de 36 mil milhões de dólares –, o FMI reconheceu que “os principais objetivos do programa não foram atingidos até ao final de junho de 2023“, apontando como causas a “seca histórica, juntamente com as derrapagens das políticas”.
Apesar disso, a instituição apelou à contenção das despesas com salários e pensões, bem como à atualização das tarifas energéticas para atingir os objetivos fiscais fundamentais e ajudar a economia do país a compensar as enormes perdas causadas pela seca. Tal como na quarta revisão do programa, várias metas económicas foram flexibilizadas e foram concedidas derrogações por incumprimento.
Neste cenário, Milei acusou o governo cessante de “abandonar” o acordo com o FMI “porque não cumpriu a meta fiscal [orçamental]”, apontando que o défice primário previsto para o final de 2023 era de 1,9% do PIB, mas acabará, afinal, em 2,9%. A próxima revisão do programa está prevista ainda para este mês, antes da tomada de posse do novo Presidente a 10 de dezembro.
Ainda que o cenário dominante seja de incerteza com as mudanças que o autodenominado “anarcocapitalista” trará ao país, a primeira reação do mercado financeiro argentina foi otimista. No dia seguinte às eleições foi feriado, mas, logo na terça-feira, a bolsa de valores abriu em alta de 20% e manteve os fortes ganhos, fechando em alta de 17,7%. Esta subida foi liderada pela valorização de 36,5% das ações da petrolífera YPF, uma das empresas estatais que Milei quer privatizar.
Ajuda da China em risco
Antes do mais recente desembolso do FMI, as reservas líquidas de divisas da Argentina estavam no vermelho e o país sul-americano acordou uma série de empréstimos para efetuar um pagamento à instituição. Um desses empréstimos veio da China, no valor de 1,7 mil milhões de dólares. Esta é outra questão que fica em causa com a vitória de Milei, que há dois anos afirmava que “não faria negócios com a China”, garantindo que o corte de relações com o gigante asiático “não seria uma tragédia macroeconómica”.
A questão-chave para Milei é ver quanto tempo aguenta a sociedade, quanto dura a carta branca que o eleitorado lhe deu para mudar coisas, quanto tempo aguenta a sociedade sem soluções e com medidas de força que são apresentadas como a única maneira de conseguir melhoras no futuro… O “bom futuro” de Milei tem data de caducidade, e ele vai ter de ter respostas e resultados positivos antes dessa data.
Durante a campanha eleitoral, aligeirou o discurso, declarando que, se ganhasse, o país continuaria a fazer parcerias comerciais com o setor privado chinês, mas que o Estado não negociaria com Pequim, por ser um “regime comunista”. No entanto, importa notar que Pequim é o segundo maior parceiro comercial da Argentina e o principal mercado de exportação dos seus produtos agrícolas.
Além disso, a China tem investimentos no país sul-americano em áreas estratégicas como desenvolvimento de infraestruturas e exploração mineira, e um acordo para pagar as suas importações da Argentina na moeda chinesa, o yuan, e não em dólares norte-americanos. Muitas empresas chinesas estão interessadas na Argentina, especialmente no setor agrícola e em recursos naturais como o lítio, matéria-prima fundamental para a indústria chinesa de carros elétricos, do qual o país é o quarto maior produtor do mundo.
Antes da mensagem do Presidente chinês, Xi Jinping, a felicitar Javier Milei pela eleição, manifestando interesse em trabalhar para “promover a amizade e a cooperação entre os dois países”, Pequim avisou que a Argentina cometeria um “grande erro” se cortasse relações com “países tão grandes como China e Brasil”.
A contração de empréstimos em renminbi através de linhas de swap do Banco Popular da China, como parte de uma suposta desdolarização do sistema financeiro global, remonta à presidência de Fernández. Por isso, a eleição de um Presidente que deseja adotar a moeda norte-americana é uma reviravolta abrupta, mesmo sendo pouco provável que consiga apoio para levar a cabo a sua promessa de substituir o peso.
A retirada do Mercosul, bloco de países que compõe a par com Brasil, Paraguai e Uruguai, é outra posição polémica de Milei, considerando-o “uma união aduaneira de má qualidade, que cria distorções comerciais e prejudica os membros”. Ao mesmo tempo, tem criticado o acordo comercial “desfavorável” deste bloco com a União Europeia, que estará na fase final de longas negociações. Milei sugeriu ainda a saída do BRICS, cuja adesão da Argentina foi aprovada este ano.
Segundo Marcelo Moriconi, as propostas de Milei “não vão acalmar a inflação, nem dar soluções imediatas”, trazendo antes “conflitos políticos e sociais”. “O ‘bom futuro’ de Milei tem data de caducidade, e ele vai ter de ter respostas e resultados positivos antes dessa data. A questão-chave é ver quanto dura a carta-branca que o eleitorado lhe deu para mudar coisas, quanto tempo aguenta a sociedade sem soluções e com medidas de força que são apresentadas como a única maneira de conseguir melhorias no futuro”, conclui.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Planos do novo Presidente argentino para controlar a inflação em risco sem maioria no Congresso
{{ noCommentsLabel }}