Tribunal de Contas diz que privatização da ANA lesou o Estado e aponta “deficiências graves”
Tribunal de Contas considera que privatização "não salvaguardou o interesse público", não maximizou encaixe para o Estado e descurou a concorrência no setor aeroportuário.
A privatização da ANA – Aeroportos de Portugal à Vinci, que arrancou em 2012, “não salvaguardou o interesse público” e foi assente em várias irregularidades e “deficiências graves”, aponta o Tribunal de Contas. A venda à Vinci foi fechada com um valor que ficou 71,4 milhões de euros abaixo do que tinha sido “oferecido e aceite” e depois de uma “avaliação intempestiva” à empresa concessionária dos dez principais aeroportos nacionais, sem que tivesse sido realizada uma “avaliação prévia” para calcular um preço base, como era “legalmente exigível”.
O TdC refere ainda “graves desconformidades e inconsistências” detetadas no caderno de encargos, para as quais a Parpública “não tem explicação” e que revelam “risco material e falta de fidedignidade” dos documentos envolvidos no processo e que foram “determinantes para escolha do comprador”.
A privatização aconteceu num contexto de “urgência”, sem que estivessem asseguradas “todas as condições necessárias à sua regularidade e transparência”, o que colocou o Estado numa posição de “fragilidade” negocial.
Estas são algumas das conclusões apresentadas pelos juízes do Tribunal de Contas no relatório, divulgado esta sexta-feira, que analisa se o processo de privatização da ANA – que decorreu entre 7 de setembro de 2012 e 22 de outubro de 2013 – “salvaguardou o interesse público”. A fiscalização do TdC à venda da ANA ao grupo francês Vinci foi pedida pelo Parlamento em 2018, depois de ter sido aprovado um requerimento do PS.
No relatório, que arrasa o processo de venda, lê-se ainda que em 2012 o Estado “concedeu à Vinci” os dividendos da ANA desse ano, que ascendem a 30 milhões de euros, “quando a gestão ainda era pública” e “suportou o custo financeiro da ANA para cumprir o compromisso assumido no contrato de concessão”, – os juros, comissões e impostos, no valor de 41,4 milhões, que foram pagos pelo empréstimo de 800 milhões concedido à empresa para pagar a primeira prestação do pagamento inicial pela concessão. Isto fez baixar o preço da privatização para 1.127,1 milhões, ficando 71,4 milhões de euros abaixo dos 1.198,5 milhões de euros, valor que tinha sido “oferecido e aceite”, lê-se ainda no documento.
Os juízes conselheiros tecem ainda críticas ao processo no que toca à concessão dos aeroportos, sinalizando “desequilíbrio dos contratos a favor do comprador”. Para o TdC, o Estado “privilegiou o potencial encaixe financeiro” com a venda da empresa “no curto prazo”, em “detrimento” de garantir um “equilíbrio na partilha de rendimentos com a concessão de serviço público aeroportuário” a “longo prazo”.
Acresce ainda que a privatização “comportou a concessão de um monopólio fechado por 50 anos”, prorrogável, com uma “proposta de Novo Aeroporto de Lisboa de direito exclusivo da concessionária” e num setor que é “estratégico para a economia do país” tendo havido um “desperdício da oportunidade” para “benefícios da concorrência”.
Segundo o relatório, a prorrogação do prazo da concessão está “associada” à construção do novo aeroporto de Lisboa, o que faz com que o contrato de concessão seja “longo e incerto no seu termo”, representando “riscos acrescidos” com uma “única entidade privada encarregue da gestão de todos os principais aeroportos por um período tão extensível e sem termo conhecido à partida”.
Por tudo isto, os juízes do TdC entendem que a privatização “não salvaguardou o interesse público” não tendo sido “maximizado o encaixe financeiro” da venda da totalidade do capital social da ANA, por não ter sido “minimizada a exposição do Estado aos riscos” da venda e por não ter sido reforçada a “posição competitiva” da ANA “em benefício do setor da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias” geridas pela concessionária.
Dez anos depois de ter arrancado a privatização, este é o único relatório que fiscaliza a transação para o grupo francês Vinci. Até 2012, a ANA era detida na totalidade pelo Estado, através de uma participação direta da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, com 31,44% do capital, e de uma participação indireta da Parpública de 68,56%. Com o processo de privatização já em curso, em janeiro de 2013, a Parpública comprou a participação da DGTF pagando cinco euros por cada ação, com a operação a totalizar 363,78 milhões de euros.
A venda da ANA à Vinci acontece numa altura em que Portugal estava, desde 2011, sob resgate financeiro com o Governo, então liderado por Passos Coelho, a lançar, por imposição da troika, um programa de privatizações. Nesse período foram vendidas mais de 12 empresas públicas e participações detidas pela Caixa Geral de Depósitos, com o Estado a encaixar uma receita bruta que rondou os 10 mil milhões de euros.
Os juízes do TdC salientam que a venda da ANA contraria a tendência “da maioria” dos países da União Europeia, lembrando que, em 2010, dos 306 aeroportos da UE 237 (77%) eram geridos por entidades públicas, 43 (14%) por entidades com capital misto e apenas 9% (26) por privados. E, apesar de em 2016 na UE se assistir a um “crescente envolvimento” de privados na gestão dos aeroportos, além de Portugal, apenas três países (Chipre, Hungria e Eslovénia) “tinham todos os seus aeroportos entregues a entidades privadas”.
Ao ECO, Pedro Nuno Santos, ex-ministro das Infraestruturas e atual secretário-geral do PS não quis comentar o relatório do TdC sendo que em 2020, em entrevista ao Expresso, qualificou a venda da concessionária dos aeroportos como o “negócio de privatização mais danosa de sempre” para o Estado e para o interesse público.
A divulgação do relatório do Tribunal de Contas, aprovado a 21 de dezembro, promete animar a pré-campanha para as legislativas.
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